25 de setembro de 2011

Reflexões tropeçadas 

É bem possível que todos os dias tenho muita vontade de escrever sobre a vida, principalmente no início da madrugada. E digo que distante de uma tradição de coruja de minerva, a vontade pela escrita me surge como tradução de instantes singulares cozidos e recozidos, como se carecessem da escrita para ‘sentirem-se sentidos’.

Sim! Escrevo motivada por esparsos minutos que de tão singulares reluzem brilho diferente, e então ficam a martelar... martelar... na mente; mas só escrevendo é possível no instante das letras, sentir, efetivamente, o viver.

Por exemplo. Há uma semana, presenciei de um senhor técnico em modelos da odontologia, o vomitar atroz sobre um dente como se pronunciasse as mais belas palavras do seu acervo linguístico: ‘Ele caiu como um bezerro’. Puxa! Como pode um indivíduo dizer algo do gênero?! Na hora me senti eletrocutada numa voltagem assassina, tanto pelo dente quanto pelo bezerro. O bezerro espelhado em um dente e o dente expressando um bezerro. Enquanto modo de vida, a frase me soou mais assustadora porque toma o bezerro, tão e somente, como uma coisa desprovida de qualquer natureza, que como uma pedra, depois de arrancados seus suspiros, o bezerro cai, por vezes, como um dente.

E assim foi, uma semana a frase do tal técnico martelando assombrosamente minhas reflexões. Como pode um dente-bezerro e um bezerro-dente? Cadê o mínimo de pudor do dito cujo em propagandear a morte tão facilmente. Confesso que senti tanta repulsa do tal técnico, que por vezes tive que me segurar para não lhes dizer: ‘O dente cai tal qual um bezerro, e você tal qual uma barata nojenta produzida por uma época de muitos lixos’. Mas não, ponderei que era muito pequena em tamanho e força para abusar do sistema nervoso do moço.

Passados alguns dias, numa raridade quase histórica, ligo a TV de manhã e vejo o discurso da presidenta Dilma na tal reunião da ONU. Pois bem, ela em uma roupa estampada sem muita beleza falando tal qual uma generala cujos pensamentos são processados em dígitos codificados, sobretudo em números cifrados, quando não em gráficos, afinal, a moça autoridade dedicou-se ao feito profissional da ciência econômica. Ocorre que o discurso da generala mostrou-se interessante, até que me coloquei a titubear em reminiscências de alguns aspectos do último processo eleitoral, entre os quais, a educação no Brasil. Enquanto ela falava, descontroladamente, do lado externo da TV, eu pensava: e a greve dos funcionários dos Correios, que enfrentam sol escaldante e ganham menos de 800 pratinhas, correndo; a greve dos técnicos em educação nas instituições federais que têm auxílio alimentação de 304 pratinhas para comprar cesta básica do mês, correndo; a greve de trabalhadores da construção civil dos ultra-megas estádios da Copa que labutam sem assistência saúde (conforme divulgado pela imprensa), correndo; greve de professores estaduais de educação básica que se matam em aulas com piso de 712 pratinhas, correndo; enfim, algumas tantas coisinhas acontecendo, em terra colonizada e gorada com ‘aqui tudo que se planta dá’, e a presidenta com aquela roupa de estampa estranha parecendo uma proclamadora de vestidos: ‘minha avó-amélia é que foi mulher de verdade’.

Certamente minha ingenuidade não aponta para um desengano de que estar ou não na ONU fazendo discursos, expressa outra face da política institucional, que por certo, nos conchaves do poder nacionalizado seja fundamental; a reflexão tropeça em termos de formalismo do poder. Ora, ainda que desconhecedora dos palestinos, simpatizo sedutoramente com a causa do Estado deles, embora eu permaneça nos titubeios entre perguntas sobre o Estado, o poder no/do Estado; mas vai lá, confesso ter admirado a frase do presidente-caricatura da Venezuela, Chávez, que em carta à ONU onde citou o filósofo francês Gilles Deleuze, disse em pureza problemática: "no es un conflicto milenario sino contemporáneo; no es un conflicto que nació en el Medio Oriente sino en Europa.". Pois bem, longe de eu querer que a excelentíssima Dilma se meta em polêmicas na política externa, tal qual parece ser a especialidade do Chávez, mas é bem verdade que a frase do moço autoridade cabe também para questões fundamentais em terra de ‘brasilis’. 

