26 de abril de 2011

Adendos verdadeiramente mentirosos

Escrevo porque vivo, se vivo para escrever não escrevo condizente com a amplitude do querer. Se deixo de viver para escrever, não mais consigo escrever condizente com a tal amplitude do querer.
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No tempo que li Lichtenberg achei espetacular os aforismos. Agora, tempo de Nietzsche à luz de Deleuze, tenho os achado (eles, os aforismos) perigosos, embora não menos simples... ainda que interpretados, se não representados.
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Lamento que ao falar da selvageria os dialogantes não avaliem despretensiosamente que revelo algo na pureza de uma mente pequena, alegremente pequena.
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Vivi cenas de um filme ao ver erguerem-se as bases arquiteturais de um viaduto. Tanto concreto gigante fez-me sentir menor do que talvez eu seja. Vi-me plenamente nas passagens de Arquitetura da Destruição. Oh! O que uma mente pequena não faz.
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Há um problema sério a rondar. Não tenho predileções para decisões. Valho-me com sucesso de mente, espírito, alma, cérebro?
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Não compreendi o sentido de um painel pintado com várias malas. O pássaro de lata demoraria e então fiquei de frente para as malas me perdendo em especulações. Numas tinham alusões a lembranças, noutras roupas caindo, noutras cartas recortadas. Pois bem, há de saber se quisessem valer-se das cores para provar que aeroporto é materialização do conceito de ‘não-lugar’... onde passam e simultaneamente não estão. Oh! Ingenuidade nossa... há maravilhosos cafés nesses ‘não-lugares’, além da deliciosa experimentação de estar em acordo com o tempo e nada fazendo.
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Sim, adoro os encontros. Nada como enxergar o encontro do Noel com a Céu, o primeiro a cantarolar um último desejo e a moça a sussurrar seu lamento.
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Veja que beleza: ‘diamantes de gelo no cabelo’. Cantado me força vislumbrar uma fotografia, embora também pareçam vidros lapidados plasticamente para presente.
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Sei que os literatos têm regras... minha questão é a gratuidade com que me dou ao desregrado.

iii
hhh
gggg
fffffff
eeeeee
dddddd
ccccccccc
bbbbbbbb
aaaaaaaaaa
111111111111
222222222
33333333
4444444
555555
66666
7777
888
99

O que há de desregrado nisto? Tenho tentado encontrar.
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Há quem acredita que gosta de Sebo pelo cheiro e cor amarelada dos livros. Doce engano. O apreço nasce da invisível crença de que pelos livros usados entra-se em histórias alheias, sobretudo porque outros já passaram as mesmas páginas.
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Gosto de ensaios. Descoberta essa depois de oscilar entre o sono e a vigília ao ler Baudelaire comentado. Apesar de há anos eu ter escutado: você se dá para as produções intimistas. Bem, há aprendizados que necessariamente devem ser repetidos.
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Começou assim: Imagem plasmada em relevo e não uma imagem que paira.
Desenvolveu assim: Saindo de dentro via escorrer pelos ouvidos, ora pelos olhos ora saía pelas unhas descontrolada. Sim! Ela (a paixão) me possuía. Visivelmente estava ali plasmada uma morte erótica, essa mesma, que se aparece de prazer, embora tenha por substrato uma crueldade, dilacerante e não menos enlouquecedora. Como olhar e não sentir confusão repudiadora entre o que deu prazer e o que furou terrivelmente ao colocar para fora tal qual erupção vulcânica.
Finalizou assim: Canção popular já como espelhamento e não como música original.
Concluiu assim: Mesmo enquanto ouvinte dos assuntos mais sérios é possível a mente viajar geograficamente por sensações de outrora.
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Carol Gomes

25 de abril de 2011

Pela 'beleza' do diálogo, da escrita... pela sutileza das perguntas e respostas... pela dança nos apontamentos... muito muito bom... taí a partilha. Para mim um diálogo de Platão em pleno séc. XX, originalíssimo; resguardados meus exageros, claro!!! Selvagem, sempre!!!

Abaixo transcrevo crônica do Pasolini... que escreveu diálogos com três atores que filmaram com o mesmo, embora (e sem pesquisar mais sobre essa crônica) julgo que seja criação de personagens para os diálogos valendo-se da atuação dos atores. 
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Recortei a crônica, sendo que nesse primeiro momento transcrevo o diálogo com Pierre Clementi; restando os diálogos com Ninetto Davoli e Franco Citti.

