29 de junho de 2015

Uberlândia, 29 de junho de 2015.

Excelentíssima Presidente, Dilma Rousseff,

Em 15 de outubro de 2003, nos idos dos meus 20 anos, tomei essa mesma liberdade e escrevi para o presidente Lula. Na derradeira carta, fiz várias perguntas, dentre as quais: “É justo que os pobres continuem pagando a mordomia da elite brasileira?”; “Sr. Presidente, quem sou para lhe explicar a importância da educação na vida de um país?”. Muito bem, a carta foi despachada via Correios com certeza indubitável de que o presidente a teria em mãos. A certeza se justificava nos sonhos de uma jovem militante de esquerda na potência sonhadora dos 20 anos, sobretudo estudante bem conhecedora da política segregadora de grupos políticos da direita brasileira em Minas Gerais. Passados alguns meses, em 26 de janeiro de 2004, recebi uma correspondência do Gabinete Pessoal do Presidente da República, assinada por um diretor de Documentação Histórica com os seguintes dizeres: “Cara Ana Carolina, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva encarregou-nos de registrar o recebimento de sua carta e de agradecer os seus comentários”.

Com essa correspondência em mãos, pensei: documentação histórica?! Vira documentação histórica depois que o presidente lê?! Ora, eis a inocência que passados quase 12 anos já não mais gozo tanto. Sim, a carta havia virado arquivo para futuros estudantes, pesquisadores da historiografia brasileira, e por certo o presidente jamais tenha tido noção de que recebera uma carta de duas páginas de uma jovem estudante da cidade de Uberlândia. Entretanto, o que nos vale é o exercício da autonomia e a liberdade de assumir a tarefa de conversar com os pares, próximos e distantes.

Hoje, aos 31 anos volto a escrever, trata-se de um mesmo ato, a repetição de escrever à presidência do país, entretanto, eu e meu país acumulamos 12 anos de aprendizado desde aquela carta de 2003. Se antes a carta pedia atenção à educação, com desdobramentos reflexivos entristecidos com a realidade social, que insistia em partilhar com o presidente o que chamei de “angústia assassina”, hoje, quero fazer um pedido objetivo:

A implantação de um espaço cultural dedicado às artes no município de Uberlândia-MG com iniciativa orçamentária do governo federal. Espaço que possibilite, sobretudo, o desenvolvimento de projetos dedicados ao audiovisual e cinema. Sim, um espaço para exibição de filmes não comerciais amplamente disponíveis em outros ambientes, espaço para exibição da produção nacional, regional e local, bem como para exposição de trabalhos das artes visuais.

Ora, mas no que se justifica um pedido como esse?!
Excelentíssima presidente, certamente é do seu conhecimento que Uberlândia registra no IBGE quase 700 mil habitantes, bem como se apresenta enquanto um centro urbano de referência para outros municípios da região do Triângulo Mineiro. Entretanto, quais ‘equipamentos’ da política federal de cultura a cidade abriga? Infelizmente, nenhum. Não há Centros Culturais com projetos permanentes que possuam recursos para manutenção e continuidade, por exemplo aos moldes dos Centros Culturais da Caixa Econômica, Banco do Brasil, Correios. Não há um Museu de Imagem, Som, Arte Contemporânea, Arte Moderna. Sim, há política cultural desenvolvida pelo município, que destacadamente cresceu consideravelmente nos últimos anos, sobretudo no fortalecimento das tantas ações culturais que buscam fortalecer as tradições e a produção artística local. Estou certa de que o Ministério da Cultura e suas autarquias somam ações diretas e indiretas no município a partir de múltiplos programas, incluindo os pontos de cultura e convênios com Universidades, Instituto Federal, Associações, Grupos Culturais, Artísticos etc., entretanto demandamos mais, e é esse o objetivo da carta, o pedido por um Centro Cultural.

