21 de agosto de 2011

[...] Sim, sei que tenho tido o hábito de soltar por aí em diálogos despretensiosos, passagens da filosofia, e tal feito não o vai involuntariamente, nem tampouco voluntariamente, é meramente um jeito pessoal de não dissociar vida e arte, de não marcar uma tal divisória entre real e ficção, ou na pior das hipóteses, entre vida e pensamento. Ora, amante que sou das invisibilidades vividas e percebidas sem a necessária materialidade formal, não conseguiria passar por obras cuja problematização da existência estivesse presente, sem me deixar ser atravessada por elas, bem como, não seria nada vivível encantar-me por uma obra filosófica sem reconhecer a potência dos conceitos emaranhados nela, sobretudo porque por entre esses conceitos o que me aparece é a vida transbordando e gritando alegremente pelo brilho do existir, com todas as tensões incluídas.

Carol Gomes

15 de agosto de 2011

Reflexo invertido

A memória já me foi um dragão altivo, atualmente mostra-se como fita k7 de várias gravações sobrepostas, com misturas e soluços. Pois bem, ainda no ‘foi’, escutei uma frase simples e irônica que abriu janelas: “Está com algum problema? Leia um bom livro, lá você terá o diagnóstico e a cura”.

Como pode uma frase nada prestativa como essa?! E eis que no trilhar dos dias a tal ‘frasesinha’ deu-se a me acompanhar; aliás, deu-se a combinar com tonalidades coloridas que já me acompanhavam. Fiquei de modo infernal a perguntar se não era algo como os livros de sabedoria, aqueles pequeninos que compõem os pertences de bolsas, cujo ritual é fechar os olhos, mentalizar tudo e nada em simultaneidade e pimba!, abre-se na página máxima do dia, tipo: “Seja feliz porque a felicidade te quer”.

Alternando aos livros de sabedoria, tem também as passagens bíblicas. Recupero nos soluços da memória, que um modo materno de me evangelizar foi justamente similar ao ritual dos livrinhos já citados. Fechar os olhos, conversar com o ‘papai do céu’ e abrir uma passagem na bíblia. De fato era algo emocionante e eu adorava, embora o evangelizar fosse dogmático e dada a linguagem ‘truncada’ da sagrada escritura, acabava por vezes recaindo em disfarçadas discussões porque minha mente ignorante queria compreender tanto enigma das passagens, e isso não era possível porque os relatos deveriam ser aceitos como ensinamentos e não como problematizações. Ok! O fato é que se abria uma página com palavras divinas para resolução ou aquietação de qualquer contratempo humano.

Os dias foram seguindo depois de escutada a frase indicativa para leitura de bons livros e a mesma continuava a bailar nas vagas andanças do pensamento. Eis que não tive a disposição de na vivência de contratempos, correr para algum livro e meter-me a fuçar nas páginas em busca de receitas para enfermidades. Ocorreu-me, provocada pela tal frase, um processo diverso.

Da vida que sou e imersa alegremente nas suas intensidades, continuei com leituras já em percurso e a frase impôs-se na sequência destas. De modo que na construção literária fosse possível perceber quadros de existências individualizadas, e não como ‘diagnóstico e cura’, um bom livro talvez provocasse a inquietação da pergunta pela repetição dos contratempos. Ora, algo como: “Será que o problema mantém-se o mesmo e repete-se num diversificar na vida dos indivíduos?”. Sim, quantos romances a tratar de amores vividos loucamente e de amores não vividos, embora existidos? Sim, quantos romances a explorar forças estranhas, angústias individuais em personagens que parecem sintetizar um universo de pessoas? Sim, a literatura que relata guerras que titubeiam entre o efetivo e o imaginário. Livros que se propõem relatos históricos e que transparecem descrever guerras repetidas, mesmas atitudes autoritárias, mesmas atrocidades, líderes idênticos, apesar de origens diferentes.

A especulação se distancia de padrões de comportamento, não é esse o pulular invertido da frase, nem tampouco arquétipos psíquicos, trata-se de um retorno que aceita um possível desfazer entre o duo real x ficção. A frase que indica uma obra literária como fonte de esclarecimento, quiçá estivesse a lançar disfarçadamente o questionamento da imitação, quem há de imitar quem? A vida imita a ficção, ou a ficção imita a vida? Ora, numa seleção astuta fugir desta questão é uma atitude heroica e afirmativa, sobretudo porque permite à vida abarcar tanto o real quanto o ficcional, de modo que se haja tensão, haja entre ambos e não da vida com a ficção. Se há imitação, que haja entre real e ficção ou no imitar inverso.

