2 de agosto de 2011

Carta aberta ao maestro do MIMU, Alex Klein

Prezado Senhor,

É bem verdade maestro, que no início da segunda semana do MIMU (Movimento Internacional de Música de Uberlândia) - Festival de música clássica e não apenas ­– quando o vi em espetacular momento com Gordon Hunt e Nigel Shore bailando na invisibilidade puramente sentida dos oboés, pensei: preciso me valer do anonimato e dizer a ele que algo magnífico acontece nos limites-ilimitados da música.


Fotografia de Rocío Palma
[MIMU 20/Jul/2011, Center Convention, Uberlândia/MG]

Passados três dias do encerramento do festival, ainda tenho com intensa vivacidade a apresentação do Raïff Dantas Barreto no seu violoncelo dividindo o palco com Fábio Cury cortejado pelo fagote, tendo o Raïff nos presenteado com as valsas de Francisco Mignone. A sala Camargo Guarnieri do Bloco 3M estava lotada, não ventilava e um calor imenso, e foi nesse momento que minha percepção viu-se sequestrada e imperativamente veio a máxima: Eis sim, um espetacular festival! Engraçado que minutos antes havia se apresentado Catalin Rotaru, embora, somente com o violoncelo do Raïff vivenciei, silenciosamente, um momento que até então tinha conhecimento por relato da literatura, a propósito, de um grande escritor francês, apreciador da música clássica, Marcel Proust.

Sabe maestro, desconheço as técnicas da música. Nada conheço do diálogo das notas, ignoro a construção de uma harmonia, não sei o que diferencia orquestra de câmara de banda sinfônica, tampouco desconfio o que difere uma sonata de uma serenata; enfim, a música tomada no seu rigor construtivo, técnico, metodicamente pensada e construída, é de fato um universo desconhecido para mim. Este desconhecido universo, apesar de timidamente mostrar-se sedutor, dada sua proximidade com a matemática e até ramificações da filosofia, não se impõe aos ignorantes enquanto barreira exclusiva, ao contrário, provoca o despertar de uma outra face do deleite musical, ao menos em mim é assim que tenho visto acontecer. Qual seja essa outra face? A música como arte que acessa espaços recônditos, antes desconhecidos e criadores.

Eis as minhas fotografias do MIMU. A cada apresentação, uma fotografia. Ora colorida ora no clássico preto e branco. Noutros momentos em puro verde e amarelo brasileiro, doutros em vermelho e preto, alemão; enfim, maestro Alex Klein, está aí o MIMU em uma mente que nenhum instrumento toca e que sentiu o festival como um rodar de fotografias e pinturas multicoloridas, vivas, falantes.

Lembro sua apresentação com uma ‘bata’azul. Nossa! Como me surgiu aquele momento enquanto um ritual de apresentação, de abertura de um mundo contado nos minutos harmonizados de notas. É claro que para além das cores, vejo no movimento do músico com o instrumento, toda uma representação, um emaranhar do corpo com o som. Como não fotografar nos olhos seu movimento de ‘sobe e desce’ do corpo com o oboé enquanto técnica de respiração?!, embora eu tenha visto como um chamado potencial pelas notas, algo como: venha ‘mi menor’, venha ‘dó maior’. Ou ainda, como o pianista finlandês, que exteriorizou a intensidade das notas no movimento dos cabelos. Ah, também o Dennis Parker, que tomava o violoncelo e bailava com a cabeça os movimentos... brilhante! Sim, havia um português singular que contagiava com as suas baquetas na marimba e no vibrafone, Pedro Carneiro, que na última noite de concerto no Center Convention, apresentou o ‘amor físico’, tendo depois com seus alunos, torcido com deveras respeito o erudito com as batidas pulsantes da percussão.

Devo admitir que foi o MIMU quem me apresentou a Igreja do Espírito Santo do Cerrado, cujo projeto arquitetônico é assinado por Lina Bo Bardi. Ainda que nascida em Uberlândia, fui maravilhosamente apresentada à Igreja numa sexta-feira às 18h ao som marcante dos alunos Roland Parker e Caio, violoncelo e violão, respectivamente, evocando Enrique Granados com Orientale. Como foi brilhante, magnífico! Senti com pureza um som que me fez pensar, sei lá o porquê, nos votos de fé que a razão nem sempre abarca.

