12 de setembro de 2018

Biblioteca, 12 de setembro de 2018.
(Período em que no cerrado-sertão mineiro os ipês roxo e amarelo já floriram e os brancos florem).

Um senhor senta na mesa a minha frente. Chegou com as mãos livres, apenas com uma garrafa de água, sem caneta e nem papel.  Deixou a garrafa na mesa e foi até as prateleiras pegar um livro. Voltou. Sentou. Abaixou a cabeça e começou a leitura. Camisa quadriculada e cabelos grisalhos.

Quando o avistei entrando no salão de estudos, pensei: o que faz uma pessoa frequentar bibliotecas?! Sem respostas e elucubrações delongadas retomei meu estudo.

Depois de 1 hora, levantei para abastecer a minha garrafinha de água.  Saí em direção ao lado esquerdo da mesa. Não por deliberação voluntária e sim por afeto involuntário do meu corpo.

Fui. Voltei em menos de 3 minutos. No retorno mudei a direção e segui pela direita. Cheguei à mesa. Sentei.

Passados 5 minutos o homem grisalho começou a se contorcer olhando para trás. Pensei: Coitado, começou a conflitar as faculdades. Noutros termos: começou a dar pane de leitura.

Imediatamente ele virou todo o corpo para trás e disse: "Eu não te vi voltando. Tenho amnésia". Virou para frente e aparentemente sossegou.

Eu que sou defensora das bibliotecas como pulmões das urbanidades, fui logo concluindo que o senhor era mais um entre tantos que vão para as bibliotecas para dessufocarem, seja ou não são ou louco. Incluindo eu.

Eis que o homem se vira novamente e num tom de relato interativo em prol da sociabilidade (dois anônimos no meio de um tanto de livros mudos) diz que foi aposentado porque tem amnésia do lado direito. Olhando fixo para mim com parte do tronco e do pescoço contorcidos na minha direção pergunta: "Você voltou pela direita, né?!".

Respondi me apressando no pensamento que ele ia querer conversar sobre amnésia e eu iria escapulir como?! "Sim, voltei pelo lado direito".

"Ah bom, porque te vi indo mas não me recordo de você voltando. Qual sua religião?".

Eu: Minha região? (Já enchendo o peito para dizer Minas Gerais quem te conhece não esquece jamais).

Ele: Não, sua religião.

Eu começando a palpitar inquietações: Não tenho religião (deveria ter respondido: Lulista religião emancipadora e não-ascética. Na próxima vou lembrar dessa).

Não ter religião foi a resposta mais resolutiva porque até conseguir explicar a ele que para mim as árvores conversam e que o universo conjura tudo em todos ao mesmo tempo e por isso sou divindade tanto quanto a florzinha amarela do ipê apaixonada pelo verde da trepadeira que vive na árvore ao lado, as outras pessoas certamente nos chamariam atenção reivindicando silêncio.

Ele com um espanto e mudo se virou para frente e pronto.
Ele mudo em fala e eu tagarelando em pensamento: vixe, agora esse senhor se levanta e me questiona ou começará a me catequizar. "Nenhuma e nenhoutra" das opções diretamente, mas o seu silêncio, os seus cabelos grisalhos, as costas e sua cabeça abaixada sendo sustentada pela mão  (evocando Rodin e o pensar como verbo em mármore de corpo macho) me inquietou diante da relação amnésia e direita.

Se meu corpo se lançou involuntariamente em direção à esquerda, a memória dele por sua vez recusa a direção direita.

Para finalizar a pausa ergonômica de relaxamento da cervical, concluí com uma questão imprópria e desnecessária:

No que e n'onde encontramos como diferentes e como semelhantes no involuntariado do corpo para esquerda e na amnésia da memória para a direita?

Se não há ficção, indiscutivelmente não existiriam bibliotecas reais, nem de esquerda e nunca de direita. Uma como direção topológica-territorial e outra como memória sem direção e portante apenas e tão somente como espectro.

(foto de ficções como fragmentos de realidades não verdadeiras e tão belas justamente por serem falsas).