Provocada a falsa tensão entre vida e ficção e tomando como verdade uma não separação entre vida e ficção, antes, a ficção como parte integrante, efetivamente, da vida, retomo a frase inicial da leitura de bons livros. Se nos primeiros dias a frase impactou-me pela similaridade do ritual com os livros de sabedoria e leitura da bíblia, depois de divagada e aceita a noção da vida também como ficção, ler um bom livro deixou de ser meramente a leitura de um bom livro, assumindo, sobretudo, o caráter vivível da obra.

Assim, a frase tomou proporções que extrapolaram a literatura, então uma pintura não seria mais apenas um trabalho técnico em artes, passou a ser mais, passou a ser momentos de recortes dados à permanente experiência da vida. Tanto quanto a fotografia, a música, o cinema. Esse apontamento partiu da compreensão de que real e ficção estão para arte, assim como a arte está para a vida, de modo que se a vida abarca o real e a ficção, abarca, indissociavelmente, a arte, e com ela constroem obras e obras, artisticamente vividas e no vivível da vida expressadas como ficção.

Inúmeras vezes ousei, ainda que com escondido receio das reações especializadas no assunto, anunciar que com recorrência tomo filosofia como literatura, especialmente quando meus olhos constatam palavras filosóficas irmãs univitelinas da poesia. E tomando a filosofia desse modo, me foi possível compreender o encantamento por tantos conceitos versados em obras da história da filosofia. Esse encantamento deveras ressoar o tal ‘diagnóstico e cura’ presentes num bom livro, aliados, claro à não separação entre vida e ficção.

Essa perspectiva foi a maneira mais delicada que encontrei para responder algumas doces manifestações quanto ao meu jeito de utilizar diariamente conceitos da filosofia ou passagens da literatura, músicas, cenas de filmes, pinturas, para compreender cenas do ordinário, cenas do cotidiano.

Sim, sei que tenho tido o hábito de soltar por aí em diálogos despretensiosos, passagens da filosofia, e tal feito não o vai involuntariamente, nem tampouco voluntariamente, é meramente um jeito pessoal de não dissociar vida e arte, de não marcar uma tal divisória entre real e ficção, ou na pior das hipóteses, entre vida e pensamento. Ora, amante que sou das invisibilidades vividas e percebidas sem a necessária materialidade formal, não conseguiria passar por obras cuja problematização da existência estivesse presente, sem me deixar ser atravessada por elas, bem como, não seria nada vivível encantar-me por uma obra filosófica sem reconhecer a potência dos conceitos emaranhados nela, sobretudo porque por entre esses conceitos o que me aparece é a vida transbordando e gritando alegremente pelo brilho do existir, com todas as tensões incluídas.

Finalizo me desculpando aos dialogantes, desculpas não pela minha seleção, desculpa por não conseguir manter-me indiferente ao que escolhi altivamente para viver. Quando não há linha que separa cor de transparência, não há forma possível que contenha o encantamento. É isso!

Carol Gomes 

2 de agosto de 2011

Carta aberta ao maestro do MIMU, Alex Klein

Prezado Senhor,

É bem verdade maestro, que no início da segunda semana do MIMU (Movimento Internacional de Música de Uberlândia) - Festival de música clássica e não apenas ­– quando o vi em espetacular momento com Gordon Hunt e Nigel Shore bailando na invisibilidade puramente sentida dos oboés, pensei: preciso me valer do anonimato e dizer a ele que algo magnífico acontece nos limites-ilimitados da música.


Fotografia de Rocío Palma
[MIMU 20/Jul/2011, Center Convention, Uberlândia/MG]

Passados três dias do encerramento do festival, ainda tenho com intensa vivacidade a apresentação do Raïff Dantas Barreto no seu violoncelo dividindo o palco com Fábio Cury cortejado pelo fagote, tendo o Raïff nos presenteado com as valsas de Francisco Mignone. A sala Camargo Guarnieri do Bloco 3M estava lotada, não ventilava e um calor imenso, e foi nesse momento que minha percepção viu-se sequestrada e imperativamente veio a máxima: Eis sim, um espetacular festival! Engraçado que minutos antes havia se apresentado Catalin Rotaru, embora, somente com o violoncelo do Raïff vivenciei, silenciosamente, um momento que até então tinha conhecimento por relato da literatura, a propósito, de um grande escritor francês, apreciador da música clássica, Marcel Proust.