Foi também em um ensaio das 15h no Centro de Convivência da UFU que vi a maestrina, Catherine Larsen-Maguire formando músicos. No calor terrível, muitas cadeiras e um coletivo de jovens atentos à fala dela, que por sua vez fazia questão de se pronunciar em inglês e num português-espanhol. É certo que o processo educativo sempre me encantou, mas até então eu não havia presenciado tal processo a partir da música. Nesse dia permiti ousadas divagações e reconstituí a Catherine (e assim me permito ao jeito brasileiro de se referir às pessoas) e seus alunos em um cenário da Grécia clássica que tomava a música como aspecto fundamental na formação dos jovens. Ainda sobre a Catherine, devo dizer que quando a vi, regendo um concerto e com um sorriso de alegria chamando o pianista, Alexandre Dossin, tive a sensação possuidora de ver uma fada conduzindo a orquestra por um jardim colorido. Magnífica. Carismática. Sorridente. Alegre. E foi assim que a vi na última sexta-feira do festival, no pátio do Teatro Municipal, conduzir a última apresentação, reafirmando em seus movimentos os elementos que me parecem caracterizar a música, quais sejam: o brilho da existência; a doçura da alegria; a intensidade da vida!

Vivi contigo na regência, o encontro da música com a literatura. A memorável noite d’A História do Soldado do Stravinsky e da sua voz-cantante ouvi a narração do desafio de um diabo que atormentara o soldado, enganado e perdido em si mesmo. Nessa noite recordei-me da intensidade da arte russa, lembranças de um outro soldado da literatura em O Herói de Nosso Tempo, Kropotkin, do Lérmontov. Sim maestro, tudo isso e mais foi acontecendo nas duas semanas de festival. Muito mais, o corriqueiro de um festival que tem seus observadores. Presenciei os almoços no restaurante universitário da UFU. Os professores e alunos que saiam ‘famintos’ das aulas e na simplicidade degustavam nosso ‘bandejão’ do dia-a-dia. Sim, vi a violoncelista russa comendo arroz e feijão na bandeja. Vi vários dias a mulher da arpa, Rita Costanzi, muito simpática e sorridente, se esforçando na bandeja e no diálogo com os alunos. Nossa, fiquei maravilhada com tudo isso. O Roberto Sion dialogando com a moçada como se estivesse experimentando desinteressadamente o saxofone, tal qual na apresentação dele no Center Convention.

Veja maestro, eu quem tomei conhecimento do festival dias antes da abertura, fui sequestrada com satisfação para as apresentações, e a cada dia me empenhava em partilhar com os amigos a satisfação com o festival os convidando, fosse por e-mail, por telefone, por redes sociais, enfim, eu queria levar meus pares, minha cidade para o MIMU e assim tentei. O desejo de que os uberlandenses recebessem o festival como um presente de inverno dado por renomados músicos de vários países, formados e em formação. Eu quem tive a ousadia de nomear o campus sta. mônica da UFU durante as duas semanas do festival de ‘campus música’, tive o prazer de trabalhar e estudar durante dias ao som de violinos, flautas, trompetes, contrabaixos, violoncelos, clarinetes, vários alunos e seus instrumentos espalhados pelo campus reforçando e aprimorando as técnicas, ensaiando para as apresentações. Indubitavelmente um presente que várias pessoas que passam o dia no campus receberam.

Alex Klein é importante que apesar de todo o relato acima, eu não me furte da doída sinceridade com a sua fala no último sábado de concertos no pátio do Mercado Municipal. A pergunta: ‘Uberlândia não quer o MIMU?’.Doeu retomando o concerto ‘expressando o inexpressível’ da quinta-feira no Center Convention, cujas obras foram Pavane para uma Princesa Morta do Ravel e Concerto para violino e orquestra do Berg. Naquela quinta-feira foi a noite em que a música tirou de mim lágrimas por momentos que não vivi, mas que dada a pureza foi como se sentisse a dor pelas duas crianças, tristeza impessoalizada e simultaneamente personificada em notas. A dor que da quinta-feira transfigurava-se em beleza, no sábado, se vestiu de desilusão. Não foi sua pergunta, nem tampouco sua fala provocativa que expressava o desânimo de alguém que suou imenso crendo que os indivíduos diante da magnitude da música, inevitavelmente se abrem para ela. Não! O que doeu foi constatar que Uberlândia, efetivamente, não se pôs a reconhecer a excelência do MIMU, a importância em inúmeros aspectos, sobretudo o cultural e a formação dos jovens. A economia é importante, sim, claro!, e sei bem que talvez seja o mais poderoso argumento com políticos e empresários, embora a movimentação material-financeira fique aquém de tudo que um festival como o MIMU tem de potencial em microrevoluções, interferências imediatas e afirmativas nas pessoas.

