21 de fevereiro de 2010

Falso ‘Mesmólogo’

O Eu confessa para Você que já não se suporta; aliás, que já não suporta os dias. E desconfiado pergunta: O problema se faz uma questão para mim ou para você?

Eis a questão: Se suportar e suportar os dias é um problema do Eu, do Você ou dos dias?

A questão não interessa. O Eu haveria de ouvir o Você e ouvir ainda os dias.

Deveria o Eu rasgar a fantasia, aquela que Chico cantara ‘quem brincava de princesa acostumou na fantasia’. Escancarar-se e jogar-se no mundo, permitir-se às criaturas mundanas. Na noite não buscar o príncipe encantado, buscar os bruxos, selvagens, e ao contrário de perguntar algo para o Você, deveria dizer a si: ‘quem te viu, quem te vê’.

Especula-se desse diálogo se o Eu não haveria doutro modo olhar para fora e fazer curva na visão para dentro. Isso mesmo! O olho que lança para fora uma visão voltada para dentro. Talvez tenha sido essa visão de Pessoa, numa pergunta propositadamente perdida: ‘quem é esse eu que me vê’?

Ora, majestoso Eu, revele-se no Você plebeu moribundo. Mostra-se satânico e guie os anjos rebelados. Ah! Sabedoria seria desconfiar do medo. A fantasia do principado não lhe permite revelar-se a si mesmo, daí a falsidade de sua não resistência, de ti ou dos dias.

Eis que para além da moralidade cristã, tão insignificante diante do seu medo de admitir o desconhecido, vê-se rolando na lama como bicho indistinguível, animal-homem. Não! Homem-animal. Mais te vale ser animal pós ter sido homem, daí julgarias ter aprendido o devir... Não seja ingênuo. Seja altivo e não se jogue na lama como besta irracional. Seja majestoso, não como príncipe, antes como vagante mônada de alma nobre. Jogue-se internamente na lama, depois role e ria aos choros da existência.

Grite. Sussurre. Chore aos berros. Reverta o sacro e conheça as forças. Oh forças! Só fará teoria depois de vivê-las. Como distinguir o bom do ruim; o certo do incerto; o correto do incorreto sem misturar os lados, sem dissolver o dúbio e fazer sua própria mistura. Vale-se você-mesmo-eu dos pressupostos.

Que é isso que aparece? Diante do Eu uma pronúncia ‘oraculosa’. Eis que se o Eu não se revela a si, nem ao Você e nem aos dias, na presença dos deuses que o rondam revela.

Quantas vezes diante das obras de um artista adorado desejou esbravejar: Que horrível! De posse de um livro mal cheiroso de poeira considerado clássico quis dizer tranquilamente: Que horrível! Ouvindo um som que nomeiam música erudita almejou revelar: Que horrível! De frente para tela donde se reproduzia cenas de um filme adorado pela crítica, ansiou: Que horrível! Visitando construções antigas e adoradas pelos detalhes edificados, pretendeu: Que horrível! E assim seguir-se-ia: Que horrível! Que horrível!

Nas palavras do Eu para os dias, para o Você, revela-se o voltar-se. Horrível não só aos outros. Horrível ao todo. ‘Horríverar’ é desfazer o mundo que lhe mostra insuportável, enfadonho, feio, fedido. Enfim o Eu assume-se. Admite sua mediocridade.

Sabedor, o Eu se mostra ciente de uma não autonomia do mundo objetivo. Escolas diriam tratar de uma questão subjetivista a feiúra do mundo. Escolas outras diriam tratar de uma construção individual a feiúra do mundo. Escolas outras diriam tratar de algo insignificante a feiúra ou não do mundo perante o Eu, sobretudo porque o mundo não estaria diante do Eu, e sim o Eu diante do mundo. Escolas outras diriam e diriam... como de tudo se diz e se diz, e como tudo diz.

O falatório do Eu com o Você nada mais é que desvelar o cansaço, antes, valer-se de palavras para voar... soltar...

Não importa a falação cansativa do Eu, o que lhe importa é falar... falar-se a si é reerguer-se ao mundo, é transverberar... no ‘mesmólogo’ permite a si o descanso de si, o livrar-se do peso sartreano e gozar dos silêncios mundanos, esses mesmos que silenciados pelo barulho do mundo se fazem gritantes nas fissuras íntimas...

Eis que para o Eu, para o Você e para os dias fica o aprendizado de que das provas valem-se as conseqüências, de todo, qualquer mundo que o seja tem sua raiz, e a este, nem mesmo o mais magnânimo ‘mesmólogo’ ou a mais magnânima metafísica pode valer-se da indiferença.