Pergunta-se: Por que um Centro Cultural? O Centro Cultural não é um dispositivo de concreto que reforça segregação social ao possibilitar falsa inclusão ao eleger um ambiente como oficialidade de artes e culturas?

O questionamento faz sentindo, quando, a posteriori, um centro urbano usufrui de espaços diversos dedicados, exclusivamente, às artes e culturas, entretanto, um Centro Cultural com recurso permanente representa em uma cidade do interior, concretização simbólica de que desenvolvimento não se funda e não se encerra em desenvolvimento econômico. Historicamente Uberlândia publiciza sucesso econômico, por outro lado, escamoteia a ausência de política cultural enquanto projeto de diversidade artística e cultural. Não por acaso muito se escuta nas ruas da cidade: “Uberlândia não tem cultura, tem mudado, mas ainda falta muito”. Compreendamos que nessa fala há um expresso desejo afirmativo por fluxos múltiplos culturais para que as tradições continuem e se mantenham presentes, bem como a inserção de outros movimentos artísticos e culturais que circulam na agenda cultural nacional. Em outros termos, um Centro Cultural para que a população tenha acesso a produções artísticas que marcam as dobras e redobras das histórias oficial e não oficial das artes, marcações que por motivos diversos são produzidos e recebidos por pessoas de países distintos, exemplifico: mostras de cinema, exposições da história da arte, apresentações cênicas e musicais. O que é uma cidade que tem carência de movimentação artística e cultural?

Falava-nos disso Leminski nos idos de 1986 sobre a indispensável e fundante referência cultural de um território:
Faz muita falta [...] o húmus popular, o substrato de formas demóticas, por baixo, fertilizando, estimulando, provocando. Não há manifestações artísticas populares autônomas, de base. Sem essa raiz popular, a cidade - capitaneada pela sua classe-média - parece não se encontrar apta a gerar uma cultura própria que se coloque à altura de outros grandes centros brasileiros. À classe média, falta verticalidade. Profundidade no tempo. Raízes. Sem raízes e sem carência, que fazer? (Leminski no livro 'Anseios crípticos' nos ensaios "Sem sexo, neca de criação" e "Culturitiba" publicados no livro em 1986)
Presidenta, é bem certo que o renomado escritor se referia à capital Curitiba, sendo que desdobrando suas palavras somos levados a um reconhecimento, pois embora sejamos herdeiros da imponente cultura mineira, bem como das vizinhanças das culturas goiana e paulista, e que indiscutivelmente possuímos raízes populares na cultura africana, indígena, caipira, interioranamente mineira, talvez ainda não nos afirmamos enquanto possuidores de húmus cultural num município com seus 126 anos. Enquanto Leminiski falava em húmus popular em 1986, falamos em 2015 em húmus cultural, sendo que um não exclui o outro, muito além, um amplia o outro em relação constituinte de diversidade, nesse sentido, nosso município quer mais, no desejo de fortalecimento das tradições e também no contato com os marcos das artes de Museus, das artes de rua dos grandes centros, das artes tecnológicas, das artes industriais.

Sabe presidente Dilma, aqui vou partilhar contigo uma tristeza lamentosa. Uberlândia não tem nenhuma sala de cinema cuja programação não tenha predomínio de produção comercial dos estúdios americanos. Ora, não há problema na programação, há problema na exclusividade para uma cidade com quase 700 mil habitantes. Há projetos cineclubistas, sim, projetos importantíssimos, mas a produção nacional que tem sido produzida com excelência, uberlandenses não veem, por motivos diversos, mas sobretudo, por falta de espaço para tal. Nosso último cinema de rua foi recentemente fechado, o Cine It que figurava politicamente como espaço do cinema de rua, de pornografia, esse mesmo cinema que tanto deve às nossas pornochanchadas brasileiras. O Cine Bristol foi assassinado e virou loja de vendas. Não temos para onde ir se não para os filmes no computador. Esse ano o Brasil recebe uma Mostra de Cinema Brasileiro na França, onde li nos blogs que figuram na programação vários filmes recentes produzidos por cineastas jovens, mas ora, minha cidade não conhece, conhecem sim os uberlandenses que podem e caem nas estradas em busca da cena cultural de outros centros urbanos. Acredite, por aqui não vimos “O som ao redor” no cinema, não vimos “A casa grande”, não vimos “O lobo atrás da porta”, não vimos “A história da eternidade”, não vimos nem mesmo o “O sal da terra” dedicado ao fotógrafo Sebastião Salgado, que por sinal, é mineiro.