Não é passada a hora de nos divorciarmos do discurso de herança histórica da maldição da educação no Brasil? A pergunta é séria, sincera e não sarcástica.

Comecei a escrita falando de vida, dente e bezerro. Tudo bem! Não é redação de processo seletivo e nem dissertação, são tropeços.

Em quê a frase do Chávez, endereçada à ONU, relaciona-se com o dente, o bezerro, a Dilma, a educação brasileira e a minha vontade de escrever sentindo a vida? Outra pergunta séria, sincera e quase não sarcástica.

A segunda pergunta é mais fácil de postular uma resposta. Um ponto da frase do venezuelano reúne todo mundo de mãos dadas: dente-bezerro-Dilma-educação-vida. Pimba, qual ponto? A palavra ‘contemporâneo’.

O que um dente tem de contemporâneo? Hoje se desfaz de dentes por estética facial, ainda que isso implique dores.

O que um bezerro tem de contemporâneo? Há pessoas que o veem como animal possuidor de direitos, sobretudo fundamentados a partir do seu sistema nervoso; e há pessoas que o veem como um ‘bifão’, pessoas capazes de criar gado no quintal, dar-lhe nome de estimação e depois mandar para forca a fim de degustar um filé mal passado (esse tipo me lembra o técnico-barata já citado).

O que a Dilma tem de contemporâneo? A roupa no discurso da ONU passa longe de moda contemporânea, mas vai lá, talvez (veja bem, talvez) contemporâneo seja realmente o que ela destacou sobre o pioneirismo da sua pessoa feminina na abertura da tal reunião. Uma fala altamente, para os meus ouvidos, prolixa e cheia de diretrizes engessadas sob a égide da superestrutura econômica. Ouso, na imaturidade da leitura dos escritos de Marx, dizer que marxista verdadeiramente é a Dilma e não o Lula, sendo que este está mais para samba ‘zeca pagodinho... deixa a vida me levar’. Brincadeiras a parte, não tem erro de diagnóstico no discurso da presidenta, ela é em personificação os relatórios constituídos de gráficos (modelos ‘linha’, ‘dispersão’ e ‘radar’) e planilhas ‘xls’ monstruosas, daquelas bem coloridas e com números minúsculos em fonte 6 com fórmulas emendadas umas nas outras que qualquer assopro no teclado causa crise nas bolsas especulativas do país. Ufa! Presidenta competente que até para adjetivar dispende trabalho técnico.

O que a educação tem de contemporâneo? Uma crise faminta; é isso que ela tem. Uma crise faminta para sair dela mesma. A crise na educação, aparentemente, não se quer, mas insiste-se em alimentá-la forçadamente. Como se alimenta essa crise forçadamente? Fazendo como nossa presidenta, em discurso eleitoral, tal qual prática tradicional da política institucional, esbravejou prioridades educacionais, numa retórica empolgante conquistou professores, pesquisadores, estudantes, e passados meses de execução, olhe-se as áreas prioritárias de investimento. Mesmo nas pesquisas, a página do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, vulgo, CNPQ, publicita que em 2010 a área que mais recebeu pesquisa foi Agronomia, batendo seus 6,63% de participação nos investimentos de pesquisa, seguido da Química, Física e Engenharia Elétrica. Obviamente não acredito que seja preciso investir mais em pesquisas na área da Educação, já tem muita pesquisa redundante, desinteressante e desinteressada, perdida de objeto de estudo; embora, por outro aspecto, confesso que me mantenho no esforço para crer que tal investimento em Agronomia seja prioridade de área em sintonia com o combate à pobreza, na fórmula em ‘xls’: mais alimentos, menos pessoas famintas; distante de priorizar a fórmula: mais transgênicos, mais alimentos, mais exportação. Ora, ainda no discurso da ONU, a moça institucional falou em não buscar responsáveis pelas crises e sim soluções, falou ainda em resolver as causas. Recorto a fala e numa colagem, seria proveitoso para o contemporâneo da educação brasileira, que ela pensasse de modo semelhante na educação. Cientista opera com causas? Pois bem, ela é cientista aplicada à economia, num deslocamento não muito difícil consegue-se observar a educação a partir das causas sob o prisma dos que se postulam cientistas da educação valendo-se da pergunta: Quais as causas da crise na educação brasileira? Pergunta que vale um prêmio ‘joínha do século brasileiro’ para a cabeça pensante que responder. Desconfiança número 1 na linguagem de cientistas: o modelo vigente é na parceria dedução-indução sem oscilações catastróficas de aplicabilidade? Olhemos para o estado Geral das Minas, professores em greve há mais de 100 dias, tendo como problemática de pauta a demanda excessiva de aulas, na relação fórmula ‘xls’ quantidade-qualidade x aluno-professor.

