11 de novembro de 2015

O humano que se escravizou e o mundo que já acabou!

Vasculha os documentos, de residência, comprovante de renda, identidade, estilo cara-crachá, porque a missão do dia é assumir-se menos indivíduo e mais números de identificação.

Tudo OK. Toma banho, se alimenta, garrafinha de água gelada a tiracolo, batom vibrando, animação para resolver problemas, chave do carro, gasolina no tanque, música para curtir as horas e destino certo: banco.

Roda 10 minutos atrás de vaga. Encontra. Vai ao parquímetro pagar a tal ‘zona azul’ no limite de 2 horas. “Ufa, será que consigo resolver em 2 horas ou vou assumir a possível multa?”. Contratempo primeiro: o parquímetro só aceita moedas. Quem tem moeda nas redondezas?! “Moça, acabou tudo”.
Troca 2 reais em moeda?!

Hoie, moeda aqui é ouro.

Mais 10 minutos rodando atrás de moeda. Primeiro pensamento: Que esquizofrenia é essa?! Perder 25 minutos para estacionar um carro e ficar pagando pau para 2 reais em moeda?!

Toma floral, toma floral. Resolve e você dorme.

Porta de segurança no banco. O laptop da mochila não passa. “A senhora vai ter que deixar no guarda-volume, mas vejo que sua mochila não caberá lá”. Como?! Você me sugere o guarda-volume já sabendo que não tem espaço para a mochila?! Surto esquizofrênico número 2.

Muito custo, tirando tudo da mochila, até as absorventes, para vistoria do segurança, consigo enfim entrar.

A essa altura minha veia já sentia o bombeamento acelerado da corrente sanguínea.

45 minutos de espera para falar com a gerente. Diga-se: em um setor especial para clientes cujo perfil é classificado para tal. Esquizofrenia número 3. Setor especial com atendimento e resolutividade idêntica ao atendimento geral. Especial? Termo distinto que passa então a tomar sentido de ‘mesmo’.

Mesa da gerente que recordo de tempos da adolescência quando praticava esporte por prescrição médica para crescer. Esquizofrenia número 4: médico sabe receita para criança cujo histórico familiar é de baixa estatura, se tornar um mulherão de 1,75.

Lá vai.
Fulana, boa tarde, é a 4ª vez que venho aqui para atualizar meu endereço do cartão de crédito pois necessito de uma 2ª via.

Oi cicrana, tudo bem?

Não, nada bem. Cada vez que vocês me obrigam a vir ao banco gasto dinheiro de estacionamento, tempo, meus batimentos aceleram.

Desculpa cicrana, hoje vamos resolver.

E então a gerente começa a digitar tudo quanto é tecla naquele sistema com tela preta e letrinhas em verde. Digita aqui, aperta Esc dali, atende telefone, envia email, pede meu CPF, pede o endereço atual.

Bomba, corrente sanguínea explode e o ‘xx’ do cromossomo atinge o auge da histeria.

Cara cicrana, infelizmente preciso ser sincera e te dizer que nosso sistema está com problemas há algumas semanas. Isso está acontecendo porque houve uma mudança de gerenciamento dos cartões entre o banco e a operadora, por isso o sistema não consegue atualizar.

Fulana, você é filha do sistema?
Não, por que?

Porque você só faz o que ele manda, sem questionar, sem vasculhar alternativa. É normal isso? Porque na minha vida toda só a minha mãe que obedeço sem muito questionamento, por respeito e medo de apanhar. Se bem que depois de uma certa idade, até minha mãe questiono, veementemente.
Pois é, infelizmente é essa situação.

Boomm, a bomba explodiu, a corrente sanguínea transbordou, o coração pulou e as palavras e o olho fuzilaram.

Por que vocês me fizeram vir ao banco 4 vezes e só hoje explicam a situação?! Eu tenho cara de imbecil?! Você acha que aceito essa escravidão diante desses sistemas eletrônicos?!

Calma sra. Fulana.

Ops, apareceu um sra. na conversa, que por sinal foi jogado no meio da explosão.

Sra. não, meu nome é ‘tal’ e não estou aqui atrás de psicólogo para resolver minhas carências sociais, nem tampouco para lamentar fraquezas diante de sistemas eletrônicos que de virtual tem só a capa, porque não tem nada de multiplicidade, é tudo o mesmo!

Não vou sair daqui enquanto não resolver. Me passa o 0800 da ouvidoria, chama o gerente geral. Não vou sair daqui.

Disca 0800: “Boa tarde, meu nome é X, em que posso ajudá-la?”

Repete a história inteira e no meio da contação surge o pi-pi-pi. Ligação caiu!

O coração morreu, o aparelho parou, a ligação despencou.

Sem chamada jornalística, sem resolução... a vida continuou, viva-morta.

Carol Gomes

23 de outubro de 2015

das flores Lindinhas de um quintal

eu mexeria em todos os elementos do universo, da água aos pós energéticos para que jamais tivesse sofrido tanto naquelas gaiolas veterinárias.

te levei, te enterrei, às margens das águas correntes… 

meu modo de pedir desculpas por tê-la entregue a esse universo cruelmente humanizado.
desde que te mataram, sinto uma tristeza permanente, um corte rasgando… sem lugar, sem ânimo. não tem natação que anime, não tem filosofia que reinvente, não tem arte que recrie, não tem braço que acalme.

meu choro silenciado, triste, é de indignação, de impotência.

e seu eu tivesse mesmo um cajado, e se eu tivesse mesmo todos os anos milenares e todos os poderes velhos-ancestrais de oxalá, você jamais tivesse sofrido!

dos díspares encontros, tenho sentido imensamente saudade e falta da sua presença selvagem no quintal!

reinou por 6 anos, livre, sem tréguas para passarinhos, calangos, lagartixas… todo seu o reinado de um quintal.

pêlos amarelos, presas definidas, tamanho pequeno, olhos contornados naturalmente com lápis preto.
bom dias com arranhões vermelhos nas pernas, num indicativo simbólico de carinho, estabanado, por certo, dada a selvageria vira-lata dos carinhos afobados.

na 1ª parida, me esperou de viagem e na madrugada da chegada, lançou 3 filhotes no mundo, que como a linhagem vira-lata, logo seguiram rumo para as casas vizinhas.

nos dias tristes, de dores no corpo, chegava na ponta do pé, calminha, e do lado ficava o tempo todo. Estranha, mas, ternamente, um cuidado companheiro.

sem beijos, sem abraços, sem intimidades… amei tanto, cada qual no seu quadrado, você reinando no quintal e eu reinando noutro espaço.

sempre me enfureci contra qualquer violência, sempre briguei com família, vizinhos, desconhecidos. uma proteção recíproca.

na sua presença tinha tranquilidade para dormir, sabia da sua vigilância, dos latidos fortes, fêmeos e impositivos.

(Lindinha, vira-lata, saiu forte e brilhante para uma clínica veterinária, e de uma cirurgia simples de castração, morreu com paradas respiratórias, certamente causada por excesso de doses de sedativo e anestesias da medicina veterinária. Nenhuma explicação dos profissionais, só entregaram minha cachorra morta. Indiferença aos animais e modo brutal com que esse comércio de animais tem atuado).

Carol Gomes

14 de outubro de 2015

Qual o limite da violência contra o fêmeo, cuja fonte é cristã?!

Minha cachorra, Lindinha, vira lata, pêlos amarelos, pequenina, uns 6 anos (vira lata a gente nem sempre sabe a idade), vive livre no quintal, adora brincar, é elétrica, corre atrás dos passarinhos todos, foge toda vez que vê o portão aberto.

Entrou no cio há 1 semana, não aplicamos injeção (os riscos cancerígenos são comprovados) e não castramos (por motivos de compreensão particular, que inclui o pós operatório com aquele tampão que a machuca muito, pois é um ser acostumado com a liberdade e aí detona o pescoço todo até sangrar).

Esses dias a Lindinha viu o portão aberto, coisa de segundos, e correu, pregou, cruzou, trepou, deu para um cachorro que estava na rua (também de rua, fedido) e era bem maior que ela.