Pergunto à senhora, perguntando a mim mesma: É justo que sejamos cerceados de aplaudir nossas jovens e históricas produções nacionais? O quanto se muda uma realidade social sem arte e cultura?

Esses dias estive por Viçosa, outra cidade do interior de Minas e por lá tive a grande oportunidade de compreender que há uma pergunta que todo amante da sociedade deve fazer, sobretudo nós que um dia militamos por amar a vida e cada um ao seu modo deseja mudar, nas micros e nas macros revoluções: “É possível revolução sem arte?”.

Excelentíssima presidente, em 2003 eu pedia ao presidente Lula mais recursos para educação enquanto estratégia única para acabar com a injustiça social; mudamos, acredito honestamente, para melhor, eu e o país, por isso, hoje peço arte e cultura para minha cidade.

Disse-nos o presidente Lula: “quem tem fome tem urgência”. Todo trabalhador reconhece na pele essa máxima. Passada a urgência da fome que dá vitalidade, ampliamos e passamos a pensar sobre o que comer, como comer, porque comer e com quem comer, eis então que pedimos o que aquele grupo musical cantou: “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”.

Os anos em que as condições de pensar sobre a comida chegaram, de 2003 para 2015, muitas mudanças, novos movimentos, e hoje, para mim e minha cidade, te peço arte como estratégia de alicerçar o tão desejado desenvolvimento, este que não se encerra na economia, mas que antes, se funda na autonomia e reconhecimento humanos.

Em respeito e reconhecimento, agradeço.

Ana Carolina

24 de junho de 2015

Dos dilemas que ensinam

Fiz uma escolha hoje a tarde por certo anunciada. Depois de comer pães de queijo caseiros na casa da minha mãe, acompanhado de um guaraná bem gelado, meu dilema era escolher entre 'Casa Grande', filme nacional de 2014 dirigido por Felipe Barbosa ou 'O nascimento de uma nação', filme americano de 1915 dirigido por Griffith.

Por que dilema? Porque assistir o Griffith seria seguir o protocolo diário de estudo, afinal, para quem tem andado há alguns dias por páginas que insistem em tratar a "montagem" como um dos aspectos que fizeram do cinema a arte no trato das imagens, movimento e tempo, assistir ao clássico de 1915 seria um passo e tanto na agenda.

Ora, se nas mesmas páginas que recorrentemente destacam a 'montagem' há invocações ao diretor americano, encontro também, de modo latente, uma insistência, por vezes sedutoramente desmedida, em dar ouvido ao intervalo seletivo, cujo mecanismo imperador é, quiçá, afecção.

Pois bem, se havia um intervalo ínfimo cujo sistema nervoso central multiplicado em atividade de regiões distintas acionadas para decidir qual resposta figurar como reação, resolvi meu dilema tão particular de uma tarde de quarta-feira mineira por 'Casa Grande'.

Por que 'Casa Grande'? Porque 'Casa Grande' é nacional, e de longas tenho apreço pela produção brasileira. Sem delongas em justificação, trata de apreço afetivo e ponto.

O filme começou e logo fui pensando: uai, mas está numa cara de comédia-romântica estilo Woody Allen. A primeira cena do filme, um plano geral da frente de uma casa de três andares, noite com a casa toda iluminada, um homem no jardim se banhando na piscina, que por sinal tinha duas partes, a parte do nado e a parte da massagem. Ao fundo uma música clássica. Alguns minutos depois o homem sai da piscina, desliga a música e apaga as luzes, uma por vez. Ora, mas a música era parte direta do plano?! não era uma música externa de abertura do filme. Primeira sacada interessante de direção.