O que a vida tem de contemporâneo? Ela não tem nada de contemporâneo, ela é contemporânea ‘in natura’ e em forma, ainda que por vezes se tente enrijecê-la de outra coisa. E não cabe para tal adjetivação, polemizar o que seja contemporâneo. É isso mesmo, a atualidade, o que se mostra, o que está posto, o que pulula na desordem ordinária dos dias, na marcação dos ponteiros do século XXI. A vida é contemporânea na reunião da ONU; a vida é contemporânea no terrorismo; a vida é contemporânea na inversão de focos, donde um dente passa-se a um bezerro e o bezerro passa-se a um dente; a vida é contemporânea no se faz e no que ela se mostra.

Há ainda a primeira pergunta a ser ‘tentada’ para resposta. Em pescaria com os contemporâneos acima, com a fala da Dilma e com a frase do Chávez, atrevo-me, não pelo prêmio ‘joínha do século brasileiro’, antes, por inquietação tropeçante.

Retomo: Não é passada a hora de nos divorciarmos do discurso de herança histórica da maldição da educação no Brasil?

Pois bem Dilma, a educação tomada desde os gregos mostrou-se nas faces da antiguidade, da medievalidade, modernidade, e não diferente se coloca na contemporaneidade. Deste modo, não é oportuno, postular, esforços e pensá-la no nosso tempo? Tendo aprendido contigo a discursar, não é científico pensar a origem/causa da crise na educação brasileira a partir do modelo que impera?

Temos sim herança de uma independência desconcertada, heróica ao ‘simultanear’, independência em formalidade e colonização em prática. Temos a herança de mudanças bruscas subjugadas à revelia de vontades políticas pontuais? Talvez tenhamos. Mas, temos necessidade de pensar a questão como contemporânea, como realidade em exato acerto com a marcação do nosso tempo. Qual é o modelo posto? Desta segue-se: O que se ‘deseja’ com a educação? E daí as normativas da razão: O que ela pode e até onde ela pode? Disto, claro, perguntando-nos em movimento: O que seja a educação?

Aos tropeços acredito que cheguei a mais um tropeço, afinal, não tem fim a estrada ‘reflexão’, tem-se instantes. Escrevo para sentir a vida e escrevendo senti que nos tropeços cheguei na desilusão com o discurso da minha presidenta, embora desconfiasse desde o início da candidatura ao cargo sobre a área da educação. A desilusão aparece ressoada de um discurso expressivo em termos de representações e culto às fórmulas, não apenas numéricas. Estreiteza em manter a perspectiva de que a questão da educação no Brasil passa, tão somente por números, seja quantidades mensuráveis em relatórios, seja em abertura da caderneta bancária do governo. Tratar a educação imersa na pulsão da contemporaneidade, é rever modelos, é rever práticas mecanizadas, automatizadas por botões fantasmagoricamente ideologizados. Não tem segredo. Se o desejo é uma educação X, então abra a ‘torneira’ do X. Se quero um país de leitores, abra bibliotecas e despeje livros do céu. Não importa no rigor do pedantismo intelectual o que vai ser lido, é preciso que se leia, leia-se pornografia, leia-se fofocas, leia-se quadrinhos, leia-se jornal mentiroso-tendencioso, leia-se Camões em guarani, leia-se Machado de Assis em francês, leia-se Paulo Coelho em inglês, dê aos brasileiros a oportunidade efetiva de conhecer as ramificações da educação, e ele decidirá, ao ter acervo para tal, que literatura o presenteará com gozos. Para iniciar a revisão do modelo, é emergencial abrir mundos, ler o visível e o invisível, e esta tarefa só é possível de um modo duplo, na ingenuidade de quem acredita saltitante na vida, leitura-escrita.