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“Pequenos diálogos” sobre o cinema e o teatro

Estou sobre Etna. Chove, neva, desaparece e a neblina, brilha o sol. Volta a chover, volta a nevar, volta a passar a neblina, volta a brilhar o sol. Tenho, com três protagonistas dos filme que devo começar a roda, os seguintes diálogos:

Eu: Você é terrivelmente igual na realidade e no cinema. E ao mesmo tempo, terrivelmente diferente. Como explica isso?

Pierre Clementi: Porque, quanto mais entro em mim mesmo, mais encontro coisas que não conheço. Por isso, quando estou diante da máquina de filmar, sou “eu mesmo à procura”. Por outro lado, há muita diferença entre realidade e cinema: porque o cinema é um dos meios para representar a realidade. Com um filme, é possível reconstruir um mundo: na realidade, é mais difícil. E, todavia, o cinema é um dos instrumentos que podem reconduzir os homens à realidade.

Eu: Por quê? Você crê que os homens não vivem na realidade?

Pierre: Sim, sim, mas creio que a televisão e todas as outras instituições (digamos: mass media) afastam o homem da realidade...

Eu: Franco Citti diz que realidade é pureza.

Pierre: Sim, é verdade, mas o tempo destrói a pureza. O cinema exerce muitas funções: contanto que um filme exerça a função da pureza.... Para fazer cinema puro, é preciso trabalhar com gente pura. E isso, com certeza, o cinema comercial não faz...

Eu: E, então, o cinema comercial representa o quê?

Pierre: É um comprimido para dormir. É feito para uma sociedade que se ocupa em digerir. É feito por homens vulgares que acreditam que os outros são vulgares.

Eu: E qual seria a sua maneira ideal de fazer cinema?

Pierre: Fazer uma viagem que tivesse, no fundo, a vida e a morte. Por exemplo: partir com uma equipe de homens que têm as mesmas necessidades, as mesmas aspirações etc., e chegar a criar algo tão forte que supere a realidade...

Eu: Em que direção?

Pierre: Bem. O homem faz sua viagem sozinho: e isso é a realidade. Deus, pátria, família etc., isto é, os hábitos, são a culpa dessa solidão. Restam então duas soluções: ou pegar um fuzil e atirar, ou pegar uma máquina de filmar e fazer cinema: assim se vai além da solidão.

23/nov/1968
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[Pasolini, P. P. Caos: crônicas políticas. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Ed. Brasiliense: São Paulo, 1982. p. 78-82]

21 de abril de 2011

Carta aberta a Silvana Mangano
Por Pasolini

Cara Silvana:
               
Há muito que te devo uma carta. Uma carta para não falar num “buquê de magníficas rosas”. Em vez de te escrever privadamente, faço-o publicamente. Isso põe limites à intimidade e ao afeto; mas confere à carta, talvez, um valor maior.

É uma carta plena de amargura. Uma amargura confusa e imprecisa; um mal-estar leve e imenso: que, porém, não tem quero comunicar. Trata-se, talvez, do processo contra Teorema [sobre problemas judiciários causados pelo filme Teorema], que as pessoas acreditam seja para mim algo normal, previsto e jogado como uma espécie de aposta com a vida: e que, ao contrário, é um evento dramático. Se não fosse assim, seria muito fácil para mim (a minha luta). Se não houvesse em mim – ineliminável, coagulado nos dias da infância – um conformismo que produz dramas, seria excessivamente fácil o meu anticonformismo. Não te parece?

Na amargura que sinto (e que me envolve inteiramente, da cabeça aos pés) ao te escrever esta carta, um papel importante é desempenhado pela sensação de que o teu trabalho comigo não te deu a satisfação que eu esperava. (Tu, infinitamente mais “amarga” e mais sábia que eu, não tinhas essas esperanças, eu sei.) Mas o impulso de te escrever esta carta me foi dado por uma viagem de dois dias a Paris (sempre por causa de Teorema): lá, no “Dragon”, estavam exibindo pela primeira vez, na França, O Édipo Rei. É um grande sucesso – como se diz triunfalmente, suspirando – de “público e de crítica”. Gostaria de te mandar os textos em que críticos parisienses falam de ti. A satisfação (que tu não queres ter) seria verdadeiramente grande.