O filme vai se desenrolando, a gente prossegue fazendo inúmeras análises visuais, o que há magno no filme que ganhou tantas premiações, críticas elogiosas e foi escolhido para figurar entre os filmes da Mostra de Cinema Brasileiro na França?!

As cenas vão correndo e a mim surgiu imediatamente outro filme recente da produção nacional, 'O som ao redor', do diretor Kléber Mendonça. O filme segue e inevitavelmente narrativas de inúmeras novelas globais vão surgindo como influências quase veladas. Aparece também o filme 'Domésticas' do Gabriel Mascaro de 2013 (por sinal, filme cuja abordagem narrativa muito me desagradou) e desse modo tantas outras produções vão me surgindo, 'Central do Brasil', 'Cidade de Deus'...

Vai lá, o que me inquieta a escrever depois de assistir 'Casa Branca' é um duplo impulso de desgosto e de encantamento. Ora, encantamento porque a história narrada é familiar, genuinamente brasileira, sobretudo de um Brasil que vai mastigando suas mutações sociais, bem como familiar por ter figurado em outros filmes. Num outro movimento, desgosto por um único motivo: os nossos filmes serão recorrentemente considerados 'bons' filmes partindo da abordagem das nossas feridas sociais?!

Os elementos textuais são recorrentes: a empregada que recebe o filho da patroa toda noite mas não trepa com ele. A família de histórico popular que ascende a partir do esforço pessoal do pai que gozou anos de cargo em mercado financeiro. A esposa que fala francês e não gosta de palavrões em casa, nem tampouco qualquer referência a sexo, uma camisinha no lixo da casa é motivo de demissão da empregada. A esposa que para negar sexo com o marido, finge que está rezando. Pai projeta no filho esperança de sucesso financeiro. Filho constrói afeto pelo motorista que o levava todos os dias para escola, inclusive é ao motorista que pede conselhos para conseguir a primeira transa. Filho apaixona por menina morena conhecida no ônibus. Filho se revolta contra os pais e vai para favela reencontrar os empregados, aprende a dançar forró, fumar e trepa pela primeira vez, sim, com a ex empregada da sua casa. Detalhe que jamais passaria: uma empregada negra e evangélica e outra gostosona e brega.

Assim como em 'O som ao redor', o desenrolar da história traz um apontamento de narrar os fatos de um suposto ângulo da geração filha ou neta. Em 'Casa Grande', o pivô é o filho, jovem de 17 anos, portanto nascido nos idos 90. O pai, geração anterior, possivelmente nascido nos finais dos 70. A geração do filho figura num desdobramento de orfandade, uma geração que por ter tido tudo, nada consegue fazer, nem mesmo conseguir autonomamente a primeira trepada. O pai, goza de uma geração que conseguiu tanta coisa que endureceu, enrijeceu que não consegue nem mesmo a trepada com a esposa que diariamente dorme do seu lado.

Ora, será isso?

Não descredencio o apontamento que destoa pais e filhos, sobretudo na marcação histórica dos 70 aos 90, mas vai lá, se de um lado há o que tanto fez que enrijeceu e de de outro há o que nada fez que esmoreceu, que víscera social é essa que nos faz minguar?!

Ao fim, o troféu do filho rebelde é ir para a favela e conseguir sua primeira trepada com a ex empregada, enquanto, simultaneamente os pais, geração de 70, sofrem com o sumiço do filho que não dá notícias.

É esse o Brasil repertório que endossa sucesso de alguns filmes bem recebidos das premiações?