Distante, muito distantes das planilhas do Excel, minha presidenta, são muitos compatriotas jovens alfabetizados em números e em assinatura do próprio nome, ainda que analfabetos ao não saberem que o feminino de presidente é presidenta, e não me vale a justificativa de historiadores e cientistas sociais de que seja apenas cultura machista, é também, desconhecimento da própria língua, uma língua tão saborosamente leve de ser falada, híbrida nos sotaques e dinâmica em necessidade, que esta, ao ser desconhecida por um brasileiro, ressoa como profunda tristeza. Maravilha singular que o modelo educacional tem roubado dos brasileiros, o gozo de brincar, torcer, cantar, saborear a própria língua em suas entranhas e fissuras. Como se tem roubado? Não revendo modelos, abstendo-se de tomar as causas com seriedade, e indiretamente permitindo que modelos imersos em representações obscuras, golpes silenciosos, continuem a julgar a vida, cristalizando receitas vazias e castradoras de prazer, sobretudo o prazer de sentir a vida, em instante puro, numa leitura e/ou numa escrita. 

Enquanto isso, enquanto permanecermos no auto-engano de nação, teremos dentistas matando dente em semelhança ao assassinato de bezerros, bem como o despudor de pregar a morte como acervo linguístico mais elevado de uma mente pensante.

E nos tropeços, fecho esse rabisco que apesar dos pesares, insiste em afirmar a Vida, sobretudo nas suas pulsões contemporâneas e nos seus traços artísticos. Escrevinhando o sentir como instante vivente.

Carol Gomes

19 de setembro de 2011

Hoje saí da cama animada para fazer 'zuada' em parceria com a vida!!!!
Pensei: escrever? sim... sem letras, só vontades desejosas...
Pensei: música? sim... sons silenciosos, que pelo descontínuo, ensurdecem padrões...
Pensei: pintura? sim... sem pinceladas, só combate de cores...
Pensei: fotografia? sim... sem revelações, só instantes fixados no invisível...
Pensei: cinema? sim... sem imagem, só murmúrios de cenas re-coladas...
Pensei: literatura? sim... sem autoria, só personagens loucamente loucas...
Pensei: filosofia? será?... voltei para cama e dormi para me dar novamente aos sonhos.

Carol Gomes

6 de setembro de 2011

Saga de um espírito pequeno em tempos desanimadores

Segue-se um relato fiel aos fatos de uma primeira segunda-feira de setembro do 2011. Ora, reais no liame que abre o dissolver necessário entre o fatídico e o mais que fatídico. 

Como um anzol de escrita, abro com uma falsa modesta questão: 

Como viver em tempos que enganar é a máxima? 

Engana-se crendo que se engana outrem. Será que remonta aí uma tal estranha felicidade no hoje e que por qualquer desventura não me atentei ao aprendizado de tal?! 

Depois de meses numa luta vergonhosamente enlouquecedora com certa tal operadora que propagandeia o clarear, embora se erga num obscurantismo moral das telecomunicações, resolvi visitar um espaço cuja promessa abarca a salvação dos míseros legitimadores do engano, ávidos a devorar serviços e produtos, vulgo: consumidores. Como tudo se deu?! Relato. 

