11 de fevereiro de 2010

Um Cansaço Autêntico


Depois de alguns bons meses de procura encontro numa seleção de poemas, para mim uma relíquia, um conjunto de aforismos do Sr. Pessoa. Digo aforismos pois em cada verso uma lição, uma sentença... talvez menos próximos de um conjunto de sensações e sim mais próximos de sentenças filosóficas... julgo...

Lisbon Revisited


NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!)
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-a!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havermos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul – o mesmo da minha infância –
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!


Claro que o ‘NÃO’ afirmativo do Pessoa imediatamente me remete à Emily Dickinson. Como não recordar os versos perfurantes que estampam e nos escancaram os medos íntimos, talvez o maior deles, qual seja: o cansaço para com o mundo. A obscura sentença do ‘viver morto a vida’...

Nós te cobrimos rosto amado,
Não por estarmos de ti fatigados,
Mas porque cansaste de nós


A cegueira medíocre dos desavisados remete os escritos poéticos ao que chamam transtornos mentais, de depressões à esquizofrenia, no entanto, pouco ou quase desconfiam que por entre essas linhas há um diálogo autêntico, maduro de autoconhecimento, donde os indivíduos se permitem ao silêncio consigo mesmos.

Começa-se pela distinção dos termos Solitude e Solidão. Ora, o dicionário realmente traz ambas as palavras como sinônimas, entretanto tantas literaturas nos trazem como termos que apontam para rumos um tanto diferentes.

Solitude o diálogo, diria, egoísta do eu consigo. Solidão como a perda de si nos labirintos permanentes da multidão.

Estaria Dickinson e Pessoa expressando e clamando à cegueira do mundo o direito à solitude? Seja ou não seja, a questão apresentada me parece distante dos transtornos mentais e sim uma questão de visão intuitiva, donde o poeta (a poetisa) em suas solitudes tratam de assuntos pessoais com eles mesmos.

Recordo-me de repetidas vezes encontrar nos escritos que tratam da mente humana, apontamentos do quanto grande parte dos indivíduos não suporta ‘estar e ficar’ sozinhos, sobretudo porque esses mesmos têm medo deles mesmos. Esse apontamento não é uma defesa do ‘estar e ficar’ só, é antes, tomar do aprendizado com escritores, o quão o autoconhecimento é resultado do diálogo de si consigo, estando aberto ao mundo, no entanto, não dado gratuitamente ao movimento aparente e artificial dos dias.

Cansar-se do mundo, não é se postar enquanto deus e menosprezar a vida, ao contrário, é reafirmar a vida, contudo, livrando-se das mediocridades absurdas que preenchem mentes preguiçosas dadas às verdades mastigadas e de fácil digestão. Cansar-se do mundo é buscar para si o silêncio dos sentidos na busca de uma sensibilidade apurada, que permite ouvir um olhar, que permite ver uma nota musical, que permite sentir o cheiro do verde de uma planta, enfim, que permite sentir o colorido do céu azul...

Para mim fica o NÃO de Fernando Pessoa como impositiva afirmação para a vida e advertência para os lixos descartáveis (não recicláveis) do mundo. Da Emily Dickinson me fica o adeus dos que por vezes insistem na dificuldade de compreender que o diálogo também se faz num monólogo silencioso, fundamentalmente porque há aí uma descoberta de outros eus, descobertas que no barulho do mundo mediocrizado pode por vezes passarem desapercebidas.

Carol Gomes

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