O 'Casa Grande' quem sabe cause estranheza e um tímido desgosto, justamente por se mostrar familiar; familiar no questionamento sobre os rumos de um geração, não a dos 70 e sim dos 90, justamente, a que me sucede, porque nos angustiamos com uma geração de open bar cujo sabor da bebida pouco importa, uma geração de baladas cuja música só vale se embalar beijos múltiplos contabilizados nos dedos, uma geração cuja dificuldade de disparar autonomia parece, efetivamente, resvalar num ostracismo assustador, em que atitudes heroicas parecem construídas numa rebeldia que opta gratuitamente por drogas legalizadas, deveras porque o filme traz essa angustia numa perspectiva com purpurinas ao estilo das novelas da globo.

Me surge, ao final, 'Quase dois irmãos', a filha que vai ao morro! o morro que vai à filha! ao fim, o negro que sempre morre, o branco que sempre entra numa fria, vai ao hospital e volta para casa.

A geração do ostracismo é responsável por algo diante da geração enrijecida?! Se esta não é a pergunta, por que insistirmos nesse martírio de heranças mal recebidas e pouco compreendidas?!

22 de junho de 2015

Não estou falando de Curitiba, apenas lendo essa do Leminski e pensando em Uberlândia... e claro, a linha de fogo que, magnificamente, o ministro Juca Ferreira abriu ao diretamente colocar Cultura como estratégia de desenvolvimento, porque quando ele diz isso, só consigo pensar que está falando num desenvolvimento muito mais revolucionário do que a perspectiva econômica desenvolvimentista que lidera as forças no interior dos últimos mandatos do governo federal. Eis o que dizia Leminski nos idos de 1986...
"Faz muita falta em Curitiba o húmus popular, o substrato de formas demóticas, por baixo, fertilizando, estimulando, provocando. Curitiba não tem folclore. Não há manifestações artísticas populares autônomas, de base. Sem essa raiz popular, a cidade - capitaneada pela sua classe-média - parece não se encontrar apta a gerar uma cultura própria que se coloque à altura de outros grandes centros brasileiros.
À classe média, falta verticalidade. Profundidade no tempo. Raízes. Sem raízes e sem carência, que fazer?"
(Leminski no livro 'Anseios crípticos' nos ensaios "Sem sexo, neca de criação" e "Culturitiba" publicados no livro em 1986)

19 de junho de 2015

dos minguados do tempo de uma antropologia em escrita...
(só porque nunca mais a história do olho do Bataille saiu dos meus olhos)


A capital da vez era a mineira, essa cujo nome traz duplamente uma reflexão estética: uma beleza com horizonte móvel, pois a gente intui esse belo horizonte, embora ele sempre dê um passo para não ser alcançado, eis BH.

Véspera de feriado santo e o que de fato faz jus à santidade é a paciência que as filas e tumultos nos exigem. Fila para pegar ônibus, fila para comprar bilhete, fila para embarcar, tumulto no detector de metal, tumulto de carros para entrar nos estacionamentos, e quando menos espero me vejo premiada a compor um interessantíssimo tumulto, cujas filas são adornos que na confusão das ansiedades particulares fazem do ambiente um território de experimentação imageticamente antropológico: a rodoviária.

A imagem corresponderia com fidelidade de sentido se alguém dissesse: samba no pé que a aqui é a sapucaí. Gente em tudo quanto é cadeira, muretinha, degrau de escada, pilastras transformadas em encosto para uma multidão sentada no chão. Cada qual num samba com ritmo vibrando conforme o tempo de espera para a o embarque.

Identifiquei duas ilhas em lados opostos do piso térreo com tomadas para recarrega dos eletrônicos. Pensa numa disputa de são silvestre com distância de 1 metro, que fazia da vigia a melhor estratégica para o campeão que desejava uma mera tomada desprovida de valoração estética, embora, nesses nossos tempos, valiosa fonte de conectividade. Engraçado como há diferença no quantitativo de tomadas numa casa construída há 15 anos quando comparada às casas com idade menor que 5 anos. Sem contar  que o famoso T virou fichinha aos pés das extensões milagrosas.

