30 de novembro de 2009

Breve diálogo sem precedentes

Moça: Bom dia!

Moço: Bom dia! Vamos começar mais uma semana.

Moça: É sim, abrir Dezembro.

Moço: Nessa segunda de chuva queria continuar na cama, não queria abrir Dezembro, queria fechar Novembro na cama.

Moça: Muito boa a sua. Pois eu queria encontrar o Peter Pan e pedir aquele pó mágico para eu voar e quem sabe chegar à Terra do Nunca.

Moço: Vejo que não falta inspiração para essa segunda.

Moça: Inspiração não, é que vi o Peter Pan virando a esquina, corri para alcançá-lo e não consegui, ele estava ocupado com algo.

Moço: Você está brincando comigo. Falemos dos relatórios de final de ano.

Moça: Falemos então. Só não te esqueças que ficar na cama para fechar Novembro ou estar no trabalho focado tão e somente nos relatórios talvez seja a mesma coisa.

Moço: Hum!

Moça: Toma aí esse pó mágico que consegui pegar quando o Peter Pan virava e não percebeu que caiu do bolso.

Moço: Esse pó vai agilizar meu trabalho?

Moça: Sabe-se lá, só desconfio que vai trabalhar muito bem, percebendo que é possível voar estando preso atrás da mesa. Nesse vôo podes encontrar pássaros perfeitos que nos levam a espaços cuja imaginação não alcança. Pode se pegar pisando nas nuvens. Pode ver a Terra do alto e ver como somos formigas. Pode ver que a Terra talvez não seja o Planeta Azul... pode ver tanta coisa sem se privar dos relatórios.

Moço: Tá certo, quero esse pó.

Moça: Agora sim. Pega a xícara porque nossa hortelã já vai fria. Além do quê o Peter Pan que virava a esquina depois se revelou como vulto nascido dos meus vôos, até porque Peter Pan ocupado longe da Terra do Nunca não poderia sê-lo.

Moço: Agora não dá, o pó já foi para xícara que muito acentuou o aroma.

Moça: Muito bom, o açúcar do chá realmente ficou ótimo.

Moço: (num movimento oferecendo um abraço à moça) Vamos minha colega, nossa viagem à Terra do Nunca termina quando o chá acaba e somos puxados para essa Terra que bem conhecemos, essa Terra de Sempre.

Moça: Eis que você talvez se engane, pois dentro dessa Terra há múltiplas outras Terras... entre as quais uma onde o nunca e o sempre traduzem significados outros. Voltemos porque o relógio gira.


Carol Gomes

25 de novembro de 2009

Adendos Mentirosos...





Queria ter a coragem artística de negar o real, no entanto me pego diariamente escrava dele.


O enigma da vida é saber da morte e não compreendê-la; disse o alemão. Será ele conhecedor de que tão ou mais enigmático é saber da vida e sequer entendê-la?


O silêncio como coisa por vezes é calmante, noutras é diabólico porque encontra o silêncio como sujeito.


Impotência presidiária não seja a constatação da inferioridade da ação em referência ao pensar?


Por vezes a ausência de magia do real impõe-se como obrigação para sua reinvenção diária.


Que doença é essa de querer arrancar sempre significados invisíveis de tudo e todos?


Nada mais lúcido revelar a igualdade da borboleta com a flor.


Nada mais lúdico revelar que um mais um são dois.


Atrás de uma porta há sempre o incerto, daí o sentido das fechaduras; assim elas não abrem sozinhas e apenas quando se necessita de abalos.

Carol Gomes

23 de novembro de 2009

Arte, invasora de um tal espaço filosófico

Aprendi com Rômulo Quiroga (um pintor boliviano):
A expressão reta não sonha.
Não use o traço acostumado.
A força de um artista vem das suas derrotas.
Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.
Arte não tem pensa:
O olho vê, a lembrança revê, a imaginação transvê o mundo.
Isto seja:
Deus deu a forma. Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo.
(BARROS, 2010)

Eis o questionamento: O que é a Arte?

No diálogo Filosofia e Arte algumas considerações da História da Filosofia apresentam reflexões que contribuem para o entendimento desse questionamento. Nesse sentindo três filósofos amadurecem a questão: Albert Camus, Michael Foucault e Gilles Deleuze; assim como no primado pelo diálogo entre as áreas, dois escritores e um artista plástico, também contribuem discutindo a mesma questão que os filósofos, porém sob o prisma da criação artística, sendo: Manoel de Barros, Marcel Proust e Istvan Orosz.
Albert Camus em “O Homem Revoltado” responderá que a Arte é movimento que exalta e nega simultaneamente (CAMUS, 1996, p. 291). Essa simultaneidade é característica da revolta camusiana na recusa do mundo pelo indivíduo. A revolta não é tomada como fuga do mundo real, mas ainda, exige a unidade do estar no real e no para além do real.