Tantos telefonemas desconsertantes à clareadora de dados na rede das comunicações; telefonemas estes que me custaram, para além dos gastos em cifras, reflexões num alto grau de aborrecimento, sobretudo após escutar gravações robóticas programadas para desestimular o desejo pela vida, e não apenas, vozes robóticas que empenhadas no objetivo de finalizar a ligação, reproduzem de modo bestializante o que autores gigantes da literatura faziam com inquestionável maestria: jogar os leitores para fora das páginas, como uma seleção dura e sedutora; algo do gênero: ‘meu escrito está para todos, mas não todos estão para o meu escrito”; quiçá fosse isso que passasse em mentes tão diversas das vozes robóticas, já que estas últimas, distante de selecionarem, forçam o menos escrupuloso do ligante, provocam o modo mais vil de diálogo, o sarcasmo pedante e vazio. 

Pois bem, o que se segue aos telefones são reflexões que envergonham o ‘ligante’, já que a chateação é tamanha que impera entre uma argumentação e outra, questionamentos nostálgicos: ‘Como pude me permitir a falar isso? O que estou fazendo?’. Ora, é um real descaramento de sensatas palavras: ‘Senhora, o procedimento foi realizado e sua reclamação registrada. Pedimos que aguarde 3 dias e o problema será solucionado”. Neste exato momento um ancestral nascido no instante final da fala robótica manda tudo para um caldeirão de nervos paridos das mais baixas excomungações. Eis que retorna imediatamente a sopa preparada do caldeirão e então a nostalgia se veste num desencanto. 

Primeiro engano da segunda-feira. Alimentar uma falsa esperança de que após vários telefonemas, na manhã de segunda-feira, um bom samaritano me ajudaria.

Segundo engano da segunda-feira. Acreditar que reflexões resolveriam a situação, distante de tal, apenas ampliaram tão incômodo contratempo. 

Ainda não desistido dos telefones continuei com a voz robótica, metodicamente treinada, aprendida e repetida... como isso me dói, dor de desentendimento. Como é isso? Como pode tanto assim? Por que fizemos isso? Lá pelas tantas, novamente na nostalgia, me peguei empenhadamente na tentativa de explicar à voz robótica que na minha cabeça, qualidade e quantidade são aspectos que se relacionam, embora distintos, e mais, a qualidade tomada como fonte da quantidade. Sim, em esparsas horas de lucidez involuntária, você percebe que o jogo foi invertido, e a desavergonhada mediocridade alheia, passa a ser sua, pois lá estava eu me condenando por alterar o tom de voz, justamente com a voz robótica. Eis que finalizo a última ligação, depois de tantas em tantos meses, dizendo: ‘Muito obrigada pela atenção e desculpa pelo modo agressivo que me expressei!’. 

Terminou a ligação, eu à beira de uma depressão filosófica, me perguntando sobre o mundo, sobre a vida, sobre quem sou, sobre como vivo, sobre a relação indivíduo-coletivo, enfim, metida em bobas reflexões de quem se perde com os enganos da felicidade estranha do meu tempo, esse mesmo, que vivo e que dele sou fruto. Larguei o telefone, olhei para minha progenitora e minha mais nova sobrinha de quatro patas que morde chinelos com empenho invejoso, e perguntei-me: ‘Por que é assim? Preciso aprender a viver!’. A cachorrinha veio pular no meu pé, afinal ela adora a cor azul do chinelo, e minha mãe, já cansada do episódio, sussurrou: ‘Minha filha, você precisa entender que o mundo é assim’. 

Pois bem, iniciei o terceiro engano da segunda-feira: Procurar um tal de defensor dos indefesos consumidores. 

Iniciei o ritual dos consumidores. Procura contrato, reúne faturas pagas, vasculha protocolos de atendimento, escarafuncha a memória para lembrar de palavras em ligações de meses e meses passados. Arruma uma mala de indícios, toma um banho de pura adrenalina, prepara a faca na mente e pimba! cai no mundo em busca de justiça! Ah, antes você deixa seus livros e divagações em casa, pega o endereço na lista telefônica, toma água para sobreviver à baixa umidade e vai embora. 

Intuindo que algo estranho continuaria a chegar, resolvi passar num sebo e comprar algo para leitura. Não dá para sobreviver com tanta pressão sem ao menos um delirante! Ótima pensada, tomei um chá de cadeira de 4 horas; mas vai lá, sobrevivi. 