Sabe maestro, desconheço as técnicas da música. Nada conheço do diálogo das notas, ignoro a construção de uma harmonia, não sei o que diferencia orquestra de câmara de banda sinfônica, tampouco desconfio o que difere uma sonata de uma serenata; enfim, a música tomada no seu rigor construtivo, técnico, metodicamente pensada e construída, é de fato um universo desconhecido para mim. Este desconhecido universo, apesar de timidamente mostrar-se sedutor, dada sua proximidade com a matemática e até ramificações da filosofia, não se impõe aos ignorantes enquanto barreira exclusiva, ao contrário, provoca o despertar de uma outra face do deleite musical, ao menos em mim é assim que tenho visto acontecer. Qual seja essa outra face? A música como arte que acessa espaços recônditos, antes desconhecidos e criadores.

Eis as minhas fotografias do MIMU. A cada apresentação, uma fotografia. Ora colorida ora no clássico preto e branco. Noutros momentos em puro verde e amarelo brasileiro, doutros em vermelho e preto, alemão; enfim, maestro Alex Klein, está aí o MIMU em uma mente que nenhum instrumento toca e que sentiu o festival como um rodar de fotografias e pinturas multicoloridas, vivas, falantes.

Lembro sua apresentação com uma ‘bata’azul. Nossa! Como me surgiu aquele momento enquanto um ritual de apresentação, de abertura de um mundo contado nos minutos harmonizados de notas. É claro que para além das cores, vejo no movimento do músico com o instrumento, toda uma representação, um emaranhar do corpo com o som. Como não fotografar nos olhos seu movimento de ‘sobe e desce’ do corpo com o oboé enquanto técnica de respiração?!, embora eu tenha visto como um chamado potencial pelas notas, algo como: venha ‘mi menor’, venha ‘dó maior’. Ou ainda, como o pianista finlandês, que exteriorizou a intensidade das notas no movimento dos cabelos. Ah, também o Dennis Parker, que tomava o violoncelo e bailava com a cabeça os movimentos... brilhante! Sim, havia um português singular que contagiava com as suas baquetas na marimba e no vibrafone, Pedro Carneiro, que na última noite de concerto no Center Convention, apresentou o ‘amor físico’, tendo depois com seus alunos, torcido com deveras respeito o erudito com as batidas pulsantes da percussão.

Devo admitir que foi o MIMU quem me apresentou a Igreja do Espírito Santo do Cerrado, cujo projeto arquitetônico é assinado por Lina Bo Bardi. Ainda que nascida em Uberlândia, fui maravilhosamente apresentada à Igreja numa sexta-feira às 18h ao som marcante dos alunos Roland Parker e Caio, violoncelo e violão, respectivamente, evocando Enrique Granados com Orientale. Como foi brilhante, magnífico! Senti com pureza um som que me fez pensar, sei lá o porquê, nos votos de fé que a razão nem sempre abarca.

Foi também em um ensaio das 15h no Centro de Convivência da UFU que vi a maestrina, Catherine Larsen-Maguire formando músicos. No calor terrível, muitas cadeiras e um coletivo de jovens atentos à fala dela, que por sua vez fazia questão de se pronunciar em inglês e num português-espanhol. É certo que o processo educativo sempre me encantou, mas até então eu não havia presenciado tal processo a partir da música. Nesse dia permiti ousadas divagações e reconstituí a Catherine (e assim me permito ao jeito brasileiro de se referir às pessoas) e seus alunos em um cenário da Grécia clássica que tomava a música como aspecto fundamental na formação dos jovens. Ainda sobre a Catherine, devo dizer que quando a vi, regendo um concerto e com um sorriso de alegria chamando o pianista, Alexandre Dossin, tive a sensação possuidora de ver uma fada conduzindo a orquestra por um jardim colorido. Magnífica. Carismática. Sorridente. Alegre. E foi assim que a vi na última sexta-feira do festival, no pátio do Teatro Municipal, conduzir a última apresentação, reafirmando em seus movimentos os elementos que me parecem caracterizar a música, quais sejam: o brilho da existência; a doçura da alegria; a intensidade da vida!

Vivi contigo na regência, o encontro da música com a literatura. A memorável noite d’A História do Soldado do Stravinsky e da sua voz-cantante ouvi a narração do desafio de um diabo que atormentara o soldado, enganado e perdido em si mesmo. Nessa noite recordei-me da intensidade da arte russa, lembranças de um outro soldado da literatura em O Herói de Nosso Tempo, Kropotkin, do Lérmontov. Sim maestro, tudo isso e mais foi acontecendo nas duas semanas de festival. Muito mais, o corriqueiro de um festival que tem seus observadores. Presenciei os almoços no restaurante universitário da UFU. Os professores e alunos que saiam ‘famintos’ das aulas e na simplicidade degustavam nosso ‘bandejão’ do dia-a-dia. Sim, vi a violoncelista russa comendo arroz e feijão na bandeja. Vi vários dias a mulher da arpa, Rita Costanzi, muito simpática e sorridente, se esforçando na bandeja e no diálogo com os alunos. Nossa, fiquei maravilhada com tudo isso. O Roberto Sion dialogando com a moçada como se estivesse experimentando desinteressadamente o saxofone, tal qual na apresentação dele no Center Convention.