Carol Gomes

18 de fevereiro de 2010

Do aprendizado de um café...
Do carinho daquele amigo...
Se viste esses versos é porque viste o que insisto não dizer...

"Se cantar só quase o homem, não chega às coisas tais como são"


O homem do violão azul
Wallace Stevens
(De The Man with the Blue Guitar, 1937)

I
Homem curvado sobre violão,
Como se fosse foice. Dia verde.

Disseram: "É azul teu violão,
Não tocas as coisas tais como são".

E o homem disse: As coisas tais como são
Se modificam sobre o violão".

E eles disseram: "Toca uma canção
Que esteja além de nós, mas seja nós,

No violão azul, toca a canção
Das coisas justamente como são".


II
Não sei fechar um mundo bem redondo,
Ainda que o remende como sei.

Canto heróis de grandes olhos, barbas
De bronze, mas homem jamais cantei.

Ainda que o remende como sei
E chegue quase ao homem que não cantei.

Mas se cantar só quase ao homem
Não chega às coisas tais como são,

Então que seja só o cantar azul
De um homem que toca violão.

11 de fevereiro de 2010

Um Cansaço Autêntico


Depois de alguns bons meses de procura encontro numa seleção de poemas, para mim uma relíquia, um conjunto de aforismos do Sr. Pessoa. Digo aforismos pois em cada verso uma lição, uma sentença... talvez menos próximos de um conjunto de sensações e sim mais próximos de sentenças filosóficas... julgo...

Lisbon Revisited


NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!)
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-a!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havermos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul – o mesmo da minha infância –
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!


Claro que o ‘NÃO’ afirmativo do Pessoa imediatamente me remete à Emily Dickinson. Como não recordar os versos perfurantes que estampam e nos escancaram os medos íntimos, talvez o maior deles, qual seja: o cansaço para com o mundo. A obscura sentença do ‘viver morto a vida’...

Nós te cobrimos rosto amado,
Não por estarmos de ti fatigados,
Mas porque cansaste de nós


A cegueira medíocre dos desavisados remete os escritos poéticos ao que chamam transtornos mentais, de depressões à esquizofrenia, no entanto, pouco ou quase desconfiam que por entre essas linhas há um diálogo autêntico, maduro de autoconhecimento, donde os indivíduos se permitem ao silêncio consigo mesmos.

Começa-se pela distinção dos termos Solitude e Solidão. Ora, o dicionário realmente traz ambas as palavras como sinônimas, entretanto tantas literaturas nos trazem como termos que apontam para rumos um tanto diferentes.

Solitude o diálogo, diria, egoísta do eu consigo. Solidão como a perda de si nos labirintos permanentes da multidão.

Estaria Dickinson e Pessoa expressando e clamando à cegueira do mundo o direito à solitude? Seja ou não seja, a questão apresentada me parece distante dos transtornos mentais e sim uma questão de visão intuitiva, donde o poeta (a poetisa) em suas solitudes tratam de assuntos pessoais com eles mesmos.

Recordo-me de repetidas vezes encontrar nos escritos que tratam da mente humana, apontamentos do quanto grande parte dos indivíduos não suporta ‘estar e ficar’ sozinhos, sobretudo porque esses mesmos têm medo deles mesmos. Esse apontamento não é uma defesa do ‘estar e ficar’ só, é antes, tomar do aprendizado com escritores, o quão o autoconhecimento é resultado do diálogo de si consigo, estando aberto ao mundo, no entanto, não dado gratuitamente ao movimento aparente e artificial dos dias.

Cansar-se do mundo, não é se postar enquanto deus e menosprezar a vida, ao contrário, é reafirmar a vida, contudo, livrando-se das mediocridades absurdas que preenchem mentes preguiçosas dadas às verdades mastigadas e de fácil digestão. Cansar-se do mundo é buscar para si o silêncio dos sentidos na busca de uma sensibilidade apurada, que permite ouvir um olhar, que permite ver uma nota musical, que permite sentir o cheiro do verde de uma planta, enfim, que permite sentir o colorido do céu azul...

Para mim fica o NÃO de Fernando Pessoa como impositiva afirmação para a vida e advertência para os lixos descartáveis (não recicláveis) do mundo. Da Emily Dickinson me fica o adeus dos que por vezes insistem na dificuldade de compreender que o diálogo também se faz num monólogo silencioso, fundamentalmente porque há aí uma descoberta de outros eus, descobertas que no barulho do mundo mediocrizado pode por vezes passarem desapercebidas.

Carol Gomes