Essas ilhas, sabe se lá por qual motivo inexpresso me jogaram de súbito numa lembrança: "meu desafio é parar de fotografar coisas e fotografar gente também". Ora, saltei dessa lembrança para a provocação: "No meio desse formigueiro meu desafio é escrever um tipo de antropologia das coisas sem me fixar nos diálogos verbalizados entre humanos".

Sim!, ergueram-se então as ilhas da conectividade, que por ironia traziam estampadas o nome bem sugestivo do patrocinador: vivo. Veja bem, eu que me provocava a escrever adendos referenciados por uma antropologia das coisas, encontrei nas 2 coisas que me surgiram, uma qualidade cuja abrangência ultrapassava o humano, qual seja: vida (em sua derivação publicitária).

Fiquei minutos e minutos olhando para aquela ilha e enquanto o tempo corria, era como se todo o universo passasse pela cabeça no formato de um filme com cenas aceleradas. Era interessantíssimo, mas quando fixava os olhos na ilha, sem muito demorar senti atração pela multidão dos olhos anônimos que corriam de um lado para o outro contabilizando o prazo final para chamada do embarque. Era isso, a minha sedução era pela antropologia do olho, que como coisa trazia o humano compreendido em sua extensão.

Migrei da ilha para os olhos, dos olhos para contações mirabolantes de nada improváveis pensamentos que saltavam dos olhos das gentes. Assim, coisifiquei antropologicamente a multidão da rodoviária e segui pulando de olho em olho, vendo e inventando narrativas.

Vi os olhos de um rapaz fixados no espaço e ligeiros em pensamentos. Ele tinha barbas ruivas, cabelos castanhos com entradas laterais que anunciavam a calvície, mas vai lá, o que me interessava era mergulhar  no fluxo dos seus pensamentos que apenas através dos olhos eu conseguiria construtivamente imaginar. Quando cogitei (cogito!) que ele pensava no trabalho que havia finalizado sobre os relatórios de produtividade do mês de março, repentinamente chegou uma moça e o abraçou, ops... o pensamento mudou?! o dele não sei, mas o meu transfigurou (figura!) imediatamente, porque se antes era trabalho, agora era sexo.

E assim fui seguindo na antropologia do olho, até que o fato que destrona a observação segura do olhante antropológico imperou. Como? Quando passei de um olho alheio para outro, no meio do caminho, bem entre um corte e outro do movimento, fui surpreendida por um outro olho que fixadamente me examinava, como que intrigado com o meu jeito de olhar e em seguida escrever.

Três cortes, portanto, o olho que vê e escreve; o olho visto que fala em silêncio para o que escreve; o olho que examina o que escreve...

(sem continuidades... o ônibus chegou, as forças minguaram...)