Hoje, dias depois começou a chorar e gritar muito enfiada num canto do quintal. Corremos com ela para o hospital veterinário, onde fez ultrassom. No exame detectou-se: cisto e útero muito inchado.
Diagnóstico do médico: o útero pode ser gravidez ou alguma doença.

Prescrição do médico: receitou dipirona para dor e agendou retorno dia 21 para fazer novo exame.
Pergunta: É possível já retirar esse cisto imediatamente, afinal a cachorra está sentindo dores?

Resposta: Não, é preciso aguardar, pois se ela estiver com filhotes, PREFERIMOS, que ela os tenha. Agora se tiver uma doença, aí tem que tirar o cisto e castrar também.

Conclusão polêmica, emotiva, ética: Quem decide sobre a situação da minha cachorra? Ela está com um cisto, sentindo dores e dizem: 'preferimos'? Trata de uma situação de preferência (seja religiosa, profissional, gosto, sei lá o que)?

Não sou muito chegada em apegos íntimos a cachorros e outros animais, mas nutro uma relação carinhosa, cada um no seu quadrado, o que não quer dizer que eu não tenha ficado nervosa ao saber que a cristandade de um profissional da medicina veterinária pode estar acima das dores da minha fêmea vira lata, Lindinha.

Bem, só sei que é muito doído e triste ver sua cachorra, pequenina, indefesa, sentindo dores, chorando e gritando.

Conclusão2 pragmática: Vou levar em outro veterinário mais resolvido com suas crenças e sua profissão.
Conclusão3: Espero muito estar enganada quanto ao 'preferimos' do médico.
Conclusão problemática: Não tem problema o profissional ter suas crenças, desde que coloque estampado na porta de entrada do hospital "sou conservador", pois assim, a gente não paga pelo serviço que não será realizado por crença individual. Enquanto isso, minha cachorra ficou sentindo dores e eu gastei $. A moral dele vai resolver alguma coisa?!

Carol Gomes

19 de agosto de 2015

essa dor que consome um pensar
irônica de vestido físico atormenta o que é espírito
como efeito denuncia que há tormentas
orgânica e inorgânica
fluxo vital interditado num nó de tensão
fluxo social aterrorizado por energia macabra distante das ficções
tudo, tudo somado no corpo
sentindo o psicossomático
e a origem?
o preço de ser filha do meu tempo
o preço de uma liberdade controlada
o preço de que como parte não se desprende
mas se desloca
todo um mal-estar transpassado
nessa infernal dor de cabeça que não passa.

Carol Gomes

2 de agosto de 2015

Se eu jogo a tinta, você pinta!
Se você põe o som, eu balanço! 
Você manda a palavra, eu invento o verso, leoazinha!
E saltando de longe, assalto sua vida e me rendo à sintonia. Jogo fora o murmúrio da distância!

- de uma amizade. 
de Ana Colantoni à Carol Gomes -

29 de junho de 2015

Uberlândia, 29 de junho de 2015.

Excelentíssima Presidente, Dilma Rousseff,

Em 15 de outubro de 2003, nos idos dos meus 20 anos, tomei essa mesma liberdade e escrevi para o presidente Lula. Na derradeira carta, fiz várias perguntas, dentre as quais: “É justo que os pobres continuem pagando a mordomia da elite brasileira?”; “Sr. Presidente, quem sou para lhe explicar a importância da educação na vida de um país?”. Muito bem, a carta foi despachada via Correios com certeza indubitável de que o presidente a teria em mãos. A certeza se justificava nos sonhos de uma jovem militante de esquerda na potência sonhadora dos 20 anos, sobretudo estudante bem conhecedora da política segregadora de grupos políticos da direita brasileira em Minas Gerais. Passados alguns meses, em 26 de janeiro de 2004, recebi uma correspondência do Gabinete Pessoal do Presidente da República, assinada por um diretor de Documentação Histórica com os seguintes dizeres: “Cara Ana Carolina, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva encarregou-nos de registrar o recebimento de sua carta e de agradecer os seus comentários”.

Com essa correspondência em mãos, pensei: documentação histórica?! Vira documentação histórica depois que o presidente lê?! Ora, eis a inocência que passados quase 12 anos já não mais gozo tanto. Sim, a carta havia virado arquivo para futuros estudantes, pesquisadores da historiografia brasileira, e por certo o presidente jamais tenha tido noção de que recebera uma carta de duas páginas de uma jovem estudante da cidade de Uberlândia. Entretanto, o que nos vale é o exercício da autonomia e a liberdade de assumir a tarefa de conversar com os pares, próximos e distantes.

Hoje, aos 31 anos volto a escrever, trata-se de um mesmo ato, a repetição de escrever à presidência do país, entretanto, eu e meu país acumulamos 12 anos de aprendizado desde aquela carta de 2003. Se antes a carta pedia atenção à educação, com desdobramentos reflexivos entristecidos com a realidade social, que insistia em partilhar com o presidente o que chamei de “angústia assassina”, hoje, quero fazer um pedido objetivo:

A implantação de um espaço cultural dedicado às artes no município de Uberlândia-MG com iniciativa orçamentária do governo federal. Espaço que possibilite, sobretudo, o desenvolvimento de projetos dedicados ao audiovisual e cinema. Sim, um espaço para exibição de filmes não comerciais amplamente disponíveis em outros ambientes, espaço para exibição da produção nacional, regional e local, bem como para exposição de trabalhos das artes visuais.

Ora, mas no que se justifica um pedido como esse?!
Excelentíssima presidente, certamente é do seu conhecimento que Uberlândia registra no IBGE quase 700 mil habitantes, bem como se apresenta enquanto um centro urbano de referência para outros municípios da região do Triângulo Mineiro. Entretanto, quais ‘equipamentos’ da política federal de cultura a cidade abriga? Infelizmente, nenhum. Não há Centros Culturais com projetos permanentes que possuam recursos para manutenção e continuidade, por exemplo aos moldes dos Centros Culturais da Caixa Econômica, Banco do Brasil, Correios. Não há um Museu de Imagem, Som, Arte Contemporânea, Arte Moderna. Sim, há política cultural desenvolvida pelo município, que destacadamente cresceu consideravelmente nos últimos anos, sobretudo no fortalecimento das tantas ações culturais que buscam fortalecer as tradições e a produção artística local. Estou certa de que o Ministério da Cultura e suas autarquias somam ações diretas e indiretas no município a partir de múltiplos programas, incluindo os pontos de cultura e convênios com Universidades, Instituto Federal, Associações, Grupos Culturais, Artísticos etc., entretanto demandamos mais, e é esse o objetivo da carta, o pedido por um Centro Cultural.

Pergunta-se: Por que um Centro Cultural? O Centro Cultural não é um dispositivo de concreto que reforça segregação social ao possibilitar falsa inclusão ao eleger um ambiente como oficialidade de artes e culturas?

O questionamento faz sentindo, quando, a posteriori, um centro urbano usufrui de espaços diversos dedicados, exclusivamente, às artes e culturas, entretanto, um Centro Cultural com recurso permanente representa em uma cidade do interior, concretização simbólica de que desenvolvimento não se funda e não se encerra em desenvolvimento econômico. Historicamente Uberlândia publiciza sucesso econômico, por outro lado, escamoteia a ausência de política cultural enquanto projeto de diversidade artística e cultural. Não por acaso muito se escuta nas ruas da cidade: “Uberlândia não tem cultura, tem mudado, mas ainda falta muito”. Compreendamos que nessa fala há um expresso desejo afirmativo por fluxos múltiplos culturais para que as tradições continuem e se mantenham presentes, bem como a inserção de outros movimentos artísticos e culturais que circulam na agenda cultural nacional. Em outros termos, um Centro Cultural para que a população tenha acesso a produções artísticas que marcam as dobras e redobras das histórias oficial e não oficial das artes, marcações que por motivos diversos são produzidos e recebidos por pessoas de países distintos, exemplifico: mostras de cinema, exposições da história da arte, apresentações cênicas e musicais. O que é uma cidade que tem carência de movimentação artística e cultural?