Mas voltemos à nossa amargura (da qual a satisfação parisiense não é mais do que uma contraditória confirmação). Amargura enquanto estado difuso e não realizado de neurose. Neurose como conflito de conformismo e de anticonformismo. De medo e de coragem. De graça e de impotência. De modo muito diferente, profundamente diferente, ambos fomos suas vítimas. Talvez sobre essa amargura – que nos permite trabalhar com grande ânimo e com pouca esperança – eu diria: estoicamente – é que se baseie nossa colaboração tão magnificamente solidária. Somos igualmente pontuais e corretos como bons garotos na escola, não é mesmo? E temos um sentimento de nosso dever bastante enraizado: jamais faltaríamos à nossa palavra... Não me era difícil “contemplar” todos esses aspectos da tua natureza (pontualidade, sentimento do dever, lealdade) quando trabalhávamos juntos, em Marrocos, em Roma, em Milão. E é tudo isso tua amarga beleza: que se oferece, intensa, como uma teofania, um esplendor de pérola. Mas, na realidade, tu estás distante. Apareces onde a gente pensa que estás, onde se trabalha, onde há coisas a fazer: mas estás onde não se pensa, não se trabalha, não há nada a fazer. Chamada para cá por uma obrigação que (e quem sabe por quê?) se tem ao viver, conserva-se a realidade da tua distância, como uma parede de vidro entre ti e o mundo.  Sem que jamais tenhamos nos falado disso (por causa do selvagem pudor), minha alma estava freqüentemente contigo, por trás daquele vidro.

Quando Dionísio chegou a Tebas, sob as vestes de um belo rapaz mortal, com os cabelos de um belo rapaz mortal, com os cabelos compridos (tanto que, também naquele momento, Penteu teria querido cortá-los), tinha o ar pleno de graça, de alegria, de preguiça juvenil (quando se é jovem há tanto tempo pela frente que não se tem medo de desperdiça-lo). Pouco a pouco, aquela sua presença realmente feliz, forma de libertação (Tirésias dirá: “Certamente não será Dionísio a querer – as mulheres castas: mas virtude não nasce – a não ser da natureza. E tu reflita nisto – se mulher é casta, não se corromperá – nem mesmo na orgia báquica...”), revela-se como uma presença espantosa, forma de destruição. “Dionísio é deus – entre os numes o mais benigno e o mais tremendo”: é o que ele diz de si mesmo.

Ele veio a Tebas em forma humana para trazer amor (mas de modo algum o amor sentimental e abençoado das convenções!); e, ao contrário, traz a desordem e a carnificina. Ele é a irracionalidade que se transmuda, insensivelmente e na mais suprema indiferença, da doçura ao horror. Através dela não há solução de continuidade entre Deus e o Diabo, entre o bem e o mal (Dionísio se transforma, insensivelmente e na mais suprema indiferença, do jovem pleno de graça que era, quando do seu primeiro aparecimento, num jovem amoral e criminoso). Tanto como aparição “benigna” quanto como aparição “maldita”, a sociedade – fundada sobre a razão e sobre o bom senso (que são o contrário de Dionísio, isto é, da irracionalidade) – não o compreende. Mas é a própria incompreensão dessa irracionalidade que a leva irracionalmente à ruína (à mais horrenda carnificina jamais descrita numa obra de arte). São os M.I., para cita Elsa Morante, os Muitos Infelizes, ou seja, a maioria, ou a média, fundada sobre a racionalidade e o bom senso, que não compreendem a graça de Dionísio, a sua liberdade, e, por isso, terminam cruelmente na carnificina: uma carnificina, afinal, que tem a própria irracionalidade como força dominante. Quantos Penteus existem, cara Silvana, em nossa sociedade: que, primeiro, querem cortar os cabelos compridos do jovem Deus que lhes aparece e que eles não querem reconhecer; e, depois, terminam por ir olhar as Mênades, vestidas de mulher, e por serem estraçalhados por elas numa horrenda carnificina (Auschwitz, Dachau, Vietnã, Biafra). Os Penteus italianos são medíocres, mesquinhos imbecis; não são sequer dignos de ser dilacerados pelas Mênades. (De resto, sobre eles, basta reler os versos de Elsa Morante que te citei: basta, em suma, para a infelicidade deles; pertencer à categoria dos “Muitos Infelizes”!).