Em toda revolta se descobrem a exigência metafísica da unidade, a impossibilidade de apoderar-se dela e a fabricação de um universo de substituição. A revolta, de tal ponto de vista, é fabricante de universos. (CAMUS, 1996, p. 293)

Na obra “O Mito de Sísifo” o filósofo apodera-se do mito e apresenta o personagem como o ‘herói absurdo’. Em Camus, Sísifo assume a vestimenta de homem revoltado, uma revolta consciente da sua condição existencial, posto que Sísifo fora condenado à eternidade rolar um rochedo no inferno. O personagem mitológico ousa o poderio dos deuses e encontra mesmo na condenação a unidade metafísica do seu existir, sendo que na eterna condenação, nos segundos entre o ‘parar’ do rochedo e a descida que retomaria desde o sempre ao esforço condenado, o herói absurdo toma consciência de que ainda há felicidade. Sísifo revolta-se contra os deuses e seu destino, revolta-se contra o seu real, mas não apenas, a busca do personagem é a superação do destino, e é nessa busca que o mesmo se faz herói. O heróico é compreender o absurdo da existência e revoltar-se, não apenas negando, ainda ampliando a realidade, sem fugir, num movimento de recriação do mundo.

Camus utilizando a herança de Nietzsche identifica no artista a intolerância ao real, assim como apresenta que “não há destino que não se transcenda pelo desprezo” (CAMUS, Lisboa, p. 149). Ora, o que o filósofo argelino aponta é que a criação artística não tolera a reprodução inútil do real, mas ao artista cabe refazer o real, apresentar na sua criação o que o mesmo não encontra no mundo. A reconfiguração do mundo é a compreensão da unidade tão necessária que Camus insisti. Para este não é suficiente negar o real, tampouco imaginar, ambos os caminhos são caracterizados por fuga vazia da realidade. O movimento revoltado da Arte é portanto, negar e reafirmar o mundo, colocar-se posto para “escrever um manual qualquer da felicidade” (CAMUS, Lisboa, p. 150), unindo o desprezado ao desejável.

Marcel Proust, escritor francês, no primeiro volume intitulado “No Caminho de Swann” que compõem a obra “Em Busca do Tempo Perdido”, parece endossar o problema da negação do real assim como Camus:

Como o público só conhece, do encanto, da graça, e das formas da natureza aquilo que pôde absorver nas imitações de uma arte lentamente assimilada, um artista original começa por rejeitar essas imitações. (PROUST, 2003, p. 211)

O apontamento de Camus provoca na compreensão de que a Arte é a anfitriã da revolta humana, responsável por abrigar a revolta e ainda apresentar-lhe condições de reinvenção do mundo, em um movimento de saída e retorno ao mundo, ensinando o quão, apesar de desprezível, o mundo contém em si mesmo a felicidade.

Ainda em “O Homem Revoltado” Camus nos fala de transcendência, fala em vibrações que nos escapam no silêncio pronunciado repetidamente do mundo. Essa constatação é a própria reafirmação do real, a contestação do aparente real, do aparente silêncio do mundo, mas simultaneamente a afirmação da tal transcendência viva, o falar repetido do mundo, a emissão das mesmas notas mundanas, a promessa da beleza que “pode fazer com que esse mundo moral e limitado seja amado e preferido a qualquer outro” (CAMUS, 1996, p. 296).

Maria Luiza Borralho na obra “Camus” de 1984 apresenta o histórico do filósofo-escritor Camus, e destaca que aos 23 anos esboçara no caderno um plano de criação, qual seja: “Obra filosófica: o absurdo; Obra literária: força amor e morte sob o signo da conquista. Nos dois, misturar os dois gêneros respeitando o tom particular” (BORRALHO, 1984, p. 190).

Com essa problematização Camus amplia o primeiro questionamento “O que é a Arte?” para “Como dialogar Arte e Filosofia?”. Logo nas primeiras páginas de “O Mito de Sísifo” o filósofo deixa a indicação que o absurdo é o divórcio entre o homem e a sua vida, entre o ator e o seu cenário. Nessas palavras é possível identificar o elemento filosófico do absurdo o transliterando para outro questionamento existencial camusiano: A vida tem sentido?