Olha a rua, olha o número, confere o papel, tira os óculos, enxerga melhor, respira e entra. Eis a cena fatal! Faltaria ainda o espanto ao deparar com uma atendente caricatural ao telefone explicando que é preciso fazer ‘xérox’ (tenho pânico do tal ‘xérox’ com acento agudo para uma pronúncia aberta, não entendo porque não pode ser ‘xêrox’, pronúncia fechada) e vários corpos encostados nas cadeiras num sol escaldante aguardando o painel tocar com o número de senha.

A cena dos corpos aguardando a senha me remeteu a filmes que já vi sem lembrar se atualizadamente os vi. Bancos de madeira, pessoas encaloradas com semblantes de cozimento do cérebro, dificuldade na respiração, pensamentos loucos entre planejamentos, neuroses, ousadias e vai lá, ‘mais uma que chegou para a fila’. Na cena só não consegui reproduzir a miragem do calor no chão e a mosca satirizando os humanos, enganados e enganantes. 

Focalizei um lugar livre, ao lado de um senhor que suava mais que panela de pressão, enfim, mais uma ação afirmativa da minha parte, somos todos farinha do mesmo saco, então, sentei. O senhor era puro cheiro de suor guardado, reguardado, mas tudo bem, somos todos humanos. Então me lancei às reflexões, sobretudo depois de olhar para minha senha num papel amarelinho em sintonia com o painel. No papel meu número era 65 e no painel do coletivo, o número era 30. Conclusão: 35 chamadas até mim. Não me desesperei por vários motivos, entre os quais: i) sou treinada em esperas, escrevo e leio em pontos de ônibus; ii) escrevo e leio em filas de banco; iii) contemplo o passar do tempo com frequência; enfim, espera nem sempre é um problema, tanto mais porque tinha comprado um usado de páginas amareladas, além de me acalmar lembrando que gozava eu de férias... um ótimo momento talvez fosse aquele para experimentar os serviços propagandeados do governo. 

Reflexão na cadeira ao lado do homem suado: Por que esse tanto de pessoas aqui? Pergunta ridícula, e lá estava eu novamente me condenando: ‘Pelo mesmo motivo que eu’. 

Olhei para cima, a televisão ligada no programa favorito do meu povo, jogo da seleção brasileira. Ainda animada para viver a aventura, me meti a olhar o jogo e observar a movimentação alheia. Um jogador com cabelo de pica-pau, apelidado não por mim, mas por um outro senhor que se divertia falando de futebol... enquanto isso a senha corria. Uma senhora no ponto de explodir, tamanha ansiedade, olhava para os lados, para frente, para trás, para o relógio, celular, papel, estava eu para ver o momento em que ela num pulo grudaria na lâmpada do teto, tamanha ansiedade. Engraçado que ela tinha uma cara de ‘F-algum-número’ do CID-10. Aí comecei a viagem: já pensou se essa ‘F-algum-número’ gruda no pescoço de um atendente?! E disfarçadamente permiti um sorriso, já em tempo, porque o café oferecido no canto da sala estava frio e doce. 

E entre uma divagação e outra o tempo foi correndo, o painel apitando e as senhas, vagarosamente, em sucessão. Eu que tinha chegado às 15h30 já ia lá pelas 17h, sentada, viajando, ora lendo, ora escrevendo, ora encaixando aqueles personagens em ‘contações’ à minha exigente vontade. Desse modo me distraí em partes com os telefonemas da manhã, distraí mesmo, tanto que voltei para as perguntas nostálgicas: ‘Não seria melhor eu ir embora, pagar multas e ser feliz sem estresses, papéis para assinar, telefones e mais artigos, caput’s e blá blá?!’. Pronto, estava lá a Carol formalizando uma tentativa de engano. Segundos depois retomei a empreitada: ‘Não, só saio daqui depois de resolvido’. Que depressão, meu corpo desviado para assinar papéis que julgam justiça. Depressão maior e mais grave que essa, só a dos ‘F-algum número’ do CID-10. 