Esta carta aberta tem por objetivo três aspectos principais: i) agradecimento sincero ao maestro que ousou, ‘arregaçou as mangas’ e fez, e que assim fazendo, presenteou uma cidade e região com algo nobre; ii) um pedido: não desista do MIMU 2012 em Uberlândia, e peço não apenas pela cidade, sabe o senhor que a região carece e tem espaço e potencial para fazer do MIMU a referência que seu empenho almeja; iii) humildemente peço desculpas e compreensão pela hostilidade de políticos, empresários, cidadãos, que não souberam receber o festival de braços abertos. Queira o senhor ainda considerar que talvez nos falte a aproximação, a familiarização com o universo do MIMU. Esta última justificativa, obviamente não cabe às autoridades, que no papel de figuras políticas faltaram com a diplomacia.

Encerro a carta valendo-me de duas vivas reminiscências: i) o diálogo de uma quarta-feira ‘música orquestral no Brasil e no Mercosul’ com o Raïff, e que marcou com a pergunta respondida pelo violoncelista: ‘O que você sugere a uma cidade como Uberlândia que ainda não tem uma orquestra?’ E o Raïff, após falar do seu histórico e reconhecimento pelo Estado da Paraíba na sua formação, respondeu categoricamente: ‘É preciso presença política!’. ii) a sua transgressão puramente brasileira que colocou no último concerto, Brahms e samba, lado-a-lado.

Ora maestro, dê mais uma chance, permita a Uberlândia receber parte do seu objetivo de um ‘MIMU inverno’ como referência cultural no país. Sim! É preciso ganhar políticos, encantar empresários, e todo esse esforço tem marcado os caminhos de uma sociedade que às ‘duras penas’vai abrindo veredas onde antes mentes costumeiras se quer postulavam. Continue na abertura, na navegação, que nós, ao nosso modo micro e discreto, o apoiamos e agradecemos por tão nobre feito.

Obrigada maestro, a você, a toda equipe organizadora do MIMU, bem como aos músicos, professores e aos alunos.

Uberlândia/MG, 02 de Agosto de 2011

Carol Gomes

2 comentários:

  1. Carol querida. Linda carta, sincera, do coração. Mas permita-me corrigi-la em um pequeno detalhe: no segundo parágrafo de sua carta você expressa uma série de equívocos. Você conhece, sim, a arte da música, pois ela a tocou. Você conhece sim o diálogo das notas, pois você o ouviu. E qualquer detalhe insignificante sobre harmonia, sonata, nomenclaturas e aborrecimentos mil não vem ao caso, pois a música não é feita disso. Ah, sim, o ensino da música, e sua multiplicação em miríades de categorias e níveis de aprendizado pode ter lá sua validade para os conossuers, mas em termos de "arte da música", aquela parte que toca, que impressiona, que muda nossas vidas, não há manifestação mais sólida de conhecimento do que as palavras que você usou em seus outros parágrafos. Não é chato desconhecer os detalhes. Chato é as pessoas pensarem que por saberem harmonia ou o que é uma serenata, ou terem um doutorado em música, acharem que sabem alguma coisa sobre esta arte. Muitos músicos pecam aí. E são pessoas como você que nos ajudam a indicar onde é o norte da questão. O que mais é importante. Portanto, minha querida Carol, suas observações são aquelas de uma pessoa que mais entende de música. Música de verdade. Abs, Alex Klein

    ResponderExcluir
  2. Aqui estou com o coração cheio de saudades revivendo as emoções sentidas durante o festival. Somente uma pessoa com a sensibilidade e uma percepção impar, pode trazer as nuanças da harmonia de uma orquestra usando o instrumento da escrita de uma forma que se visualiza a dança das notas entre as letras que se organizam para fazer-se compreendidas. É você Carol.
    Obrigada querida.
    Abraços
    Francisca

    ResponderExcluir