Falava-nos disso Leminski nos idos de 1986 sobre a indispensável e fundante referência cultural de um território:
Faz muita falta [...] o húmus popular, o substrato de formas demóticas, por baixo, fertilizando, estimulando, provocando. Não há manifestações artísticas populares autônomas, de base. Sem essa raiz popular, a cidade - capitaneada pela sua classe-média - parece não se encontrar apta a gerar uma cultura própria que se coloque à altura de outros grandes centros brasileiros. À classe média, falta verticalidade. Profundidade no tempo. Raízes. Sem raízes e sem carência, que fazer? (Leminski no livro 'Anseios crípticos' nos ensaios "Sem sexo, neca de criação" e "Culturitiba" publicados no livro em 1986)
Presidenta, é bem certo que o renomado escritor se referia à capital Curitiba, sendo que desdobrando suas palavras somos levados a um reconhecimento, pois embora sejamos herdeiros da imponente cultura mineira, bem como das vizinhanças das culturas goiana e paulista, e que indiscutivelmente possuímos raízes populares na cultura africana, indígena, caipira, interioranamente mineira, talvez ainda não nos afirmamos enquanto possuidores de húmus cultural num município com seus 126 anos. Enquanto Leminiski falava em húmus popular em 1986, falamos em 2015 em húmus cultural, sendo que um não exclui o outro, muito além, um amplia o outro em relação constituinte de diversidade, nesse sentido, nosso município quer mais, no desejo de fortalecimento das tradições e também no contato com os marcos das artes de Museus, das artes de rua dos grandes centros, das artes tecnológicas, das artes industriais.

Sabe presidente Dilma, aqui vou partilhar contigo uma tristeza lamentosa. Uberlândia não tem nenhuma sala de cinema cuja programação não tenha predomínio de produção comercial dos estúdios americanos. Ora, não há problema na programação, há problema na exclusividade para uma cidade com quase 700 mil habitantes. Há projetos cineclubistas, sim, projetos importantíssimos, mas a produção nacional que tem sido produzida com excelência, uberlandenses não veem, por motivos diversos, mas sobretudo, por falta de espaço para tal. Nosso último cinema de rua foi recentemente fechado, o Cine It que figurava politicamente como espaço do cinema de rua, de pornografia, esse mesmo cinema que tanto deve às nossas pornochanchadas brasileiras. O Cine Bristol foi assassinado e virou loja de vendas. Não temos para onde ir se não para os filmes no computador. Esse ano o Brasil recebe uma Mostra de Cinema Brasileiro na França, onde li nos blogs que figuram na programação vários filmes recentes produzidos por cineastas jovens, mas ora, minha cidade não conhece, conhecem sim os uberlandenses que podem e caem nas estradas em busca da cena cultural de outros centros urbanos. Acredite, por aqui não vimos “O som ao redor” no cinema, não vimos “A casa grande”, não vimos “O lobo atrás da porta”, não vimos “A história da eternidade”, não vimos nem mesmo o “O sal da terra” dedicado ao fotógrafo Sebastião Salgado, que por sinal, é mineiro.

Pergunto à senhora, perguntando a mim mesma: É justo que sejamos cerceados de aplaudir nossas jovens e históricas produções nacionais? O quanto se muda uma realidade social sem arte e cultura?

Esses dias estive por Viçosa, outra cidade do interior de Minas e por lá tive a grande oportunidade de compreender que há uma pergunta que todo amante da sociedade deve fazer, sobretudo nós que um dia militamos por amar a vida e cada um ao seu modo deseja mudar, nas micros e nas macros revoluções: “É possível revolução sem arte?”.

Excelentíssima presidente, em 2003 eu pedia ao presidente Lula mais recursos para educação enquanto estratégia única para acabar com a injustiça social; mudamos, acredito honestamente, para melhor, eu e o país, por isso, hoje peço arte e cultura para minha cidade.

Disse-nos o presidente Lula: “quem tem fome tem urgência”. Todo trabalhador reconhece na pele essa máxima. Passada a urgência da fome que dá vitalidade, ampliamos e passamos a pensar sobre o que comer, como comer, porque comer e com quem comer, eis então que pedimos o que aquele grupo musical cantou: “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”.

Os anos em que as condições de pensar sobre a comida chegaram, de 2003 para 2015, muitas mudanças, novos movimentos, e hoje, para mim e minha cidade, te peço arte como estratégia de alicerçar o tão desejado desenvolvimento, este que não se encerra na economia, mas que antes, se funda na autonomia e reconhecimento humanos.

Em respeito e reconhecimento, agradeço.

Ana Carolina

24 de junho de 2015

Dos dilemas que ensinam

Fiz uma escolha hoje a tarde por certo anunciada. Depois de comer pães de queijo caseiros na casa da minha mãe, acompanhado de um guaraná bem gelado, meu dilema era escolher entre 'Casa Grande', filme nacional de 2014 dirigido por Felipe Barbosa ou 'O nascimento de uma nação', filme americano de 1915 dirigido por Griffith.

Por que dilema? Porque assistir o Griffith seria seguir o protocolo diário de estudo, afinal, para quem tem andado há alguns dias por páginas que insistem em tratar a "montagem" como um dos aspectos que fizeram do cinema a arte no trato das imagens, movimento e tempo, assistir ao clássico de 1915 seria um passo e tanto na agenda.

Ora, se nas mesmas páginas que recorrentemente destacam a 'montagem' há invocações ao diretor americano, encontro também, de modo latente, uma insistência, por vezes sedutoramente desmedida, em dar ouvido ao intervalo seletivo, cujo mecanismo imperador é, quiçá, afecção.

Pois bem, se havia um intervalo ínfimo cujo sistema nervoso central multiplicado em atividade de regiões distintas acionadas para decidir qual resposta figurar como reação, resolvi meu dilema tão particular de uma tarde de quarta-feira mineira por 'Casa Grande'.

Por que 'Casa Grande'? Porque 'Casa Grande' é nacional, e de longas tenho apreço pela produção brasileira. Sem delongas em justificação, trata de apreço afetivo e ponto.

O filme começou e logo fui pensando: uai, mas está numa cara de comédia-romântica estilo Woody Allen. A primeira cena do filme, um plano geral da frente de uma casa de três andares, noite com a casa toda iluminada, um homem no jardim se banhando na piscina, que por sinal tinha duas partes, a parte do nado e a parte da massagem. Ao fundo uma música clássica. Alguns minutos depois o homem sai da piscina, desliga a música e apaga as luzes, uma por vez. Ora, mas a música era parte direta do plano?! não era uma música externa de abertura do filme. Primeira sacada interessante de direção.

O filme vai se desenrolando, a gente prossegue fazendo inúmeras análises visuais, o que há magno no filme que ganhou tantas premiações, críticas elogiosas e foi escolhido para figurar entre os filmes da Mostra de Cinema Brasileiro na França?!

As cenas vão correndo e a mim surgiu imediatamente outro filme recente da produção nacional, 'O som ao redor', do diretor Kléber Mendonça. O filme segue e inevitavelmente narrativas de inúmeras novelas globais vão surgindo como influências quase veladas. Aparece também o filme 'Domésticas' do Gabriel Mascaro de 2013 (por sinal, filme cuja abordagem narrativa muito me desagradou) e desse modo tantas outras produções vão me surgindo, 'Central do Brasil', 'Cidade de Deus'...

Vai lá, o que me inquieta a escrever depois de assistir 'Casa Branca' é um duplo impulso de desgosto e de encantamento. Ora, encantamento porque a história narrada é familiar, genuinamente brasileira, sobretudo de um Brasil que vai mastigando suas mutações sociais, bem como familiar por ter figurado em outros filmes. Num outro movimento, desgosto por um único motivo: os nossos filmes serão recorrentemente considerados 'bons' filmes partindo da abordagem das nossas feridas sociais?!

Os elementos textuais são recorrentes: a empregada que recebe o filho da patroa toda noite mas não trepa com ele. A família de histórico popular que ascende a partir do esforço pessoal do pai que gozou anos de cargo em mercado financeiro. A esposa que fala francês e não gosta de palavrões em casa, nem tampouco qualquer referência a sexo, uma camisinha no lixo da casa é motivo de demissão da empregada. A esposa que para negar sexo com o marido, finge que está rezando. Pai projeta no filho esperança de sucesso financeiro. Filho constrói afeto pelo motorista que o levava todos os dias para escola, inclusive é ao motorista que pede conselhos para conseguir a primeira transa. Filho apaixona por menina morena conhecida no ônibus. Filho se revolta contra os pais e vai para favela reencontrar os empregados, aprende a dançar forró, fumar e trepa pela primeira vez, sim, com a ex empregada da sua casa. Detalhe que jamais passaria: uma empregada negra e evangélica e outra gostosona e brega.

