23 de maio de 2021

Chás e encruzilhadas

Durante um tempo tentei explicar que o caminho rumo aos chás era menos por eles e mais pelo café, embora os chás que buscava fossem sem estimulantes. Não é em fato um percurso acordado, óbvio, é muito mais um percurso de fuga, disparada, corrida desembreada por novas marcações. Meu corpo não aguentava mais as doses estimulantes da cafeína. 

Como de costume a gente tenta se autoexplicar pela negação que é uma das vestes da rejeição, e então durante algum tempo acreditar que meu sistema neurológico rejeitava a cafeína foi a primeira e mais imediata justificativa. Acontece que a cafeína não me trazia o imoderado porque o corpo não digeria, muito ao contrário, meu corpo digeria com tamanha fome e prazer o café que a reações bioquímicas moleculares elevavam os sistemas neurológico e intestinal a níveis grandiosos de potência ativa.

Isso quer dizer que o trajeto na direção dos chás tratava, e ainda trata, de uma fuga pelo excesso afirmativo da digestão ativa do café no meu corpo. Veja esse processo como um encontro afetivo de moléculas no corpo que ao encontrarem as moléculas recebidas do café, se excitam de tal modo que a cada encontro elas implodem. Não se mantinham quando do encontro enquanto moléculas de antes e moléculas do café. Não havia nem antes e nem depois conservados no encontro. Acontecia  uma implosão sem rastros.

Foi essa implosão que repetidas vezes exigiu sobremodo do intestino e dos neurônios, cujos hormônios neurotransmissores ao serem convocados para a implosão não encontravam modelos do que fazer e de como fazer, quer dizer, não havia rota clara de digestão, o que mostrava bem o quão a implosão era magna ao ponto de incluir sem modéstias hormônios e neurotransmissores, o que indiscutivelmente interferia nas percepções e elaborações corporais que me produziam.

chá de lascas de açafrão com unha de gato

O fato é que buscar o encontro com os chás não foi por acaso, nem tampouco por desinteresse (aliás, como todo encontro, sempre há interesse), o desejo quase pouco revelado era fugitivo dos encontros implosivos com o café. 

Fuga afirmativa do corpo que não alcançava em termos moleculares tamanha força atemporal que fazia de cada xícara o começo de novas rotas criativas. Intestino e cérebro se desmanchavam, concentravam suas energias com foco obestinado naquele encontro enquanto outras demandas corporais anunciavam sinais de enfraquecimento, já que o corpo na sua rede complexa movia forças de regiões distintas para concentrar numa única localização atual (do exato encontro, do agora, do presente, do momento) as atividades carnais. A cada café era a criação de uma região temporária e nova (daí originária, original, genética de gênese) no corpo, cuja memória daquela carne não sabia como proceder a cada vez que a região temporária se constituía sem repetir o que já teria sido noutros encontros passados. O encontro criava um corpo temporário dentro do corpo, e enquanto temporário exigia para si as forças das outras regiões que há tempos estavam memorizadas. 

Dupla afirmação: digestão afirmativa e criação de um corpo sem precedentes dentro do próprio corpo. Criação e destruição do corpo na sua latência não física apenas possível de ser explicada e compreendida na linguagem fisiológica, com palavras do bio em operação.

O café nesse sentido não fazia mal para o meu corpo, ele provocava justamente um ritmo térmico corporal que ultrapassava os limites das caixinhas orgânicas do organismo. Implosão. Estouro. Rompimento. Arrebentamento. Criação. O sistema neurológico suportou por longos anos cada encontro na sua singularidade, porque cada café varia de acordo com o grão, a temperatura da água, o clima do ambiente, assim como ele, as próprias composições moleculares internas do corpo também são singulares porque estão conectadas à nutrição dos dias anteriores.

No findar de 2017 o corpo se afirmou, chorou, gritou, vociferou até que os códigos arbirtrários da inteligência fossem atravessados por sinais corporais. Foi necessário tempo de dor para compreender que os deslocamentos não se fazem unicamente por negação, se fazem também por afirmação. 

Buscar os chás como nova possibilidade de reencontrar o café na sua potência que marcou meu corpo: os limites não são as caixas que enquadram e sim as regiões temporárias que se recusam a existir como uma única determinação, muito mais, são temporárias justamente por se afirmarem indeterminadas e portanto, insubordinadas.

Sim, são os chás na encruzilhada dos contínuos cafés sem necessariamente demandar o aniquilamento da memória viva que traz consigo as implosões.

(texto motivado pelo comentário do meu irmão Davi: "que vício é esse por chá?". E eu que aparentemente só consegui me distanciar do café no tempo que dei a mão para os chás. Ao menos por alguns instantes.)

Carol Gomes