Para voltar a nós ambos, reconhecemos Dionísio: mas com medo, um medo nascido no mundo dos Muitos Infelizes. E isso nos dá aquela amargura, que corrige e torna ambígua a felicidade que compreendemos: renúncia ou compromisso são drogas com as quais buscamos encher o vazio deixado por aquela metade da felicidade que não estamos em condições de desfrutar. Daí a tua neurótica indiferença pelas coisas; daí a minha angústia por eventos como o meu processo etc. Mas, em suma, com a ajuda de Dionísio, vamos ter a esperança de ainda trabalharmos juntos. E de termos, juntos, as satisfações de que não temos esperança, e que passam de modo fulminante, puras e simples “oposições”, reveladoras, à nossa amargura.

16 de novembro de 1968

PASOLINI, P. P. Caos – crônicas políticas. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Ed. Brasiliense: São Paulo, 1982. p. 73-76.

12 de abril de 2011

escrito cansativo, não menos cansado

que tudo a ser escrito seja lido como não mais que exercício de descanso.

surpreendi-me vagante pensamentos à fora. questionei sobre os motivos pela filosofia, como seleção de algum modo autônoma ou como reação sabe-se lá do quê.

parece ‘bobalizante’ essa andança pela mente, vagante de um pensamento retalhado a outro custurado, mas não, no esquentar da temperatura sabia eu o quanto me seria cara essa brincadeira.

em pleno estourar limítrofe de amor por um nome da história da filosofia, apontar este mesmo nome como culpado pelo labirinto na disposição do pensar, certamente não é menos que incriminá-lo por ‘desregrar’ uma mente ingenuamente humana.

sim! é a famosa e conhecida crise com o filósofo estudado. que diabos fui me enfiar com esse francês? falsário, seqüestrador, filósofo menor, metafísico artista, jogador de dados, capitão baleia, vivente da vida... por que não me satisfiz com o grego que ainda me cutuca pela eleição dos diálogos? oh não! onde me meti.

depois desse menor, que como feitiço, possui, que como líquido, sacia a urgência da boca seca, que como cheiro, entra pelas narinas direto para o cérebro e altera o sistema nervoso... enfim, que como letras registradas ressoa uma música deliciosamente ensurdecedora, me adulterei numa aparição que já nem mesmo sei.

cadê meu sossego? cadê meu fascínio pela boa vontade da filosofia? desacreditei... algumas tantas máscaras rolaram, ele mesmo por vezes as recoloca, mas bem é que rolaram. e como posso tanto? sentir dolorido e continuar a ‘desejar’.

que o francês tenha figurado o alemão como o jogador mestre dos dados, tomo como aprendizado do acervo de ensinamentos, embora a espontaneidade da minha ‘persona-existir’ não consiga digerir o desvelamento de que a existência seja dor e contradição. explode um grito cansado, doído, primitivamente doído: não! não pode! não quero! eis o par: poder-querer. já deveria eu ter alterado para querer-poder?

na construção das frases que reunidas viraram obras estranhamente deliciosas de serem lidas, maravilho-me com as palavras escolhidas, com as orações selecionadas, com o silêncio de uma letra a outra, embora no ponto final de um parágrafo, por vezes longo, eu sinta uma pausa na respiração. claro! é lindo, prazeroso, mas é também, e sobretudo, ‘esfaqueante’. parece-me que seja como mostrar um rx do que até então era invisível, um rx anos luz à frente de uma cópia qualquer do que está posto e não se vê, é antes um rx que mostra o ‘imostrável’, o que não se vê e nem se enxerga. como posso ver tal figura ‘rxzada’ e haver de construir a vida nela e dela mesma?

eis a pergunta que vai ao âmago, que já sei lá se existe isso em mim. como construir depois de visceral rx?

conjunto de confusão a ansiar por escritos que chegarão trazendo descanso... assim esperança parece-me habitar.

enquanto tateante vou-me indo pelas páginas, permito o descanso no diálogo com os pares que por vezes concedem breves momentos de agitação desinteressada. como foi fármaco escutar, daquele que também como eu tem problemas espectrais a lhe rondar, que gostar ‘daqueloutro’ dos cabelos grisalhos é gostar antes de flauta, é gostar antes de blues. partilha que me tirou daquela andança vagante e dolorida ao lançar-me na reafirmação de que a voz a habitar o corpo dos cabelos grisalhos é uma cantiga de letras literárias...

e por hoje, por mais hoje, quero habitar o onírico ao som das grisalhas canções daquele que cantarolou a vida ao som dos bandolins... para mim, não menos distante do que escreveu dançante a alegria da vida nela e por ela, apesar da dor e da contradição.

Carol Gomes