16 de junho de 2015

Nietzsche diz no aforismo de 'A Gaia Ciência' intitulado "Amizade estelar":
Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois navios que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho; podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos – e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol. Parecendo haver chegado ao seu destino e ter tido um só destino. Mas, então, a todo-poderosa força de nossa missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos, e talvez nunca mais nos vejamos de novo – ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos reconhecermos: os diferentes mares e sóis nos modificaram! Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é da lei acima de nós: justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos – elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade. – E assim crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos de ser inimigos na Terra.

Deleuze em entrevista diz sobre a Amizade:
A amizade. Por que se é amigo de alguém? Para mim, é uma questão de percepção. É o fato de... Não o fato de ter idéias em comum. O que quer dizer “ter coisas em comum com alguém”? Vou dizer banalidades, mas é se entender sem precisar explicar. Não é a partir de idéias em comum, mas de uma linguagem em comum, ou de uma pré-linguagem em comum. Há pessoas sobre as quais posso afirmar que não entendo nada do que dizem, mesmo coisas simples como: “Passe-me o sal”. Não consigo entender. E há pessoas que me falam de um assunto totalmente abstrato, sobre o qual posso não concordar, mas entendo tudo o que dizem. Quer dizer que tenho algo a dizer-lhes e elas a mim. E não é pela comunhão de idéias. Há um mistério aí. Há uma base indeterminada... É verdade que há um grande mistério no fato de se ter algo a dizer a alguém, de se entender mesmo sem comunhão de idéias, sem que se precise estar sempre voltando ao assunto. Tenho uma hipótese: cada um de nós está apto a entender um determinado tipo de charme. Ninguém consegue entender todos os tipos ao mesmo tempo. Há uma percepção do charme. Quando falo de charme não quero supor absolutamente nada de homossexualidade dentro da amizade. Nada disso. Mas um gesto, um pensamento de alguém, mesmo antes que este seja significante, um pudor de alguém são fontes de charme que têm tanto a ver com a vida, que vão até as raízes vitais que é assim que se torna amigo de alguém. Vejamos o exemplo de frases! Há frases que só podem ser ditas se a pessoa que as diz for muito vulgar ou abjeta. Seria preciso pensar em exemplos e não temos tempo. Mas cada um de nós, ao ouvir uma frase deste nível, pensa: “O que acabei de ouvir? Que imundicie é essa?” Não pense que pode soltar uma frase destas e tentar voltar atrás, não dá mais. O contrário também vale para o charme. Há frases insignificantes que têm tanto charme e mostram tanta delicadeza que, imediatamente, você acha que aquela pessoa é sua, não no sentido de propriedade, mas é sua e você espera ser dela. Neste momento nasce a amizade. Há de fato uma questão de percepção. Perceber algo que lhe convém, que ensina, que abre e revela alguma coisa.


Durante um tempo adolescente nosso sonho mais urgente e ousado era formar uma banda, claro!, ao estilo Legião Urbana, afinal os anos bem vividos nos idos dos 90 exigiam ter na ponta da língua “Faroeste Caboclo” com todas as pausas e entonações dignas de um charme dado à rebeldia.

Cabe um pergunta: será esse o melhor e mais nobre início de um texto cujo objetivo nada útil mas persistente na ânsia por escolher palavras ímpares de exaltação de uma amizade? Recomecemos...

O amigo pode não saber de antemão que quando ele diz: “escreva um texto bem lindo sobre a nossa amizade”, em fato está num ato inesperado e inimaginável, colocando o universo na palma da mão e dizendo: “Decifra!”

O que você escreveria diante de um pedido assim? Talvez devesse escrever com a luz, e então seria uma fotografia numa grama verde do parque, tendo no primeiro plano uma roda gigante horizontal com banquinhos coloridos. Quem sabe devesse escrever com o som, e então seria uma música mineira sem pudores modistas e eruditos que evocassem as batidas da ‘geração lá lá’. Sim! do Clube da Esquina. Talvez escrevesse nos moldes de uma narrativa infantil, daquelas vibrações que fazem da vida adulta, recorrentemente, a afirmação de uma infância desafiadora porque exige leveza construída pós titubeios do existir. Talvez não escrevesse e usando da habilidade manual fizesse um presentinho tão simples arredio a qualquer fetiche, sobretudo tendo como matéria prima o papel do maço dos cigarros que jamais foram fumados. Sim!, aquela florzinha que você só faz para os que afetivamente te atravessam. Talvez fizesse uma colagem com vários trechos de músicas da adolescência e enviasse por correios. Talvez buscasse na literatura passagens belíssimas em referência à amizade e junto a uma muda de manjericão e entregasse pessoalmente numa visita surpresa. Melhor ainda, sem escrita, sem fotografia, sem florzinha artesanal, sem colagem, sem citações literárias e manjericão, sem textos... nada, nada!

Como um ‘nada’ para atender ao pedido do amigo? Simplesmente porque é preciso dizer sem palavras para o amigo que durante dias você se debruçou pensando e repensando, e que não tendo conseguido encontrar a melhor escrita, o melhor presente, a melhor demonstração de carinho, em fato, você passou por possibilidades conhecidas para dizer dessa amizade. Tendo passado por todas as possibilidades alcançadas pela mente e ainda sim não tendo encontrado nada para significar a amizade, o mais lindo que poderia ser feito o foi nas tentativas que concluíram pela abertura do texto que deseja ser o mais magno e agradável de ser lido.

A abertura do texto não escrito é essa que tem um monte de palavras, e que na pulsão e num fluxo de afetos agitados se consegue ler o que vai sendo posto nos entrelinhas. É isso, é esse o texto de uma amizade com cultivo livre, sem obrigações e possessividades; é como o cultivo de uma horta que você sempre desejou em casa mas que por motivos diversos nunca concretizou, embora todos os dias andando pelo mundo você aguou plantas dos passeios, canteiros de praças, jardins de casas anônimas... sim, é um cultivo anônimo, sem refletores e nobre em existência.

Eu poderia escrever um texto florido, entretanto, escolhi, porque o universo se faz nas escolhas, abrir com leveza a escrita para que as energias passassem, per-sentindo que hoje a mais linda palavra seria a abertura, que ao seu lado traria leveza... Eis então que o melhor texto haveria de não ser escrito porque aí sim ele seria lido tendo nas suas partes tudo que se poderia dizer e fazer por um amigo.

[para minha amiga Renata das memórias alegres *** 
texto escrito em 06abril2015 numa segunda-feira 
noturna viçosense, ali, sentada num 
botequinho ao pé da ladeira que dá 
acesso à morada da família Faria]




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