Assim como em 'O som ao redor', o desenrolar da história traz um apontamento de narrar os fatos de um suposto ângulo da geração filha ou neta. Em 'Casa Grande', o pivô é o filho, jovem de 17 anos, portanto nascido nos idos 90. O pai, geração anterior, possivelmente nascido nos finais dos 70. A geração do filho figura num desdobramento de orfandade, uma geração que por ter tido tudo, nada consegue fazer, nem mesmo conseguir autonomamente a primeira trepada. O pai, goza de uma geração que conseguiu tanta coisa que endureceu, enrijeceu que não consegue nem mesmo a trepada com a esposa que diariamente dorme do seu lado.

Ora, será isso?

Não descredencio o apontamento que destoa pais e filhos, sobretudo na marcação histórica dos 70 aos 90, mas vai lá, se de um lado há o que tanto fez que enrijeceu e de de outro há o que nada fez que esmoreceu, que víscera social é essa que nos faz minguar?!

Ao fim, o troféu do filho rebelde é ir para a favela e conseguir sua primeira trepada com a ex empregada, enquanto, simultaneamente os pais, geração de 70, sofrem com o sumiço do filho que não dá notícias.

É esse o Brasil repertório que endossa sucesso de alguns filmes bem recebidos das premiações?

O 'Casa Grande' quem sabe cause estranheza e um tímido desgosto, justamente por se mostrar familiar; familiar no questionamento sobre os rumos de um geração, não a dos 70 e sim dos 90, justamente, a que me sucede, porque nos angustiamos com uma geração de open bar cujo sabor da bebida pouco importa, uma geração de baladas cuja música só vale se embalar beijos múltiplos contabilizados nos dedos, uma geração cuja dificuldade de disparar autonomia parece, efetivamente, resvalar num ostracismo assustador, em que atitudes heroicas parecem construídas numa rebeldia que opta gratuitamente por drogas legalizadas, deveras porque o filme traz essa angustia numa perspectiva com purpurinas ao estilo das novelas da globo.

Me surge, ao final, 'Quase dois irmãos', a filha que vai ao morro! o morro que vai à filha! ao fim, o negro que sempre morre, o branco que sempre entra numa fria, vai ao hospital e volta para casa.

A geração do ostracismo é responsável por algo diante da geração enrijecida?! Se esta não é a pergunta, por que insistirmos nesse martírio de heranças mal recebidas e pouco compreendidas?!

22 de junho de 2015

Não estou falando de Curitiba, apenas lendo essa do Leminski e pensando em Uberlândia... e claro, a linha de fogo que, magnificamente, o ministro Juca Ferreira abriu ao diretamente colocar Cultura como estratégia de desenvolvimento, porque quando ele diz isso, só consigo pensar que está falando num desenvolvimento muito mais revolucionário do que a perspectiva econômica desenvolvimentista que lidera as forças no interior dos últimos mandatos do governo federal. Eis o que dizia Leminski nos idos de 1986...
"Faz muita falta em Curitiba o húmus popular, o substrato de formas demóticas, por baixo, fertilizando, estimulando, provocando. Curitiba não tem folclore. Não há manifestações artísticas populares autônomas, de base. Sem essa raiz popular, a cidade - capitaneada pela sua classe-média - parece não se encontrar apta a gerar uma cultura própria que se coloque à altura de outros grandes centros brasileiros.
À classe média, falta verticalidade. Profundidade no tempo. Raízes. Sem raízes e sem carência, que fazer?"
(Leminski no livro 'Anseios crípticos' nos ensaios "Sem sexo, neca de criação" e "Culturitiba" publicados no livro em 1986)

19 de junho de 2015

dos minguados do tempo de uma antropologia em escrita...
(só porque nunca mais a história do olho do Bataille saiu dos meus olhos)


A capital da vez era a mineira, essa cujo nome traz duplamente uma reflexão estética: uma beleza com horizonte móvel, pois a gente intui esse belo horizonte, embora ele sempre dê um passo para não ser alcançado, eis BH.

Véspera de feriado santo e o que de fato faz jus à santidade é a paciência que as filas e tumultos nos exigem. Fila para pegar ônibus, fila para comprar bilhete, fila para embarcar, tumulto no detector de metal, tumulto de carros para entrar nos estacionamentos, e quando menos espero me vejo premiada a compor um interessantíssimo tumulto, cujas filas são adornos que na confusão das ansiedades particulares fazem do ambiente um território de experimentação imageticamente antropológico: a rodoviária.

A imagem corresponderia com fidelidade de sentido se alguém dissesse: samba no pé que a aqui é a sapucaí. Gente em tudo quanto é cadeira, muretinha, degrau de escada, pilastras transformadas em encosto para uma multidão sentada no chão. Cada qual num samba com ritmo vibrando conforme o tempo de espera para a o embarque.

Identifiquei duas ilhas em lados opostos do piso térreo com tomadas para recarrega dos eletrônicos. Pensa numa disputa de são silvestre com distância de 1 metro, que fazia da vigia a melhor estratégica para o campeão que desejava uma mera tomada desprovida de valoração estética, embora, nesses nossos tempos, valiosa fonte de conectividade. Engraçado como há diferença no quantitativo de tomadas numa casa construída há 15 anos quando comparada às casas com idade menor que 5 anos. Sem contar  que o famoso T virou fichinha aos pés das extensões milagrosas.

Essas ilhas, sabe se lá por qual motivo inexpresso me jogaram de súbito numa lembrança: "meu desafio é parar de fotografar coisas e fotografar gente também". Ora, saltei dessa lembrança para a provocação: "No meio desse formigueiro meu desafio é escrever um tipo de antropologia das coisas sem me fixar nos diálogos verbalizados entre humanos".

Sim!, ergueram-se então as ilhas da conectividade, que por ironia traziam estampadas o nome bem sugestivo do patrocinador: vivo. Veja bem, eu que me provocava a escrever adendos referenciados por uma antropologia das coisas, encontrei nas 2 coisas que me surgiram, uma qualidade cuja abrangência ultrapassava o humano, qual seja: vida (em sua derivação publicitária).

Fiquei minutos e minutos olhando para aquela ilha e enquanto o tempo corria, era como se todo o universo passasse pela cabeça no formato de um filme com cenas aceleradas. Era interessantíssimo, mas quando fixava os olhos na ilha, sem muito demorar senti atração pela multidão dos olhos anônimos que corriam de um lado para o outro contabilizando o prazo final para chamada do embarque. Era isso, a minha sedução era pela antropologia do olho, que como coisa trazia o humano compreendido em sua extensão.

Migrei da ilha para os olhos, dos olhos para contações mirabolantes de nada improváveis pensamentos que saltavam dos olhos das gentes. Assim, coisifiquei antropologicamente a multidão da rodoviária e segui pulando de olho em olho, vendo e inventando narrativas.

Vi os olhos de um rapaz fixados no espaço e ligeiros em pensamentos. Ele tinha barbas ruivas, cabelos castanhos com entradas laterais que anunciavam a calvície, mas vai lá, o que me interessava era mergulhar  no fluxo dos seus pensamentos que apenas através dos olhos eu conseguiria construtivamente imaginar. Quando cogitei (cogito!) que ele pensava no trabalho que havia finalizado sobre os relatórios de produtividade do mês de março, repentinamente chegou uma moça e o abraçou, ops... o pensamento mudou?! o dele não sei, mas o meu transfigurou (figura!) imediatamente, porque se antes era trabalho, agora era sexo.

E assim fui seguindo na antropologia do olho, até que o fato que destrona a observação segura do olhante antropológico imperou. Como? Quando passei de um olho alheio para outro, no meio do caminho, bem entre um corte e outro do movimento, fui surpreendida por um outro olho que fixadamente me examinava, como que intrigado com o meu jeito de olhar e em seguida escrever.

