2 de maio de 2016

cena vital de um cinema de trabalhador

Maio entrou dúbio entre o frio e o calor. O cerrado soltou a mão do azul-sertão e agarrou a quentura de um laranja-terra.

7h30 e ponto. Não, 8h20, sem falta. Melhor, 9h, 9 horas na sua porta. Leva água, frutas e protetor solar. Beleza! Era noite e construíamos o cenário de despedida desse abril esfaqueante para a manhã do domingo que chegava.

Havia um extraordinário para o dia 1º de maio de 2016. Ora, a essa altura dos marcadores já estávamos atualizados com a arquitetura política da aliança militar com o tio sam do golpe de 64 e sua familiaridade com 2016; já estávamos enxugados das lágrimas do 17 de abril e a vergonha dos deputados com a estéril justificativa de pedaladas para impeachment; já estávamos inacreditados com a encenação escancarada de banditismo do Cunha; já estávamos superando a perplexidade com o ostracismo do STF; já estávamos boquiabertos com tantos ataques aniquiladores à autonomia e liberdade de um povo; mas, jamais aquietados e entregues ao ressentimento para com a vida.

Seguimos rumo à ocupação urbana Elísson Pietro, conhecida como a ocupação do Glória. Uma ocupação cujas forças estão claramente dadas: de um lado os interesses de uma especulação imobiliária, de outro, a resistência e a urgente necessidade das famílias por moradia. Os terrenos sob tutela federal da universidade e ao largo dos dias milhares de pessoas embaixo de telhas de amianto quentes e poeira impositiva. Eis o Glória. Eis a glória de crianças e mulheres encontradas no propósito da moradia. À ocupação do Glória nos cabe insistentemente a pergunta: Qual a glória desse espaço e desses corpos?

Partimos da glória, não, do Glória, para outra ocupação urbana, o Maná. Puxadinho do bairro Morumbi, sim, esse bairro socialmente tão polêmico e tão presente na história oficial pouco contada da cidade de Uberlândia.

Chegamos ao Maná no bater dos ponteiros do almoço. No Glória eram 4 bolos de aniversário, cachorro-quente, pula-pula, palco e bandas. No Maná, barraquinha de espeto, pula-pula e algodão doce. As fontes de financiamento, muito simples, o aniversariante do dia: o trabalhador.
Andamos um pouco aqui, acolá, e recebemos a pista de que umas três casas abaixo estava nossa cineasta. Calmamente íamos chegando, os passos levantando poeira e ao ser avistada, o grito saiu!
Poucos metros seguidos nos passos em poeira presenciei a cena mais linda do 1º de maio.

Indubitavelmente uma cena que como acontecimento irrompeu numa explosão não ordinária. Esse acontecimento não se fez de um nada, muito antes, se fez de um tudo; se fez das tantas lutas de anos marcando os 1ºs de maio. Essa cena se fez dos diversos e das centenas produções do cinema brasileiro filmando os sertões, a miséria, as cores da pobreza. Não bastasse, essa cena se fez num passado tão comum aos trabalhadores e simultaneamente presente por sua ausência de precedentes.

Eu vi, nós vimos, eles viram... um cinema poeira no écran-papel craft, cujo público eram meninos de uma ocupação urbana, sentados no chão e com o algodão doce esperavam o filme rodar. A sala não tinha parede, era uma varanda que à noite por certo virava um bar. A tela recebia duas claridades, a do sol de meio dia e a do projetor de uma animação cujo título não por acaso nos ironizava em pleno dia do trabalhador: O Emprego.

Poucos minutos ali, diante daquela cena, ao lado dos amigos, senti que a vida vai se costurando de retalho em retalho, já dizia o Bergson do Deleuze no seu Matéria e Memória: “não basta recortar, é preciso saber costurar”. Como e para que costurar aquele retalho, aquele pedaço de vida tão intensa que silenciosamente passou em minutos uma história do cinema brasileiro, histórias de um país loucamente em transe que por vezes somos arrebatados por um choro de conflito entre o que se mostra e o que se haveria de ser.

Uma fome urgente [e todas as fomes talvez sejam urgentes, a nossa naquele momento e a fome dos meninos pelo filme] me inquietou e do cinema poeira saímos em busca de almoço.

Eu que em outros momentos havia sentido algo familiar diante das revoluções de uma cozinha que ocupa os espaços públicos no fluxo das memórias populares, não me contive e saí, desembestada e faminta. A fome alarmou menos pelo bater do horário e mais por ter mergulhado minutos numa memória excessivamente presente e gigantesca que minhas forças físicas não correspondiam à magnitude anônima e acontecimental daquele instante.

Seriam oportunos parágrafos imensos descrevendo e analisando, discursivamente, de mãos dadas ao imaginário, a uma narrativa consciente transbordando em afetos, a cena dos meninos sentados de frente para a tela de papel craft. Mas não, sem esses parágrafos, nem tampouco vou me deter à descrição da camiseta de uns dos garotos que trazia: “Medicina UFU”. Essa cena correu em reunião de tempos de lutas inglórias, ali estavam pessoas da luta, as pessoas que tem por monumento “pedras pisadas do cais”, e ali estavam não por evocação mística, muito antes e também, estavam nas transversais da luz como resistência. É isso, os meninos estavam como resistentes vivos em dia de aniversário do trabalhador, rompendo com um modelo de exclusão, dos cinemas, dos shoppings, das praças da região central, dos parques naturais, dos clubes de recreação.

A cena mais linda do 1º de maio não haveria de ser com surpresa, ela foi um corriqueiro, um aparente insignificante, um desviante banal, e por isso mesmo foi tão tudo e tão magna, porque em corpos infantis com olhares e audição infantis, toda uma história de luta passou, como velocidade da luz, e que como energia vital, todo um passado proletário.


[imagem: 1/maio/16, Uberlândia MG, Ocupação Urbana Maná, região leste onde fica o grande Morumbi]


Carol Gomes