Se de um lado a Filosofia escancara o hiato entre homem e vida, por outro a Arte conduz à re-significação desse hiato. Segundo Camus a Arte conduz à origem da revolta, no entanto uma recondução que desvela o movimento harmonioso possível de amor e morte na conquista da felicidade no mundo real.

Camus surpreende euforicamente ao apresentar as noções de absurdo e revolta, no entanto, a presença de elementos existencialistas atenta, sobretudo para o espaço reservado tanto à Filosofia quanto à Arte como um momento segundo do indivíduo. Ainda em “O Mito de Sísifo” o autor sentencia: “Ganhamos o hábito de viver, antes de adquirirmos o de pensar” (CAMUS, Lisboa, p. 18). Também em “O Homem Revoltado”: “O romance é antes de tudo um exercício da inteligência a serviço de uma sensibilidade nostálgica ou revoltada” (CAMUS, 1996, p. 304). Essas passagens camusianas remetem às noções existencialistas traduzidas em ‘vivência’ e ‘reflexão’. Assim, Arte e Filosofia se nos aparecem não como atividades intrínsecas ao homem, necessárias, originárias, mas como resultantes do processo de revolta, sendo esta sim originária, imanente ao homem.

Dialogando com Camus interpõem-se o adendo: A Arte não provocaria essa revolta no homem ao invés de abrigar e reinterpretar a revolta?

Michel Foucault em entrevista de 1966 intitulada “Um Nadador entre Duas Palavras” deixa sua contribuição ao adendo. Ao falar sobre Breton e o Surrealismo destaca o ato de escrever não como um ato de comunicação, mas um ato de experiência que transforma; a escrita como um movimento de descoberta de si mesmo. Referindo-se ao escritor surrealista, ele aponta para uma crença na escrita em si mesma, a obra como caráter efetivo de intervenção no mundo, contrapondo a concepção da escrita como instrumento de refletir o mundo, de decomposição e recomposição. A sentença maior de Foucault à noção da escrita literária é que a obra por si só toma um caráter de antimatéria do mundo e pode compensar todo o universo, fundamentalmente porque ela não é apenas parte do mundo que reflete sobre este, mas porque o escrever é tido como ato bruto e nu, que encontra no escritor toda a liberdade de enfrentar o mundo nele mesmo (FOUCAULT, 2006, p. 245). Consoante, Manoel de Barros escreve:

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que
catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro
botando ponto final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os
vazios com as suas peraltagens
e algumas pessoas
vão te amar por seus despropósitos.
(BARROS, 2010)

Manoel de Barros, escritor brasileiro nascido em Cuiabá (MT) em 1916, durante entrevista em Agosto de 1996 diz que explora “os mistérios irracionais dentro de uma toca que chama lugar de ser inútil. Exploro há 60 anos esses mistérios. Descubro memórias fósseis. Osso de urubu, etc. Faço escavações”. Nessa fala o escritor remete a alguns filósofos que dialogaram com a Arte e que identificaram nesta um caráter invasivo, à força de negar e desvelar ao indivíduo universos outros. Com Manoel de Barros retoma-se o que Camus e Foucault apresentaram da relação com o mundo, a negação do real, o superar o real como que em um movimento ampliador, e vislumbra-se que esse seja um elemento considerável que possibilite à Filosofia dialogar com a Arte. O movimento desta de subjugar o mundo estando nele, sendo parte dele, assim como ousando mostrar possibilidades.

Retomando Proust, reconfigura-se a questão “O que é a Arte?” no diálogo com Camus, Foucault e Manoel de Barros. Sobre a força invasiva da Arte, Proust apresenta na sua obra essa força que invade; a obra artística se nos aparece como a abertura de outros mundos até então desconhecidos do indivíduo, como que “movimentos incessantes de dentro para fora, no sentido da descoberta da verdade” (PROUST, 2003, p. 85).

Em Proust o artista assume o viajante que alça vôo em busca de caminhos desconhecidos e que só ele penetra, de maneira que a obra é a materialização dessa viagem desmaterializada; assim, a Arte invade na medida que disponibiliza e violenta o indivíduo para perspectivas até então desconhecidas.