Três cortes, portanto, o olho que vê e escreve; o olho visto que fala em silêncio para o que escreve; o olho que examina o que escreve...

(sem continuidades... o ônibus chegou, as forças minguaram...)



17 de junho de 2015

Frio e Calor, uma quentura

Hoje quero escrever para o convívio dos últimos dias. Uma convivência estranha, forçosa e que tem me levado ao limite das forças.
É o Frio. Sim, ele bateu! Mas por que?
Um corpo cujas tatuagens são todas de quentura... tatuagens quentes da capital cearense, passando pelo cerrado central goiano ao cerrado mineiro triangulino. Um corpo cujas escolhas literárias e filosóficas passam recorrentemente por zonas temperadas que destacam com insistência quenturas em palavras.
Ora, o que fazer com esse Frio?
Por onde e como adentrá-lo para atingir sua região calorosa?
Sempre há o aquecido, mesmo no mais rigoroso dos tempos morbidamente gelados.
A mão já não sai debaixo dos tecidos para escrever nem uma letra. O pensamento insiste com vontade na continuidade das leituras, mas vai cedendo a cada queda no termômetro.
Inegavelmente há diferença nas escritas em acordo com forças térmicas que nos rondam.
O desafio mais problemático se impõe na busca por um fiasco de momento em que a indeterminação seja tão plena que Frio e Calor se encontrem num imbróglio indissociável, e, assim, um e outro se comam antropofagicamente.
São personagens distintas. O Calor te exige nu, aberto, suando. O Frio te exige excessivamente vestido, fechado, seco. O momento do encontro se dá duplamente: no banho e no chá, para um, água fria, para outro, água quente.
Sim, sinistro. O Frio pede a todo momento um banho Quente. O Calor pede um banho Frio. Fiasco da indeterminação?! Ambos lhe pedem justamente o que não tem para que sorrateiramente se encontrem.
O chá do Frio é obrigatoriamente quente, daí gengibre e canela. O chá do Calor é por sobrevivência Frio, daí o capim cidreira com limão gelado.
Frio e Calor não expressam uma relação dialética, se dão justamente na afirmação um do outro... é absurdamente chocante! O Frio afirma o Calor a cada vez que se mostra mais Frio.
Já não mais sei... e enquanto tal, o corpo vai virando e se revirando como que deitado numa pedra de gelo que queima como que sendo fogueira!
(para os dias em que Curitiba me deu 1° grau e meu corpo sofreu)
Carol Gomes

16 de junho de 2015

Nietzsche diz no aforismo de 'A Gaia Ciência' intitulado "Amizade estelar":
Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois navios que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho; podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos – e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol. Parecendo haver chegado ao seu destino e ter tido um só destino. Mas, então, a todo-poderosa força de nossa missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos, e talvez nunca mais nos vejamos de novo – ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos reconhecermos: os diferentes mares e sóis nos modificaram! Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é da lei acima de nós: justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos – elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade. – E assim crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos de ser inimigos na Terra.

Deleuze em entrevista diz sobre a Amizade:
A amizade. Por que se é amigo de alguém? Para mim, é uma questão de percepção. É o fato de... Não o fato de ter idéias em comum. O que quer dizer “ter coisas em comum com alguém”? Vou dizer banalidades, mas é se entender sem precisar explicar. Não é a partir de idéias em comum, mas de uma linguagem em comum, ou de uma pré-linguagem em comum. Há pessoas sobre as quais posso afirmar que não entendo nada do que dizem, mesmo coisas simples como: “Passe-me o sal”. Não consigo entender. E há pessoas que me falam de um assunto totalmente abstrato, sobre o qual posso não concordar, mas entendo tudo o que dizem. Quer dizer que tenho algo a dizer-lhes e elas a mim. E não é pela comunhão de idéias. Há um mistério aí. Há uma base indeterminada... É verdade que há um grande mistério no fato de se ter algo a dizer a alguém, de se entender mesmo sem comunhão de idéias, sem que se precise estar sempre voltando ao assunto. Tenho uma hipótese: cada um de nós está apto a entender um determinado tipo de charme. Ninguém consegue entender todos os tipos ao mesmo tempo. Há uma percepção do charme. Quando falo de charme não quero supor absolutamente nada de homossexualidade dentro da amizade. Nada disso. Mas um gesto, um pensamento de alguém, mesmo antes que este seja significante, um pudor de alguém são fontes de charme que têm tanto a ver com a vida, que vão até as raízes vitais que é assim que se torna amigo de alguém. Vejamos o exemplo de frases! Há frases que só podem ser ditas se a pessoa que as diz for muito vulgar ou abjeta. Seria preciso pensar em exemplos e não temos tempo. Mas cada um de nós, ao ouvir uma frase deste nível, pensa: “O que acabei de ouvir? Que imundicie é essa?” Não pense que pode soltar uma frase destas e tentar voltar atrás, não dá mais. O contrário também vale para o charme. Há frases insignificantes que têm tanto charme e mostram tanta delicadeza que, imediatamente, você acha que aquela pessoa é sua, não no sentido de propriedade, mas é sua e você espera ser dela. Neste momento nasce a amizade. Há de fato uma questão de percepção. Perceber algo que lhe convém, que ensina, que abre e revela alguma coisa.


Durante um tempo adolescente nosso sonho mais urgente e ousado era formar uma banda, claro!, ao estilo Legião Urbana, afinal os anos bem vividos nos idos dos 90 exigiam ter na ponta da língua “Faroeste Caboclo” com todas as pausas e entonações dignas de um charme dado à rebeldia.

Cabe um pergunta: será esse o melhor e mais nobre início de um texto cujo objetivo nada útil mas persistente na ânsia por escolher palavras ímpares de exaltação de uma amizade? Recomecemos...

O amigo pode não saber de antemão que quando ele diz: “escreva um texto bem lindo sobre a nossa amizade”, em fato está num ato inesperado e inimaginável, colocando o universo na palma da mão e dizendo: “Decifra!”

O que você escreveria diante de um pedido assim? Talvez devesse escrever com a luz, e então seria uma fotografia numa grama verde do parque, tendo no primeiro plano uma roda gigante horizontal com banquinhos coloridos. Quem sabe devesse escrever com o som, e então seria uma música mineira sem pudores modistas e eruditos que evocassem as batidas da ‘geração lá lá’. Sim! do Clube da Esquina. Talvez escrevesse nos moldes de uma narrativa infantil, daquelas vibrações que fazem da vida adulta, recorrentemente, a afirmação de uma infância desafiadora porque exige leveza construída pós titubeios do existir. Talvez não escrevesse e usando da habilidade manual fizesse um presentinho tão simples arredio a qualquer fetiche, sobretudo tendo como matéria prima o papel do maço dos cigarros que jamais foram fumados. Sim!, aquela florzinha que você só faz para os que afetivamente te atravessam. Talvez fizesse uma colagem com vários trechos de músicas da adolescência e enviasse por correios. Talvez buscasse na literatura passagens belíssimas em referência à amizade e junto a uma muda de manjericão e entregasse pessoalmente numa visita surpresa. Melhor ainda, sem escrita, sem fotografia, sem florzinha artesanal, sem colagem, sem citações literárias e manjericão, sem textos... nada, nada!

Como um ‘nada’ para atender ao pedido do amigo? Simplesmente porque é preciso dizer sem palavras para o amigo que durante dias você se debruçou pensando e repensando, e que não tendo conseguido encontrar a melhor escrita, o melhor presente, a melhor demonstração de carinho, em fato, você passou por possibilidades conhecidas para dizer dessa amizade. Tendo passado por todas as possibilidades alcançadas pela mente e ainda sim não tendo encontrado nada para significar a amizade, o mais lindo que poderia ser feito o foi nas tentativas que concluíram pela abertura do texto que deseja ser o mais magno e agradável de ser lido.