18h10 bate a minha senha no painel, 65, mais um e era 66, o que certamente teria me rendido outras tantas divagações-reflexivas. Anúncio do dia: Senha 65 – Mesa 12. 

Continua o ritual. Abre a porta na expectativa do que haverá atrás dela (da porta). Um monte de mesa com pessoas de todos os lados falando simultaneamente. Olhei e lá estava o senhor de camisa listrada na mesa 12 num sorriso estranho; pensei: ‘Também sou estranha, se ele me morder, mordo ele’. Lá fui, sentei, falei meu ‘boa tarde’ atrasado. Fixei no papel em cima da mesa o nome do moço, logo fiz associação com Egberto Gismonti. Pronto, o suficiente para amenizar as estranhezas alheias. 

Relato vai, relato vem. Faz um cadastro aqui, uma informação ali e começa os sinais de que os dias têm sido engano mesmo. Primeira situação sinistra. O senhor da mesa 12 preencheu meu cadastro com o nome da minha mãe, ou seja, o ‘caba’ no automático-robótico se quer recorda o que seja leitura. Ok! Sem estresses, meu nome é muito parecido com o da minha mãe, tão parecido que ele elogiou por lembrá-lo do nome do avô, Otávio. E então decidi: ‘Quer saber, vou fazer festa é agora!’.

É para enganar?! Entrei no movimento. 

E fomos, entre perguntas e respostas, muitas. O relógio bateu às 19h30. Ele me olhava, com as informações da minha formação e similares. Do outro lado eu o olhava, naquela cadeira, pelo cargo sabia a profissão, pelas palavras conjecturei as fantasias de um engravatado amarrado e fui, vagante, entre fatos e fatos.

Seguimos enganando, todos. i) A clareadora que me ‘concedeu’, veja bem, ‘concedeu’ 10% de uma multa para finalizar um papel cuja qualidade é horrível, tanto quanto o sinal da comunicação. ii) O senhor da mesa 12 preencheu no relatório do dia mais um caso resolvido com acordo entre as partes. iii) Eu, talvez com medo do ‘F-algum-número’ do CID-10 fiquei feliz, afinal, permanecer ruminante, o resultado é sem dúvida um ‘F’. As outras pessoas que com o mesmo medo que eu ou não, assinaram papéis e respiraram aliviadas, afinal, algo foi feito. E assim tantos e tantos enganos.

É bem certo que me diverti com a segunda-feira, embora ainda que com esforço, não consegui enganar-me. O que menos me fica é o estresse, desse tenho conseguido me desviar de modos diversos. O que fica a martelar no pensamento, a ruminar sem trégua, é in-justamente o movimento que meu tempo alimenta, as dinâmicas que se reproduzem. Práticas que revezam na mesmice e que uns engolem insaciavelmente, apesar de sem fome, outros. Doutro lado, os outros engolidos, se vangloriam em iscas gratuitas.

Eu que gosto dos olhares, por vezes permito lágrimas, sim, lágrimas nostálgicas porque ainda que haja esforço, sou afetada por tanto desprezo pela vida. Esse desprezo julgo (‘julgo’) ter visto com recorrência na primeira segunda-feira de setembro. O que há de tão formidável neste engano de tempos atuais? Que estranheza sedutora é esta que alimentamos como falsa origem de felicidade?

Toda a segunda-feira me colocou a divagar sobre o ‘enganar’, sobre o enganar alheio e o auto-enganar. Tivesse eu conseguido aderir ao movimento, não estava a pensar e repensar todo um dia de automatismos robóticos. De certo que quero imensamente crer que nenhum em realidade esteja aderido ao movimento ‘enganar-se-enganando’. Não pois que seja esse o engano. Alimento sim o engano diário, nascido do esforço de um espírito pequeno que ainda (ainda), acredita no enganar do belo vestido da ilusão... vestido esse que não sufoca, sobretudo porque o engano não é pelo engano, é pelo não cumulativo, é antes pela insistência no tempo e pelo tempo.


Carol Gomes