Nesse tipo de tela colorida de estados diversos que, enquanto eu lia, minha consciência ia desenrolando simultaneamente, e que iam desde as aspirações mais profundamente escondidas dentro de mim até a visão inteiramente exterior que eu tinha do horizonte diante dos olhos. (PROUST, 2003, p. 85)

Gilles Deleuze, filósofo leitor de Proust, no livro dedicado a este último “Proust e os Signos” a Arte assume a primazia de revelar a verdade. Deleuze identifica no escritor a existência de um mundo geral constituído por outros quatro mundos, sendo três materiais e um imaterial. Haveria portanto o mundo mundano, mundo do amor e o mundo sensível, todos no plano da materialidade, restando o mundo da Arte no plano da imaterialidade. A diferenciação entre o mundo material e o da imaterialidade é que o primeiro, ora se faz vazio quando mundano, ora se faz mentiroso quando amoroso, ou no mais avançado da materialidade se faz sensível, porém ainda insuficiente para a verdade. Já o mundo da imaterialidade encontra seu sentido na busca da verdade que é uma essência nada material.

Na leitura deleuzeana, Proust apresenta a busca da verdade apenas por intermédio da Arte, subjugando inclusive a Filosofia que tradicionalmente carrega consigo tal prerrogativa. Deleuze entrelaçado a Proust argumenta que a Arte invade o indivíduo, o mesmo desenvolve uma noção de idéia de violência necessária ao indivíduo para o exercício do pensamento. O pensamento não alcança a verdade por amor a esta, mas o pensamento se propõe a buscá-la quando violentado para tal, assim, a verdade é almejada segundo a configuração de uma necessidade, quando o indivíduo é forçado a buscá-la.

A noção de necessidade, violência, invasão, se justifica no próprio estatuto da imaterialidade da verdade, pois esta não é material, não é visível, ao contrário, é preciso que a decifre, a verdade exige interpretação, revelação, o trilhar de um caminho obscuro.

A Filosofia atinge apenas verdades abstratas que não comprometem, nem pertubam […] Elas são gratuitas porque nascidas da inteligência, que somente lhes confere uma possibilidade, e não de um encontro ou de uma violência, que lhes garantiria a autenticidade. (DELEUZE, 1987, p. 16)

Para Deleuze, em Arte, a inteligência é apresentada nunca antes, apenas depois, porém diferentemente de Camus, a Arte não é reflexão que assume a responsabilidade de recondução ao mundo pós revolta, ao contrário, a Arte é que força a inteligência para buscar a verdade que é obscura. Nesse sentido, Deleuze e Proust se aproximam de Foucault quanto à compreensão do ato artístico como momento puro de experimentação, como força que pressiona o indivíduo ao pensamento.

Ainda na obra de Proust, a Arte com o seu caráter invasivo de acesso à verdade, faz-se o veículo de acesso a Outrem. Deleuze evoca o problema filosófico leibniziano da comunicação entre as mônadas, que são fechadas em si mesmas, sendo que em Proust a Arte vai de encontro a esse fechamento e abre janelas de comunicação. Nesse sentido, recorrendo ao diálogo entre Arte e Filosofia.

Nossas únicas janelas, nossas únicas portas são espirituais: só há intersubjetividade artística ... Só pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que vê outrem de seu universo que não é o nosso, cujas paisagens nos seriam tão estranhas como as que porventura existem na Lua. Graças à arte, em vez de contemplar um só mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se. (DELEUZE, 1987, p. 42)

Na obra Universe do artista húngaro Istvan Orosz é possível mais um diálogo da Arte com a Filosofia, um diálogo revelador, provocador, invasivo por intermédio de questionamentos aparentemente filosóficos. Na obra encontra-se a discussão de Proust cuja Arte revela mundos outros desconhecidos do indivíduo.

Istvan Orosz – Universe

O presente trabalho é uma tentativa de refletir sobre uma provável problematização do diálogo entre Filosofia e Arte, expondo aspectos convergentes de ambas no trato de problemas comuns, assim como demonstrar que por constituírem áreas diferentes do conhecimento, apresentam perspectivas peculiares, e que ainda sim, seja possível a integração quando dispostas às questões pertinentes ao homem.

A proposta se fez no destaque de três filósofos cuja ressonância encontra-se em três artistas, tendo evidenciado que tanto as Artes quanto a Filosofia, se veem envoltas de questionamentos humanos, porém, o elemento diferenciador faz-se justamente na perspectiva diferente de resposta ao problema, assim como na possibilidade de entrelaçamento de uma área à outra diante da proposição de determinado problema.

Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei em escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. (BARROS, 2003)

Nas palavras de Manoel de Barros evidenciamos a perspectiva de que o filósofo não se faz mais ou menos que o artista, e sim que buscam possibilidades que ampliam o conhecimento do homem de si e do mundo.