Veja maestro, eu quem tomei conhecimento do festival dias antes da abertura, fui sequestrada com satisfação para as apresentações, e a cada dia me empenhava em partilhar com os amigos a satisfação com o festival os convidando, fosse por e-mail, por telefone, por redes sociais, enfim, eu queria levar meus pares, minha cidade para o MIMU e assim tentei. O desejo de que os uberlandenses recebessem o festival como um presente de inverno dado por renomados músicos de vários países, formados e em formação. Eu quem tive a ousadia de nomear o campus sta. mônica da UFU durante as duas semanas do festival de ‘campus música’, tive o prazer de trabalhar e estudar durante dias ao som de violinos, flautas, trompetes, contrabaixos, violoncelos, clarinetes, vários alunos e seus instrumentos espalhados pelo campus reforçando e aprimorando as técnicas, ensaiando para as apresentações. Indubitavelmente um presente que várias pessoas que passam o dia no campus receberam.

Alex Klein é importante que apesar de todo o relato acima, eu não me furte da doída sinceridade com a sua fala no último sábado de concertos no pátio do Mercado Municipal. A pergunta: ‘Uberlândia não quer o MIMU?’.Doeu retomando o concerto ‘expressando o inexpressível’ da quinta-feira no Center Convention, cujas obras foram Pavane para uma Princesa Morta do Ravel e Concerto para violino e orquestra do Berg. Naquela quinta-feira foi a noite em que a música tirou de mim lágrimas por momentos que não vivi, mas que dada a pureza foi como se sentisse a dor pelas duas crianças, tristeza impessoalizada e simultaneamente personificada em notas. A dor que da quinta-feira transfigurava-se em beleza, no sábado, se vestiu de desilusão. Não foi sua pergunta, nem tampouco sua fala provocativa que expressava o desânimo de alguém que suou imenso crendo que os indivíduos diante da magnitude da música, inevitavelmente se abrem para ela. Não! O que doeu foi constatar que Uberlândia, efetivamente, não se pôs a reconhecer a excelência do MIMU, a importância em inúmeros aspectos, sobretudo o cultural e a formação dos jovens. A economia é importante, sim, claro!, e sei bem que talvez seja o mais poderoso argumento com políticos e empresários, embora a movimentação material-financeira fique aquém de tudo que um festival como o MIMU tem de potencial em microrevoluções, interferências imediatas e afirmativas nas pessoas.

Esta carta aberta tem por objetivo três aspectos principais: i) agradecimento sincero ao maestro que ousou, ‘arregaçou as mangas’ e fez, e que assim fazendo, presenteou uma cidade e região com algo nobre; ii) um pedido: não desista do MIMU 2012 em Uberlândia, e peço não apenas pela cidade, sabe o senhor que a região carece e tem espaço e potencial para fazer do MIMU a referência que seu empenho almeja; iii) humildemente peço desculpas e compreensão pela hostilidade de políticos, empresários, cidadãos, que não souberam receber o festival de braços abertos. Queira o senhor ainda considerar que talvez nos falte a aproximação, a familiarização com o universo do MIMU. Esta última justificativa, obviamente não cabe às autoridades, que no papel de figuras políticas faltaram com a diplomacia.

Encerro a carta valendo-me de duas vivas reminiscências: i) o diálogo de uma quarta-feira ‘música orquestral no Brasil e no Mercosul’ com o Raïff, e que marcou com a pergunta respondida pelo violoncelista: ‘O que você sugere a uma cidade como Uberlândia que ainda não tem uma orquestra?’ E o Raïff, após falar do seu histórico e reconhecimento pelo Estado da Paraíba na sua formação, respondeu categoricamente: ‘É preciso presença política!’. ii) a sua transgressão puramente brasileira que colocou no último concerto, Brahms e samba, lado-a-lado.

Ora maestro, dê mais uma chance, permita a Uberlândia receber parte do seu objetivo de um ‘MIMU inverno’ como referência cultural no país. Sim! É preciso ganhar políticos, encantar empresários, e todo esse esforço tem marcado os caminhos de uma sociedade que às ‘duras penas’vai abrindo veredas onde antes mentes costumeiras se quer postulavam. Continue na abertura, na navegação, que nós, ao nosso modo micro e discreto, o apoiamos e agradecemos por tão nobre feito.

Obrigada maestro, a você, a toda equipe organizadora do MIMU, bem como aos músicos, professores e aos alunos.

Uberlândia/MG, 02 de Agosto de 2011

Carol Gomes