17 de junho de 2015

Frio e Calor, uma quentura

Hoje quero escrever para o convívio dos últimos dias. Uma convivência estranha, forçosa e que tem me levado ao limite das forças.
É o Frio. Sim, ele bateu! Mas por que?
Um corpo cujas tatuagens são todas de quentura... tatuagens quentes da capital cearense, passando pelo cerrado central goiano ao cerrado mineiro triangulino. Um corpo cujas escolhas literárias e filosóficas passam recorrentemente por zonas temperadas que destacam com insistência quenturas em palavras.
Ora, o que fazer com esse Frio?
Por onde e como adentrá-lo para atingir sua região calorosa?
Sempre há o aquecido, mesmo no mais rigoroso dos tempos morbidamente gelados.
A mão já não sai debaixo dos tecidos para escrever nem uma letra. O pensamento insiste com vontade na continuidade das leituras, mas vai cedendo a cada queda no termômetro.
Inegavelmente há diferença nas escritas em acordo com forças térmicas que nos rondam.
O desafio mais problemático se impõe na busca por um fiasco de momento em que a indeterminação seja tão plena que Frio e Calor se encontrem num imbróglio indissociável, e, assim, um e outro se comam antropofagicamente.
São personagens distintas. O Calor te exige nu, aberto, suando. O Frio te exige excessivamente vestido, fechado, seco. O momento do encontro se dá duplamente: no banho e no chá, para um, água fria, para outro, água quente.
Sim, sinistro. O Frio pede a todo momento um banho Quente. O Calor pede um banho Frio. Fiasco da indeterminação?! Ambos lhe pedem justamente o que não tem para que sorrateiramente se encontrem.
O chá do Frio é obrigatoriamente quente, daí gengibre e canela. O chá do Calor é por sobrevivência Frio, daí o capim cidreira com limão gelado.
Frio e Calor não expressam uma relação dialética, se dão justamente na afirmação um do outro... é absurdamente chocante! O Frio afirma o Calor a cada vez que se mostra mais Frio.
Já não mais sei... e enquanto tal, o corpo vai virando e se revirando como que deitado numa pedra de gelo que queima como que sendo fogueira!
(para os dias em que Curitiba me deu 1° grau e meu corpo sofreu)
Carol Gomes

16 de junho de 2015

Nietzsche diz no aforismo de 'A Gaia Ciência' intitulado "Amizade estelar":
Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois navios que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho; podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos – e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol. Parecendo haver chegado ao seu destino e ter tido um só destino. Mas, então, a todo-poderosa força de nossa missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos, e talvez nunca mais nos vejamos de novo – ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos reconhecermos: os diferentes mares e sóis nos modificaram! Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é da lei acima de nós: justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos – elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade. – E assim crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos de ser inimigos na Terra.

Deleuze em entrevista diz sobre a Amizade:
A amizade. Por que se é amigo de alguém? Para mim, é uma questão de percepção. É o fato de... Não o fato de ter idéias em comum. O que quer dizer “ter coisas em comum com alguém”? Vou dizer banalidades, mas é se entender sem precisar explicar. Não é a partir de idéias em comum, mas de uma linguagem em comum, ou de uma pré-linguagem em comum. Há pessoas sobre as quais posso afirmar que não entendo nada do que dizem, mesmo coisas simples como: “Passe-me o sal”. Não consigo entender. E há pessoas que me falam de um assunto totalmente abstrato, sobre o qual posso não concordar, mas entendo tudo o que dizem. Quer dizer que tenho algo a dizer-lhes e elas a mim. E não é pela comunhão de idéias. Há um mistério aí. Há uma base indeterminada... É verdade que há um grande mistério no fato de se ter algo a dizer a alguém, de se entender mesmo sem comunhão de idéias, sem que se precise estar sempre voltando ao assunto. Tenho uma hipótese: cada um de nós está apto a entender um determinado tipo de charme. Ninguém consegue entender todos os tipos ao mesmo tempo. Há uma percepção do charme. Quando falo de charme não quero supor absolutamente nada de homossexualidade dentro da amizade. Nada disso. Mas um gesto, um pensamento de alguém, mesmo antes que este seja significante, um pudor de alguém são fontes de charme que têm tanto a ver com a vida, que vão até as raízes vitais que é assim que se torna amigo de alguém. Vejamos o exemplo de frases! Há frases que só podem ser ditas se a pessoa que as diz for muito vulgar ou abjeta. Seria preciso pensar em exemplos e não temos tempo. Mas cada um de nós, ao ouvir uma frase deste nível, pensa: “O que acabei de ouvir? Que imundicie é essa?” Não pense que pode soltar uma frase destas e tentar voltar atrás, não dá mais. O contrário também vale para o charme. Há frases insignificantes que têm tanto charme e mostram tanta delicadeza que, imediatamente, você acha que aquela pessoa é sua, não no sentido de propriedade, mas é sua e você espera ser dela. Neste momento nasce a amizade. Há de fato uma questão de percepção. Perceber algo que lhe convém, que ensina, que abre e revela alguma coisa.