Carol Gomes

18 de novembro de 2009

Vida, o enigma da...

Uma sentença que com tamanha frequência li e ouvi é a que um célebre pensador se faz não pelas respostas que lança, mas pelos problemas que formula. Engraçado como diferente de tantas frases 'chavões' essa sempre me tomou por aceitá-la passivamente enquanto inferência verdadeira. Parece-me que alguns problemas assumem caráter universal, posto que permeiam, julgo inocentemente, o pensamento de todo e qualquer indivíduo, entre os quais o problema formulado na pergunta: O que é a vida?

Como de costume prostrei silenciosamente noutros questionamentos, talvez de menos rigor filosófico, sobre uma classificação dos problematizadores, ou seja, a pergunta O que é a vida? lançada pelo artista é a mesma pergunta feita pelo filósofo? Além, a pergunta filosófica equivale-se à pergunta artística e até a pergunta científica? Ora, a provocação é essa mesma, linguisticamente estaríamos diante de uma pergunta universal, no entanto não teríamos emaranhado à própria pergunta os desdobramentos da resposta?

Um tal Sr. Dilthey nos últimos meses me aparece colocando novamente a conhecida questão do que seja a vida, ainda, o que seja a própria filosofia. Ora, Dilthey realmente assume um certo ‘ar’ romântico alemão, que a princípio gosto muito inclusive pelo uso sutil das palavras, no entanto, não foram suas considerações sobre as ciências do espírito que me prenderam, tão pouco a compreensão de que a filosofia seja um pensamento profundo sobre a vida. O que de fato sobressaiu dos escritos do rapaz foi justamente a base para o título deste esboço que me arrisco, qual seja O enigma da vida, subitem na obra Os Tipos de Concepção de Mundo. Transcrevo o trecho que Dilthey aponta, sabe-se lá um problema ou mera constatação:

O centro de todas as incompreensões situa-se na geração, no nascimento, no desenvolvimento
e na morte. O vivente sabe da morte e, no entanto, não pode compreendê-la.

Saber da morte e não compreendê-la estaria a garantir justamente o status da pergunta o que seja a vida? Dilthey partilha da noção historicista que fundamenta o pensamento no movimento próprio da vida, assim, compreender a vida seria sobretudo decompor a vivência humana, considerando como elemento central o que ele chama de experiência interna, aquilo que ao meu primitivo entendimento tomo por experimentação singular da vida. Nesse sentido retomaria a cândida crença de que todos num momento da vida se colocam a perguntar o que ela seja, e talvez seja nesse aspecto que se possa argumentar sobre a grandiosidade de um pensador a partir dos problemas formulados.

Todos perguntamos O que é a vida?, pressupõe-se. Ampliemos a crença. A mesma pergunta feita por um economista assume igual tonalidade que a pergunta feita por um sociólogo? Questão interessante, inclusive porque para Dilthey ambas ciências estariam classificadas nas ciências do espírito; para além a provocação remete à universalidade da pergunta, ousando de quê a grandiosidade não seja somente a formulação dos problemas, já que a própria formulação estaria a prever um acervo referencial para compreensão dos limites do problema. Ou seja, formular um problema não se restringe apenas a lançar perguntas, ainda, compreender a natureza do problema. Desse modo, imagino o quão interessante não seria reunir num espaço campestre, economista, pastor, sociólogo, dentista, engenheiro, oceanógrafo, historiador, físico, sertanejo, administrador, músico, filólogo, cozinheira, político profissional, andarilho e tantas outras ‘figuras’ com a mesma tarefa de rascunhar no céu o que seria (ou é) a vida. Nesse dia a vida deixaria de ser problema universal em questão ao dar lugar para o deslocamento da referência que teríamos até então do céu. A natureza do problema, hipoteticamente, diferiria conforme o ‘olhar do olheiro’, pois como diz um dos mestres 'o biólogo certamente toma ser vivo como algo bem distinto do que tomaria um artista'.

Na certa a grandiosidade do problema não se defronta somente pela formatação da área, no entanto o esforço para tentar demarcar certas diferenças ocorre justamente porque permanece a clareza de que postular o problema é manipular um certo acervo de experimentação singular. Assim, a pergunta O que é a vida? pode ser questão central de toda uma existência para um filósofo, no entanto pode ser etapa evolutiva dos dias de um executivo, por exemplo. Essa diferença não ocorreria, postula-se, apenas pela formatação das áreas, ainda, pela maneira como cada qual organiza o mundo em si e para si.