A abertura do texto não escrito é essa que tem um monte de palavras, e que na pulsão e num fluxo de afetos agitados se consegue ler o que vai sendo posto nos entrelinhas. É isso, é esse o texto de uma amizade com cultivo livre, sem obrigações e possessividades; é como o cultivo de uma horta que você sempre desejou em casa mas que por motivos diversos nunca concretizou, embora todos os dias andando pelo mundo você aguou plantas dos passeios, canteiros de praças, jardins de casas anônimas... sim, é um cultivo anônimo, sem refletores e nobre em existência.

Eu poderia escrever um texto florido, entretanto, escolhi, porque o universo se faz nas escolhas, abrir com leveza a escrita para que as energias passassem, per-sentindo que hoje a mais linda palavra seria a abertura, que ao seu lado traria leveza... Eis então que o melhor texto haveria de não ser escrito porque aí sim ele seria lido tendo nas suas partes tudo que se poderia dizer e fazer por um amigo.

[para minha amiga Renata das memórias alegres *** 
texto escrito em 06abril2015 numa segunda-feira 
noturna viçosense, ali, sentada num 
botequinho ao pé da ladeira que dá 
acesso à morada da família Faria]




6 de maio de 2015


corriqueira carta com palavras transbordadas

Bebete, vou te contar umas coisas, falando bem baixinho. Como se falando baixo o tempo não escutasse, as paredes nem percebessem e o mais importante é que algumas coisas dentro da gente, talvez uns ‘eus’ da gente, não soubessem.


Um dia recebi uma mensagem simples e cordial me pedindo umas indicações de livros sobre existencialismo. A princípio um fato corriqueiro do dia-a-dia, sem grande mistério. 

Um dia recebi um convite para assistir a um filme com temática ambiental. A princípio um fato corriqueiro do dia-a-dia, sem grande mistério.

Um dia percebi uma existência e pressenti que tinha algo misterioso nessa existência. A princípio um fato corriqueiro do dia-a-dia, sem grande eventualidade.

Um dia vi uma foto e lá um olhar que vibrou diretamente em mim do outro lado da tela. A princípio um fato diferente, pouco inquietante, algo como ‘ser não-sendo’.

E o que é um fato corriqueiro do dia-a-dia sem grande mistério?

Um dia peguei um raminho de flor numa praça pública. Fato corriqueiro sem grande relevância, mas nesse dia percebi que as flores cultivadas nas praças traziam um universo particular, elas traziam uma leveza do descompromisso de se mostrarem belas diante da indiferença dos que passam. Desde então, pressenti que presentear com raminhos de rosas ou flores de jardins públicos é uma demonstração corriqueira, pequena em brilhantina, embora, grande em afeto porque rompe silenciosamente com a indiferença.

Um dia aprendi a fazer flor com papel laminado do maço de cigarros. A feitura da flor é rápida, discreta e geralmente acontece na mesa de um boteco. Num momento em que alguém se lança numa introspecção e escutando os colegas, vai cortando pedacinhos e pedacinhos até emparelhar as pétalas e enlaçá-las dando o formato de flor, sim, como uma ‘borboleta que o vento tirou para dançar’. Fazer uma flor na mesa do bar e presentear quem te afeta, é como dizer que não se tem ‘paraíso para oferecer’, mas que tendo uma vida plebeia, presentear com flor do maço de cigarros que você nunca fumou, é reinventar o universo para por alguns segundos entrar no olhar daquele que se deseja. Dar uma flor assim é um gesto que aparece como corriqueiro, mas na simplicidade da flor, revela uma grandeza de afeto.

Um dia escutei gestos sem emissão de som, escutei os gestos com o meu olho. Esses gestos se lançavam, aparentemente, num misto de ansiedade e de não seriedade. Sim, esses gestos eram corriqueiros e foram se somando e me emaranhando numa história nada oficial, aliás, distante de qualquer oficialidade. Uma história de puro simulacro, ou nos termos da internet, uma história fake.

Momentos intensos sem serem momentos, porque ninguém sabia; aliás, nem os corpos pareciam saber da grandeza experimentada. Namoro sem ser namoro, sem pedido expresso. Casamento sem casório, sem rituais, embora transbordado de convivência e companheirismo. Términos sucessivos de uma relação que não existiu, embora acontecida durante longos meses. Amor vivido e raríssimas vezes declarado com frase clichê de casal. Sexo perfeito com prazerosas imitações. Convivência familiar com sogros, cunhados e avós, sem jamais se conhecerem. Uma rede dignamente simulacra.

E o que é um fato corriqueiro do dia-a-dia sem grande mistério?

O corriqueiro sem grande mistério foi tudo o que se permitiu aparecer. O simulacro-fake foi a via encontrada de abertura e mergulho, ‘vivendo um dia após o outro’ para que assim o tempo que desgasta não nos aprisionasse. Todos os dias os mesmos corpos surgiam como corpos novos, por isso a atração não acabava, nem com os mais múltiplos prazeres, insaciável, desejo sem fim, justamente porque era tudo sem ser nada, acontecia sem existir, por isso fake.

O corriqueiro tinha roupa, mas o grande mistério era nu, silencioso e pulsante. Por ser grande transbordou e nós que sabíamos falar a linguagem do corriqueiro, não conseguimos falar a língua do grande mistério, aí, doemos. Não queríamos jamais doer, e sem querer doemos mais ainda. Doemos porque apenas olhando decidimos não falar do grande mistério, optamos por experimentá-lo sempre mais e mais; então nos negamos a falar, sabiamente, nos negamos a falar do grande como sendo algo corriqueiro que se tem em qualquer esquina.

Um dia, acordei com esse grande mistério transbordando no peito, transbordou muito que doeu, e essa grandeza irradiando por todo o corpo me explodiu.

Um dia eu senti o amor como excesso, não como falta. Esse amor se fez lindo porque longe das grandes teorias e modelos, ele aconteceu sem existir, porque ele foi grande em mistério e belo em cores que só dois olhares experimentaram.

Um amor que não existiu, mas aconteceu. Um amor que não tem provas, mas tem sinais. Um amor que não tem matéria, mas tem marcas em todos os lugares. Um amor que não tem começo porque sem existência ele nunca haveria de ter começado, mas um amor que por ter acontecido insiste em simular seu fim, que foi sem ter sido. Por certo, os tantos fins embora anunciados não haverão de findar, porque como fake, esses fins não existem.

Um amor sem existir, mas acontecido. Um amor sem começo e por isso sem fim.

Passado tanto tempo, talvez entendamos aquele pedido por livros sobre existencialismo, porque mais do que livro, hoje temos momentos acontecidos numa existência particular, grande, misteriosa e singular; por isso, sem fórmulas, sem compreensões, sem clichês.

[para você, Bebete, minha carta de amor]

carol gomes

30 de abril de 2015

reza terapêutica

Meu colega g-zuis, aqui da cozinha esperando meu chá ficar pronto, te peço uma noite com muitos sonhos, pq a realidade do meu país me faz chorar como se eu tivesse levado uma surra da minha mãe já na maturidade. É tão doído esse momento que preciso sonhar enquanto uma terapia para que eu não desista de acreditar na vida, que sempre busco afirmá-la em cores.

Pensa numa surra com murros na cabeça, murros no estômago, chinelada na cara, tapa na boca que cortando os lábios faz sangrar. Pensa numa surra que te deixa com pernas e braços roxos, barriga dolorida e vergões de cinto de couro nas costas. O pior dessa surra é a familiariadade no rosto que te bate. Minha mãe, minha nação.

Hj peço a g-zuis, peço aos deuses, peço às forças que me habitam: dêem-me sonhos belos, por necessidade para reencontrar alegrias!

Amanhã é dia de comemoração das surras históricas: dos trabalhadores.