Durante um tempo adolescente nosso sonho mais urgente e ousado era formar uma banda, claro!, ao estilo Legião Urbana, afinal os anos bem vividos nos idos dos 90 exigiam ter na ponta da língua “Faroeste Caboclo” com todas as pausas e entonações dignas de um charme dado à rebeldia.

Cabe um pergunta: será esse o melhor e mais nobre início de um texto cujo objetivo nada útil mas persistente na ânsia por escolher palavras ímpares de exaltação de uma amizade? Recomecemos...

O amigo pode não saber de antemão que quando ele diz: “escreva um texto bem lindo sobre a nossa amizade”, em fato está num ato inesperado e inimaginável, colocando o universo na palma da mão e dizendo: “Decifra!”

O que você escreveria diante de um pedido assim? Talvez devesse escrever com a luz, e então seria uma fotografia numa grama verde do parque, tendo no primeiro plano uma roda gigante horizontal com banquinhos coloridos. Quem sabe devesse escrever com o som, e então seria uma música mineira sem pudores modistas e eruditos que evocassem as batidas da ‘geração lá lá’. Sim! do Clube da Esquina. Talvez escrevesse nos moldes de uma narrativa infantil, daquelas vibrações que fazem da vida adulta, recorrentemente, a afirmação de uma infância desafiadora porque exige leveza construída pós titubeios do existir. Talvez não escrevesse e usando da habilidade manual fizesse um presentinho tão simples arredio a qualquer fetiche, sobretudo tendo como matéria prima o papel do maço dos cigarros que jamais foram fumados. Sim!, aquela florzinha que você só faz para os que afetivamente te atravessam. Talvez fizesse uma colagem com vários trechos de músicas da adolescência e enviasse por correios. Talvez buscasse na literatura passagens belíssimas em referência à amizade e junto a uma muda de manjericão e entregasse pessoalmente numa visita surpresa. Melhor ainda, sem escrita, sem fotografia, sem florzinha artesanal, sem colagem, sem citações literárias e manjericão, sem textos... nada, nada!

Como um ‘nada’ para atender ao pedido do amigo? Simplesmente porque é preciso dizer sem palavras para o amigo que durante dias você se debruçou pensando e repensando, e que não tendo conseguido encontrar a melhor escrita, o melhor presente, a melhor demonstração de carinho, em fato, você passou por possibilidades conhecidas para dizer dessa amizade. Tendo passado por todas as possibilidades alcançadas pela mente e ainda sim não tendo encontrado nada para significar a amizade, o mais lindo que poderia ser feito o foi nas tentativas que concluíram pela abertura do texto que deseja ser o mais magno e agradável de ser lido.

A abertura do texto não escrito é essa que tem um monte de palavras, e que na pulsão e num fluxo de afetos agitados se consegue ler o que vai sendo posto nos entrelinhas. É isso, é esse o texto de uma amizade com cultivo livre, sem obrigações e possessividades; é como o cultivo de uma horta que você sempre desejou em casa mas que por motivos diversos nunca concretizou, embora todos os dias andando pelo mundo você aguou plantas dos passeios, canteiros de praças, jardins de casas anônimas... sim, é um cultivo anônimo, sem refletores e nobre em existência.

Eu poderia escrever um texto florido, entretanto, escolhi, porque o universo se faz nas escolhas, abrir com leveza a escrita para que as energias passassem, per-sentindo que hoje a mais linda palavra seria a abertura, que ao seu lado traria leveza... Eis então que o melhor texto haveria de não ser escrito porque aí sim ele seria lido tendo nas suas partes tudo que se poderia dizer e fazer por um amigo.

[para minha amiga Renata das memórias alegres *** 
texto escrito em 06abril2015 numa segunda-feira 
noturna viçosense, ali, sentada num 
botequinho ao pé da ladeira que dá 
acesso à morada da família Faria]