Aqui penso chegar num apontamento interessante. Uma pergunta universal com diferentes respostas, diferença não só de forma (físico responde pelo movimento, estatístico pelos números), sobertudo de conteúdo. Sendo assim, a equivalência da pergunta não ultrapassa os limites da linguagem, desse modo O que é a vida? seria sim um problema universal indiferente ao perguntador, no entanto, a resposta emaranhada desde o sempre no problema é quem nos revela a grandiosidade da questão, já que tendo aprendido com Dilthey, ao decompor pergunta e resposta, verificar-se-á que essas não passam de uma visão singular do mundo, um modo pelo qual o indivíduo enxerga e se coloca para vida.

Utilizando Dilthey parece que mais uma vez instrumentalizei minha crença na grandiosidade da pergunta e não da resposta, pois com a noção do enigma da vida permite-se compreender que a natureza da pergunta é justamente o prisma pelo qual o indivíduo vive, o foco pelo qual o indivíduo capta sua existência e inclusive a organiza, postulando certezas e simultaneamente as desfazendo.

No diálogo com Dilthey evoco, como não poderia depois de tamanha experiência estética, Henri Cartier Bresson, fotógrafo que parece não apenas escancarar nas suas obras a grandeza dos problemas, ainda nos revela que a resposta pode por vezes ser mais atormentadora que o precedente questionar.

Downtown, New York – 1947

Eis que a Dilthey o gato preto perguntaria: O que é a vida?. Julgo que provavelmente nenhuma resposta do filósofo atingiria minimamente qualquer resposta felina; doutro, o gato preto seria para Dilthey, postula-se, o próprio enigma da vida, visto e ouvido, no entanto não compreendido... pois se sabe perfeitamente o quão um olhar felino desmorona sem igual toda e qualquer certeza, ainda quando lançada na imensidão da solidão povoada de concreto.

Carol Gomes

8 de novembro de 2009

Sentir o Samba ao Res-sentí-lo

Um dia entrei por acidente num anfiteatro onde acontecia a palestra cujo tema era Ressentimento, atividade proposta por um projeto chamado Diálogos freudianos. Das palavras do convidado o que primeiro chegou aos meus ignorantes ouvidos foram: "O samba canta o ressentimento". Pronto! Isso se bem lembro na metade de 2007, num momento em que Cartola, Clara Nunes, Clementina de Jesus e Noel pairavam como autênticos intérpretes dos meus dias. Logo me lancei aos questionamentos ao conflitar o provável cantar ressentido do samba com versos singulares de tantos compositores das cuícas.

Fui consultar o Houaiss que me deu Ressentimento como mágoa que se guarda de uma ofensa ou de um mal que se recebeu; rancor; ofender-se, magoar-se, melindrar-se.

Ora, será que o samba canta o ressentimento? Não me soou muito bem essa sentença, no entanto até hoje paira na mente essas palavras... Titubiei na proposição de que o samba antes de ressentido seja desbravador de uma realidade não facilmente dada, tampouco de acesso automático.

Numa cortina singela faço meus recortes na tentativa de compreender o quão o samba revela realidade outra muito anterior ao ressentimento, para não dizer, indiferente.

A começar por Dona Inah elevando letra de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro, Olha Quem Chega:

Olha quem chega
Que grata surpresa
Aceite a minha mesa, a minha cama, o meu amor
Que seja aceito você que me abandonou
Entra que é tarde e fica à vontade
Meu samba de saudades veio dar as boas vindas
Perguntar pelas novidades
Guarde seus panos aqui e os desenganos em qualquer lugar
O perdão que você vai pedir
Não peça não que ele está onde eu sempre estou
Poeta não sabe guardar dissabor


A chamada Poeta não sabe guardar dissabor me aparece numa tamanha delicadeza que aos corações ressentidos seria uma gerra com derrota já declarada. Claro que a partida ‘talvez’ seja sim desilusões humanas, amores falidos ou não correspondidos, mas não poderia o samba além de remoer o sentimento, vivê-lo em abundância na expressão dos versos? Na batucada mole de cada palavra?

Lembro Rilke em Cartas a um Jovem Poeta na 1ª carta de 1903 atentar de que ao poeta ‘só existe um caminho: penetrar em si mesmo e procurar a necessidade que o faz escrever’ e ainda ‘aproximar-se então da natureza. Depois procurar, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde’. Ora, se o poeta do samba não guarda dissabor e abre as portas a quem não seria devido o perdão, certamente é porque retoma com diferença necessária, o começo, mostrando que do amor perdido retira-se um outro amor, e talvez, ouso, amadurecido, experimentado desde antes.

