28 de julho de 2009

"E se os pensamentos não brotassem mente a mente? E o que são asas filosóficas, que não recurso real para se chegar além do óbvio? O homem é projeto finito? Será a condição humana o próprio cárcere? E o que não nos vem? E o que não nos vai? Sua vez, diz aí?"

Aceita euforicamente a provocação, opto pela reprodução, ao meu ingênuo olhar, não espantosamente menos digna de consideração...


“Eu imagino sempre que a natureza é um grande espetáculo que parece àquele da ópera. Do lugar onde a Sra. está na ópera, a Sra. não vê o teatro totalmente como ele é; a decoração e as máquinas foram dispostas para dar de longe um efeito agradável, e esconde-se da sua vista essas rodas e contrapesos que fazem todos os movimentos. Também a Sra. quase não se incomoda em adivinhar como tudo isso funciona. Não há talvez senão algum maquinista escondido no parterre, que se incomoda com um vôo que lhe terá parecido extraordinário e que quer muito desvendar como este vôo foi executado. A Sra. bem vê que aquele maquinista é feito os filósofos. Mas o que, com relação aos filósofos, aumenta a dificuldade, é que nas máquinas que a natureza apresenta a nossos olhos, as cordas são perfeitamente bem escondidas, e o são tão bem que se ficou muito tempo a [tentar] adivinhar o que causava os movimentos do universo [...]. Não se acredita mais que um corpo se mexa, se ele não é puxado, ou, antes, empurrado por um outro corpo; não se acredita mais que ele suba ou que desça, a não ser pelo efeito de um contrapeso ou de um motor; e quem visse a natureza tal como ela é, não veria senão os bastidores do teatro da ópera. Por conta disso, diz a Marques, a filosofia tornou-se mecânica? Tão mecânica, respondi, que temo que dela logo tenhamos vergonha. Quer-se que o universo não seja em grandeza senão o que um relógio é em pequenez, e que tudo se conduza por movimentos regulados que dependem do arranjo das partes”
(Leibniz em Carta à Princesa Sofia de 04 de Novembro de 1696)

Retomando a questão da reprodução e ainda da provocação ‘se os pensamentos não brotassem mente a mente’, satisfaço-me mais uma vez com Proust:


“... há menos força numa inovação artificial que numa repetição destinada a sugerir uma verdade nova.”
(Marcel Proust em À Sombra das Raparigas em Flor)

Assim eis a vida, como fortemente já dito, aos condenados que não se aquietam humildemente na aceitação de uma provável simplicidade da existência...
Carol Gomes

17 de julho de 2009

Outrem nas linguagens artísticas



Música, Cênicas e Literatura. Adriana Calcanhoto, Selton Mello e Fernando Pessoa. Aos meus olhos, em comum tão só o faro artístico, ainda o tema, um tema: os Outros, ou melhor, os Eus.


Calcanhoto na suavidade da voz contraposta à intensidade do olhar nos surpreende com o poema musicado de Mário de Sá-Carneiro O Outro:


Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro.



Julgo que de conhecimento da problemática em torno d’Outro, Adriana parece permanecer seduzida e reafirma os Outros-Eus no diálogo das Adrianas, Calcanhoto e Partimpim. Nada mais prazeroso que o mesmo corpo dialogar, entrevistar a si mesmo encarnado, possuído por um Outro originado de um mesmo. Assim fez Calcanhoto ao entrevistar Partimpim. Trechos da entrevista nos revelam o bailar de Um ao Outro, e não menos a denúncia de algumas influências. Desconstruindo a noção de que seu disco fora realizado para o público infantil, Partimpim nos revela:


Sempre esteve bem claro pra mim que o disco não abrigava qualquer desejo de "resgatar" minha infância de uma maneira "proustiana". Mas, quem sabe, eu conseguisse, em um refrão, em meio compasso, por uma semifusa, por um femtosegundo... como uma madeleine que soasse ao invés de cheirar, proporcionar a algum ouvinte de qualquer idade, o tipo de prazer que experimentei ao ouvir música com os adultos, e não só com as outras criancinhas [...] o disco foi feito para eu ser a criança que sou hoje e não a que já fui.


Adriana ainda invoca no quebra-cabeça do seu site, versão Partimpim, o feito dos artistas japoneses que segundo a mesma “mudavam de nomes várias vezes na vida”. Ora, a cantora, num ato artístico lança aos interlocutores o convite para reflexão de Outrem: Este está fora ou dentro do Eu? Outrem seria um Eu? Quantos Eus-Outros carregamos em nós? Quantos e quais Outros seriam meus Eus? E os tantos Outros que carreguei e foram ficando para trás? E assim tantos e mais questionamentos...


Trazendo para o diálogo com Adriana retomo Selton Mello em entrevista publicada na Revista Bravo (edição 143 – jul/09), cuja chamada de capa escancara “Cuidei melhor dos personagens que de mim”. Ora, como passar os olhos e não estatizar por instantes nessa provocação audaciosa? Logo pensei: Quantos personagens dou vida, se na existência de havê-los?


Lá pelas tantas da entrevista o autor após falar da opção pelo cinema e distanciamento da TV nos engasga:


Velho, caí em contradição! Pretendo me contradizer mais 15 vezes ao longo da entrevista. Na realidade, meu sonho é conversar com você novamente daqui a cinco anos e desdizer cada frase que disse até agora.

Na verdade a fala do ator me faz voltar na Adriana e me perguntar tanto mais: O Outro habita no Eu numa simultaneidade ou se faz em ciclos correspondentes? Selton continua: “vários aspectos de minha trajetória devem dialogar com o moleque rejeitado de antigamente”. Talvez aqui possamos alçar vôos ousados...


Será muito irracional discorrer sobre a aceitação de Outrem contido no Eu?, aliás, vários Outros num suposto Eu.


Talvez não desinteressadamente essa problemática seja tão bem ilustrada pela Arte; percebe-se a facilidade da compositora no desenvolvimento do tema, percebe-se a naturalidade do ator ao tratar a contradição como movimento dos seus Outros-Eus, é nesse aspecto que a criação artística mostra sua prazerosa dança pelo pensamento humano. Liberta das amarras dos conceitos, que por hora de primazia da Filosofia, invade os interlocutores, que desinteressadamente se envolvem, se deixam refém das provocações e se elevam sutilmente ao êxtase reflexivo. Quem sabe essa liberdade invasiva seja parte constituinte do “movimento, do devir, sempre inacabado que não se faz na mera reflexão do vivido, mas além como extrapolação da matéria vivível ou vivida” nas palavras do filósofo Gilles Deleuze.


A questão parece tomar formato, o problema de Outrem como não sendo apenas de domínio da Arte, é no entanto explorado por ela num movimento de aparente suavidade que desveste os Outros e os lança como puros, ou talvez, crus ao olhos do Eu.


Como atingir a outra Adriana, a Partimpim, se a Calcanhoto não houvesse na criação artística extrapolado o seu vivido para revelar-se como criança-adulta (ou adulta-criança). Ou então, como identificar o movimento velado dos Outros Selton Mello se o conflito não houvesse se dado na contradição dos seus personagens, subjugar o Selton e cuidar melhor dos personagens.


Mais uma vez interpomos a questão da Arte ... o que é?


Continuemos sem resposta, na busca desta, e para não cair no vazio textual, já que fora citado no início desse esboço, aqui arrolamos Pessoa, na sua maestria, que certamente pairava nos pensamentos de Adriana, ou que como sombra passeava pela sala no desenrolar da entrevista de Selton.


De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade
De eu ter passos comigo?
Carol Gomes