"sonhei que pintei minhas noites de amarelo, lindas estrelas no meu mundo eu coloquei. O feio que era feio ficou belo, até o vento do meu mundo eu perfumei. Numa apoteose de poesia..." (tom zé)

[por ocasião, indignada com o agressão da PM aos professores no Paraná por ordem do governador Beto Richa - PSDB]

29 de abril de 2015


eu que sou mineira, conheço muito bem o PSDB do Aécio Neves
eu que morei em Goiás, conheci o PSDB do Marconi Perilo
eu que hoje moro em Curitiba, estou conhecendo o PSDB do Beto Richa
eu que sou brasileira, conheci o PSDB do Fernando Henrique

o que vi sempre nessas experiências não foram confrontos entre professores e policiais, o que vi sempre são MASSACRES a professores. policiais armados e com cachorros batendo em professores que seguram faixas e cartazes. MASSACRE de professores e estudantes.

sabe qual a minha conclusão depois de ser manifestante desde os 15 anos sempre lutando pela educação, como estudante e como professora?!

que esse PSDB é uma doença, é uma herança horrenda que mata, que mata fisicamente e mata psicologicamente. é triste com 31 anos ter essas marcas na memória vista, na epiderme...

sim, repudio esse PSDB, repudio essa política que os governos tucanos estão implementando à força e que começou com o Paulo Renato qdo foi ministro.

sim, esse PSDB é meu inimigo e diariamente vou continuar combatendo essa prática, esse fascismo com cara de mocinho galã que está enraizado no país!

meu repúdio visceral a essa escrotice, porca, cadavérica, fedorenta da política brasileira. políticos que mandam bater, mandam cachorros pitbul morderem professores, que mandam policiais jogarem bomba, lançar pimenta na cara de crianças, mulheres, estudantes... meu repúdio a essa porcaria toda!

10 de abril de 2015

diálogo alheio matutino sem café

amanheço já no aeroporto da elogiada Curitiba, louca para chegar na província triangulina, eis que após conseguir embarcar com o voo atrasado, sou surpreendida. Nem sentei direito na 22F e ouço do trio fêmeo dos assentos atrás:

- F1: eu gosto de funk e não tenho vergonha de dizer. O povo gosta mas tem vergonha de dizer.
- F2: eh, eu escuto e hoje não tenho mais vergonha de falar, mas já tive.
- F1: escuto funk e vejo BBB. O povo tudo vê mas fala que não, pq milhões assistem só que não dá para provar quem vê.
-F3: eu não assisto pq não pega SBT e Globo na minha casa.
- F2: e Ratinho, vc assiste?
- F1: Ratinho não, não tem nada interessante.
- F3: olha quem fala, gosta de funk e tem preconceito com o Ratinho.
- F2: e vc gosta de que tipo de funk?
- F1: gosto dos básicos, sem palavrão, sem sacanagem.
- F2: eu gosto do que tem sacanagem.
- F1: nossa, vc é muito brega!
- F3: eu sou eclética, mas só com produtos de beleza, música gosto só de sertanejo universitário.
- F1: ai, adoro esse chocolate com sebo que fica liso na boca. Tem gosto de banha.
- F2: gosto de banha?
- F3: ela quis falar gosto de parafina, aquele gosto de manteiga karaté do cabelo.

Pensei:
Bom dia, Brasil... vc de fato arregaça qualquer teoria europeia que pense o homem sociedade.
Juro que fiquei louca para virar para trás e dizer: antes não gostava de funk sacanagem, hj adoro a mulherada funkeira fudendo geral.

6 de abril de 2015

"eu que sinto fascínio pelas possibilidades de atravessar os portais da sua escrita, em outros termos, sinto tesão nas possibilidades de penetrar o buraco das suas palavras".

(poesia quase sociológica para uma noite de domingo cheia de perguntas famintas por arte como potência de mudanças)

28 de março de 2015

que as buzinas toquem flauta doce e que triunfe a força da imaginação!

diz o oswaldo que essa é a música que ele compôs para a felicidade...

engraçado, a imaginação tinha que aparecer nessa novela... rssss porque imaginação e hábito são amantes, amantes eróticos, se desejam! lindo lindo... daí que felicidade é hábito, é praticar diariamente... vixe! e praticando você libera as conexões dos hojes, do agora, do agora de ontem, do agora de amanhã... praticar agora, praticar agora daqui a pouco, praticar agora daqui ontem...

mas isso aí é só para quem não separa prática-pensamento! para quem literalmente molha calcinha e cueca no uso descontínuo da imaginação: nas mãos, na boca, nas pernas, nos olhos...


27 de março de 2015

dois mitos que revelam ausência de criticidade, e para os cristãos, amor e respeito com o outro:

Mito 1) bolsa família está aumentando vagabundos. Você teria condições emocionais para parir um filho só para ganhar alguns reais?!

Não responda para mim, responda para você, sem pronunciar nem uma palavra!

Mito 2) a frota de carros de 2003 até hoje vai acabar com as condições de tráfego no país. Claro, depois que pobre conseguiu comprar carro com o bolsa família, a culpa é dele... mas ninguém quer questionar os milionários que tem 4 carros na garagem para uma família de 4 pessoas.

a1) Você sabia que carro de pobre atende necessidades de locomoção de pelo menos 5 casas? A do dono e dos vizinhos ao redor? Porque pobre quando passa mal pede ajuda ao vizinho que prontamente levanta na madruga, enfia o 'enfermo' no carro e leva para o pronto atendimento.

a2) Você sabia que pobre dá carona para quem está no ponto de ônibus? para quem sobe morre? para quem está carregando menino no colo e correndo da chuva?

a3) Pobre faz mudança no carro...

a4) Pobre não é milagroso, mas é jesuis: multiplica o pão!

quanto mais eu ouço sobre o governo, mais eu vejo o ódio, o nojo de pobre, o preconceito escorrendo entre nós!



26 de março de 2015

O prato do dia não era casadinho, mas a salada era mineira

Mais uma manhã de biblioteca cuja labuta são as imagens que insistem em não continuar o movimento diferenciante, sendo que ao meio dia e pouco resolvi procurar um almoço ao estilo leve para não retardar a retomada da pesquisa tarde adentro.

Logo na esquina entrei faminta no tal Bistrô Público; a pista de frios era interessante, embora a pista quente, nada convidativa ao vegetarianismo. Hum?! Encarei mesmo assim e servido o prato, segui a empreitada por uma mesa livre, porém todas ocupadas; então pensei por uns segundos em pé com o prato na mão no meio do salão: “Hora de exercitar a experiência de frequentadora de RU e pedir a beira de alguma mesa; vai que rola uma amizade?!”.

Avistei um homem sentado quase que findando a refeição: “Bem, é com ele que vou almoçar, porque se algo der errado ele já está no fim”.
Eu: Posso sentar com o senhor?
Ele: Sim, claro, por favor!
Eu: Obrigada!

Sentei e comecei a refeição pela salada, pensando: Puxo conversa ou faço jus ao estilo curitibano de se manter reservado excessivamente?
Tempos depois o moço dirigiu a mim a pergunta: Você é estudante de quê?
Em fração de segundos entrei no processo surtado do diálogo interno: É tão visível assim que sou estudante? E então respondi para ele: Uai, estudo filosofia e fico tentando estudar artes”.

O moço do cabelo bem ralinho e louro continuou: Que ótimo, muito bom almoçar com uma filósofa.
Droga! Três equívocos de um almoço numa só fala: i) achar que todo estudante de filosofia é filósofo; ii) achar que filósofo sabe tudo da existência e é irmão do terapeuta; iii) se ele ver comida nos meus dentes o problema não é meu, ele quem está embarcando numa conversa enquanto mastigo.
Continuou o moço: Me diz uma coisa, o que os filósofos dizem do amor?
“Não, não, não! Me recuso a conversar com ele”. Pensei urgentemente já acelerando os batimentos cardíacos. “Puxa, moço, por esses dias não!, só ando podendo pensar sobre imagens, imagens, tempo...

Olhei para ele cravando nos olhos uma máxima não filosófica: Uai, o Sr. sabe que não sei?! Estou começando a estudar filosofia agora, entrei no curso faz pouco tempo.
Ele: Ah sim, você parece mesmo bem novinha!
Pensei: Maravilha, saí dessa e ainda recebi um elogio! E perguntei: Mas por que o Sr. quer saber sobre o amor?
Ele: Porque meu casamento acabou hoje cedo.
Respirei pensativa: Vixe, vou acelerar esse almoço e correr daqui porque a bomba vai explodir, e se essa explosão não for aquela interna do tal impulso vital bergsoniano, será aquela emotiva que leva junto tudo e todos que estão perto.
Murmurei: Hã, entendi.
Vim almoçar aqui porque vou mudar a rotina de lugares e hábitos para esquecer logo. Disse o recém descasado naquele semblante de monólogo.