Rilke na mesma carta adverte o poeta de que ‘se o quotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser muito poeta para extrair as suas riquezas’, e assim se vê novamente nas palavras lacrimejadas do sambista ao arrancar da rotina paulistana a certeza de ser um diferente entre milhões de iguais da grande capital. Vai mais um recorte na costura da cortina novamente com Dona Inah cantando Eduardo Gudin e Paulo Vanzolini, Longe de Casa:

Longe de casa eu choro e não quero nada
Pois fora do chão ninguém quer e não pode nada
Sinto falta de São Paulo
De escutar na madrugada
Uns bordões de violões
E uma flauta a chorar prata
Dor de amor não me magoa
A saudade da garoa é que me mata
E eu saio pra rua
Assobiando comprido
Um samba comovido
Que Sivio Caldas cantasse
E me iludo que a garoa
Vem molhar a minha face

Será o choro do poeta só dele? Ah, como me lembro ao sair da terra aos pulos de alegria por me permitir voar pela abertura do mundo, no entanto ‘passados tempos’ uma voz interna começava a gritar e pedir os nossos, o calor do chão já conhecido. É assim que a voz do poeta acessa um espaço que só a ele é possível, só ele visualiza e sintetiza múltiplas individualidades, aqui ilustrado no samba. E como não poderia deixar de  fora, o recorte brilhante dos versos de Vicente Barreto e Paulo César Pinheiro em Na Volta que o Mundo Dá, que por sinal faz-se vibrante na voz de Mônica Salmaso:

Um dia eu senti um desejo profundo
De me aventurar nesse mundo
Pra ver onde o mundo vai dar
Saí do meu canto na beira do rio
E fui prum convés de navio
Seguindo pros rumos do mar
Pisei muito porto de língua estrangeira
Amei muita moça solteira
Fiz muita cantiga por lá
Varei cordilheira, geleira e deserto
O mundo pra mim ficou perto
E a terra parou de rodar

Com o tempo f
oi dando uma coisa em meu peito
Um aperto difícil da gente explicar
Saudade, não sei bem de quê
Tristeza, não sei bem por que
Vontade até sem querer de chorar
Angústia de não se entender
Um tédio que a gente nem crê
Anseio de tudo esquecer e voltar
Juntei os meus troços num saco de pano
Telegrafei pro meu mano
Dizendo que ia chegar
Agora aprendi por que o mundo dá volta
Quanto mais a gente se solta
Mais fica no mesmo lugar

Para manter o bloco de recortes em Eduardo Gudin retomo na voz da Dona Inah o samba do Velho Ateu. Vejamos como o poeta sintetiza a caduca discussão da superioridade divina e as maleficências mundanas, principalmente as atrocidades sociais e a pretensa igualdade iluminista. Se tantos filósofos propuseram tratados da superioridade divina, o poeta sambista coloca na pessoa de um bêbado o mesmo questionamento, por ironia ou não, caiu maravilhosamente na expressão familiar a tantas pessoas que se fazem igual questão:

Um velho ateu
Um bêbado, cantor, poeta
Na madrugada cantava essa canção-seresta
Se eu fosse deus
A vida bem que melhorava
Se eu fosse deus
Daria aos que não têm nada
E toda janela fechava
Pros versos que aquele poeta cantava
Talvez por medo das palavras
De um velho de mãos desarmadas

Pois bem, o ressentimento parece tomar um lado particularizado, talvez um movimento interno do indivíduo, e assim sendo não compreendo que o samba seja ressentido ou cante o ressentimento. Ora, o samba mostra-se anterior e simultaneamente além do ressentimento, pois das desilusões, das angústias, o samba abre frestas no escuro. Que essa abertura seja exaurir o sentimento, repetí-lo no batuque inúmeras vezes, de modo que a repetição proporcione um novo, um novo a partir da vibração de que o batuque se faz... aquela vibração da cuíca que levanta qualquer alma, que eleva a vôos sem possível mensuração de prazer. 


