28 de julho de 2010

A música no jardim

O dia era claro e aparentemente corriqueiro. No relógio do sujeito caminhante marcava-se lá pelas três da tarde. Numa visão retilínea viam-se os passos do moço, passo a passo a seguir sabe-se lá qual destino com desconhecidos pensamentos. Na parada o ambiente era amarelado, a mesa armada se destacava talvez não pela cor e sim pelo que oferecia, a companhia e a possibilidade de um preenchimento não material do tempo.

Na mesa a presença era o conhecido de outras paradas, de outras horas marcadas no ponteiro, os assuntos talvez não tivessem preenchido o tempo com tamanha precisão, dada a recorrência.
Estranho! Pode sim ser esse o termo. Do caminhar que se seguiu, o encontro transbordou não apenas o cumprimento, os olhares denunciaram que famintos estavam para preencher a volta do relógio. As palavras sobressaíam de cada olhar como vôos impulsionados por uma tal liberdade mental.

Ambos postos, como que literalmente prontificados para o combate. O motivo era o diálogo, despretensioso, melindrosamente sedutor. O tema surgiu da interpretação de um olhar sob o outro. Na conhecida dança das intenções, donde um se deixa julgar interpretado pelo outro. À espreita a cena era acompanhada, detalhe a detalhe, julgava-se que no instante assistia-se ímpar acaso dos dias.
Os olhares eram constituídos no rebate das perspectivas mundanas de cada um dos sujeitos que sobre a mesa colocavam-se nas palavras, antes, no silêncio tagarelante. Eram dois tecendo questionamentos, erguendo impérios mentais, edificando estruturas que se quer o tempo conseguiria mensurar, menos ainda a formalidade material.

O músico suavemente escolhia as palavras como que se valendo de notas, ora harmonizando ora surpreendendo ao tomar bruscamente uma des-sintonia das palavras. O caminhante de pensamentos desconhecidos era o jardineiro, que retocava palavra por palavra, movimentando-as como que para o mais nobre dos cultivos, planejado ou não.

O cenário era esse, a quentura dos raios do sol refletidos no asfalto, a via era dupla e a mesa posta na marca que fixava a curva; sim, a mesa como o ponto da curva na reta, pois era esse o trajeto do caminho que seguia a passos lentos o jardineiro quando se permitiu sentar para o diálogo com o conhecido músico. Pessoas passavam, a pé, nos veículos, sozinhas, acompanhadas, falantes, silenciadas pelos pensamentos agitados, as buzinas ora assustavam; a riqueza do contexto era talvez o fundo visível, contudo obscuro com que os dias se mostram.

O músico lançava-se com insistência na sentença de que a vida é resultado da confluência de partes desconstituídas e alocadas em diferentes espaços, e que quando reunidas, mesmo que poucas das muitas partes, a existência acontecia. O entendimento do sujeito parecia vislumbrar a existência tal qual a criação de uma canção, em que as notas são erguidas na união com outras, nas suas singularidades que no encontro com as outras desvelam o plural unido. Mais ainda o músico cancionava sobre a existência. Conquanto o diálogo continuava, a visão da existência era transposta numa construção musical, longínqua a observação constatava a perspectiva musical da existência como uma melodia que no pulsar de cada nota constitui o conjunto da obra, donde uma nota baixa suaviza a nota alta, donde o agudo é parceiro simétrico do tônico. Eis que a existência para o músico é mostrada como uma canção, como criação que transfigura sons em imagens e explica as partes antes desconstituídas, reunindo os acasos para expressar o conjunto existente.
Para o músico o questionamento fundante não apontava para o início da existência ou para o por quê da mesma, para além, o central tratava obstinadamente da interpretação da existência. Assim a perspectiva do músico mostrava que reunir as notas é tomar a vida como dada em toda sua grandeza, contudo, não apenas na pobreza de reuni-las mecanicamente, antes é reuni-las e realocá-las, redesenhando-as, daí a criação musical da existência, que repetindo as notas as redistribui em tonalidades diferentes.

O jardineiro, silencioso, olhava e nos olhos conseguia ouvir a canção falada de um músico pintor. No músico não se ouvia a canção, via-se o erguer de uma imagem da existência. Das palavras sonorizadas, a imagem era lapidada, o tom dos verbos ditava a pincelada na tela. Ali, naquela mesa-ponto-curva, o jardineiro via um músico criar uma pintura, a pintura da existência. Se do músico o jardineiro via um pintor, pincelando tonalidades diversas de um conjunto, na mente do jardineiro à espreita via-se uma película cinematrográfica. Imagens passando, como que fotos reveladas que sobrepostas constituíam uma longa filmagem, uma entre tantas contações da existência (...)

Carol Gomes