Do outro lado da mesa pensava eu: Para que fui ler Proust um dia na vida?! Para que fui nascer num momento de casa dupla em leão?! Para que a gente ama?!
E assim íamos com o almoço, ele soltando umas brechas no seu monólogo e eu reagindo em duas direções: respondendo com 'hã', 'hum', 'entendo', e, com a cabeça borbulhando ao retomar lembranças psicológicas de experiências amorosas.
Pensa na cena, uma cenografia completa livre para o jogo de iluminação conforme a intensidade do roteiro: uma mesa; dois pratos; dois humanos de frente um para o outro, uma mineira e o outro, talvez, paranaense; um vasinho de flor artificial acompanhado do suporte de palito, guardanapos e sachês de sal; jogo americano de papel em tom laranja... se o plano fosse close, qualquer um acreditaria que eu seria a ex casada do monólogo daquele Sr.; vxe!

O moço acabou o almoço e pediu sobremesa. Depois terminei o meu e pedi café. Ele no monólogo e eu no pensamento. Um almoço à la Bergman que nem de longe eu havia planejado para o dia.
Terminei o café e fui me despedindo. Até que ele fez uma pausa no monólogo e perguntou afirmando: Você não é daqui, né?!
Respondi com a boca salivando em cafeína: Sou mineira! Tchau, até mais!
Paguei o almoço e segui para a biblioteca atormentada com a situação, afinal, agi de modo curitibano, não falei uma oração com dois verbos, entretanto meu pensamento inundava em lágrimas verbais espelhadas no monólogo do moço.

Sim, eu também tinha dor de amor para falar, mas naquele almoço não rolava comê-la novamente com a salada, preferi tal qual uma estrangeira aparentar uma in-diferença fugitiva, nesse sentido, reforçar minha territorialidade mineira: comer caladinha a salada amorosa, porque se o sabor for um amargo dolorosamente comestível, as lágrimas poderão se revestirem em arte, num sentido decalcado de arte, o terapêutico.

(vale lembrar que o que se diz de jeito 'curitibano, paranaense', é apenas um ficção sem sentido pejorativo).

24 de março de 2015

eu que na praticidade necessito mergulhar no cinema, tô só me embriagando de fotografia...
a garrafa da bebida tá trocada?!
não
a bebida de uma mesma garrafa tá diferente?!

fotografia: Arnaldo Pappalardo

o carro vai cair na piscina. piscina?!
as roupas vão voar do varal para o quintal do vizinho. de que lado?!
o cano da parede estourado vai infiltrar tudo. cano?!
ao chegar na parede rosa, vire à esquerda para estacionar na garagem. garagem?!
a tinta escorreu da lata e marcou para uma finitude passageira o chão. que tinta?!
e do buraco amarelo da piscina saiu o suporte do varal. do varal que não precisa de suporte?!


Exposição de trabalhos do fotógrafo: Arnaldo Pappalardo

tá na cara... não há imobilidade na fotografia! mas as provas são tão móveis que a linguagem não alcança! Fudeu!


fotografia: Arnaldo Pappalardo

o vermelho sempre sabe que quem dança é o sapato embalado nos tons nem sempre frios do azul!

23 de março de 2015

na andanças temporais aprende-se o gosto das estradas como pontos lisos de interseções do estarmos a ser.
(31.12.12 br 153 posto alvorada entre goiânia e itumbiara)
[no posto rodoviário, entre, mas só-entre, um café e outro café, a gente vê um movimento e se pega como dobra]

- adendos de uma não causalidade necessária -
emotivamente criador perssentir o quão é indispensável mover morada para sentir o corpo, ver o barulho no silêncio, ouvir a quentura da pele no frio, saborear a regionalidade distendida da mesma língua, cheirar as palavras novas de uma leitura repetida.
só há uma constância, o de não ser idêntico, mesmo, fixo. há fórmula, porém com variáveis móveis.
viver não é preciso. navegar é preciso!
fixar não é preciso. mover é preciso!



19 de março de 2015

a bola problemática da vez é um imbróglio casamenteiro entre tempo, luz e fotografia... eita frio sulista em pleno março para um corpo com marcas do cerradão mineiro...

a gente sempre começa numa inocência profana de crer mentirosamente de que fotografar é só apertar o botão... no clique do trem passa uma feitiçaria múltipla cujo ingrediente da macumba é encarnar no mesmo corpo: tempo, luz e vida!

"quando buscamos uma lembrança que nos escapa, temos consciência de um ato sui generis, pelo qual nos destacamos do presente para nos colocar, inicialmente, no passado em geral, depois em certa região do passado: é um trabalho tateante, análogo à preparação de um aparelho fotográfico". |gd; b|


12 de março de 2015

eis Catarina... que do teatro de sombras me provoca a perguntar: qual delas?!

quem é mais Catarina?! Não, não... ambas são Catarinas, apenas cada uma na sua intensidade de absorção da luz...


6 de março de 2015

beleza, universo! vossa complexidade escapa,... me faz a mim sentir-me-lho!
ao passo disso tudo eu querendo fotografar, tapiocar e pandeirar.
[imagens: trechos do gd em b, 1966]



1 de março de 2015

'contos de tóquio' [1953, ozu] e 'eles não usam black-tie' [1981, leon hirszman]

eu diria que o sorriso de Noriko [1953] e os olhos de Romana [1981] dão o encontro de um tempo cujo real parece estreito demais para o cinema.

duas obras, dois diretores, um diálogo!

Kyoko: A vida não é decepcionante?
Noriko [sorrindo]: Sim, ela é.
(trecho de 'contos de tóquio')

a cena brutal que regaça qualquer pulsação em Eles não usam black-tie[filme brasileiro de 1981, diretor Leon Hirszman]

cena brutal de quando o vazio é a personagem imponente sem participação na matéria, embora, insistentemente atual(izado).
[filme japonês de 1953 'contos de tóquio', direção: Yasujirô Ozu]

amanhecer é movimento, de tempo... as sombras, como fotografia, revelam!
[filme japonês de 1953 'contos de tóquio', direção: Yasujirô Ozu]

21 de fevereiro de 2015

fotografia performática
fotografia das invisibilidades cotidianas
fotografia movente
fotografia...
fotografia do micro...
fotografia do olho...
fotografia!

fotografia: Araquém Alcântara; Dona Massu ; Chapada Diamantina

1 de fevereiro de 2015


Resolvi dar um rolê de domingo na feira para comer um pastel com café. Imediatamente ao chegar, encontro um senhor em tom bem comunicante de feirante: "tenho 82 anos e já não sinto mais dores depois que descobri esse vestido". Sim. Ele usava um vestido vermelho.

Até aí nada diferente... se sua cabeça é de andanças por grandes centros onde a diversidade se mostra cotidiana, porém, quando você busca o cenário e encontra uma cidade pequena de interior, cujo conservadorismo é oficial, a certeza de que as linearidades soluçam ganham volume, cores e cheiros.
Continuei o rolê e logo à frente pedi um café e um pastel de guariroba (que por sinal aqui a pronúncia é 'gayroba'). Sentadinha comendo meu pastel ouço a pérola:
"A Dilma não sabia de nada desses rolos porque ela é de sagitário e sagitário não mente e é inocente."
Fiquei pensando e engolindo meu café: "feira como sempre surpreendente, inclusive reveladora dos referenciais e descobertas populares".

Hoje aprendi que i) só vou acreditar em político depois de ler seu signo e ii) vou eliminar dores da velhice fazendo o que quero e como quero.

(feira livre do junqueira em ituiutaba mg - 01/fev/15)




26 de janeiro de 2015

ia sustentada numa certeza certificadamente incerta, mas ia.
porque ir naqueles presentes passares era o verbo mais pulsante dos dias.
com os passares foi aprendendo que o ir era a única expressão do ficar.
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na marcação de cronos chegaram as 20:23 e embora marque o anoitecer, o céu insiste em desfilar como dia.
assustadamente ergui a cabeça e surpresa vi o roxo, no céu.
sim, o céu esteve roxo!