Clara Nunes, claridade total e sem igual ao evocar Tristeza Pé no Chão de Armando Fernandes:

Dei um aperto de saudade
No meu tamborim
Molhei o pano da cuíca
Com as minhas lágrimas
Dei meu tempo de espera
Para a marcação e cantei
A minha vida na avenida sem empolgação
...
Fiz o estandarte com as minhas mágoas
Usei como destaque a tua falsidade
Do nosso desacerto fiz meu samba enredo
Do velho som do minha surda dividi meus versos
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Nas platinelas do pandeiro coloquei surdina
Marquei o último ensaio em qualquer esquina
Manchei o verde esperança da nossa bandeira
Marquei o dia do desfile para quarta-feira
Vai manter a tradição

Vai meu bloco tristeza e pé no chão

Como linha para costurar os recortes e ampliar a perspectiva do samba como cantador de ressentimento, retomo além de Rilke, o filósofo Gilles Deleuze ao falar de estética da existência presente no pensamento de Foucault. Para Deleuze a noção de estética da existência implica noções éticas e estéticas já que ‘o estilo, num grande escritor, é sempre também um estilo de vida, de nenhum modo algo pessoal, mas a invenção de uma possibilidade de vida, de um modo de existência’, assim, tomando o que o filósofo chama de grande escritor por poeta/sambista, o samba se configura não apenas como expressão de angústia, ressentimento, além, a disponibilização de uma nova vida, estando essa no espaço da possibilidade ou não. Ora, o que se tenta ampliar é a noção de que o samba se faz grande obra, justamente, por mergulhar num âmago, num espaço que o eleva sobretudo dos aspectos pessoais da criação artística, nesse sentido do próprio ressentimento.

Novamente Dona Inah fissura numa canção cujo nome é familiar, Ressentimento. Composição de José Eduardo Rennó e Heron Coelho:

Cansei de falar desse jeito enroscado
E num samba canção dolorido
Vou dizer o que tenho vivido
Por pensar tanto assim em você
Eu sei perdoar mesmo quando traído
Ninguém samba estou decidido
A dizer o que tenho passado
Por pensar tanto assim em você
É sempre nosso parente que sai pela porta
Nossa semente de mangueira morta
E os indigentes que sem coração
Ressentem e dizem frases de beleza torta
De parceria com quem pela porta
Tráz melodia de samba canção

Pronto, aí está um samba que canta o ressentimento. Pergunta: esse samba canta o ressentimento ou exaure o ressentimento? O que me parece é que no casamento com as notas sentidas na audição, a dor transborda letra a letra a originar uma percepção nova, novidade esta que implica a compreensão do que seja beleza torta. Eis que aí parece que estaria o poeta lançando vida nova, trazendo na pressão do ritmo, uma imagem de beleza torta, talvez beleza que escorra da dor como pureza de sentimento.

O que seja a palavra Ressentimento que não a repetição do sentimento. Re- prefixo do latim cujo significado expressa retorno. Nesse sentido, com auxilio do samba cantado por Dona Inah podemos sim compreender o samba como cantador de ressentimento, pois o samba assim estaria repetindo o sentimento de modo a encontrar o novo, repetir noutro tom.

É com Dona Inah que fecho o conjunto de recortes na cantoria do Samba de Mágoas de Eduardo Gudin:

Depois eu vi q
ue não podia mais ficar assim
Feliz demais
Sem perceber que era enganador
Crescia dores por detrás do amor
Quebrando o vaso de jasmin
Anunciando a toque de clarim
Tempo ruim e isolador
Depois eu vi
Não era tanto para desesperar
Depois senti
Ao coração de novo apaixonar
Mesmo que seja para depois sofrer
Agora é hora de cantar
O samba novo jeito popular
De desaguar ou padecer
Sem se arrepender
Olhando a vida sem olhar para trás
Dizendo tudo o que a gente quer dizer
No samba de mágoa que a mágoa se desfaz

Eis que me parece uma das grandiosidades do samba, re-sentir para novo sentir, nas palavras do poeta/sambista de No samba de mágoa que a mágoa se desfaz. Aqui parece que a cortina se harmoniza ao tomar o ressentimento não como fim do samba, mas como meio para uma tal missão que talvez nem mesmo os maiores poetas do samba saibam qual seja, pois tanto em Rilke como em Deleuze a arte parece, aqui no toque do samba (canção), esse movimento necessário e tão desconhecido que revela realidades inacessíveis aos olhares desantentos.

Assim, um desconhecido possuidor, presente no ecoar do samba, seja para além de ressentir a disponibilização de uma nova vida, uma rasgadura no sentir...

Para tanto continuemos a ressentir tantos sambas maravilhosos... sambas que nos lançam em centésimos de segundos a tantos outros mundos desconhecidos, reveladores não apenas os que sejam porventura exteriores, mas ainda, por se fazerem desconhecidos de nós mesmos alocados em espaços interiores.
Carol Gomes