29 de dezembro de 2010

O texto é muito bom... na dose exata de uma requintada ironia deliberada...


"Eu torço pela humanidade"
Por Bruno Hoffmann

Poucas pessoas são mais covardes do que quem diz, pra mostrar sua visão política: “Em política, minha intenção é bem clara: eu torço pela humanidade”. Esse sujeito é um inútil travestido de gente legal. Nesta questão, fico com Paulo Freire, que certa vez disse: “Eu não posso sonhar em favor de alguma coisa se não sonho contra outra, que é aquela que obstaculiza a realização do meu sonho. E não basta que você me diga: ‘Eu sonho pela humanidade’. A humanidade é uma abstração. Não existe”.

Esta introdução é pra falar de alguns tipos típicos de São Paulo. Esta semana encontrei com um deles: uma menina muito bonita, descolada, que foi criada na Vila Madalena e, pra completar, estudou no colégio Equipe. Essas que usam saia daquele tecido mole (qual é?) de inspiração nordestina, que não saem do forró e que viajam pra Chapada Diamantina pra se “reconectar consigo”.

Estávamos conversando, por causa de um amigo em comum. Ela, em dado momento, perguntou em quem eu tinha votado pra presidente. Eu respondi que na Dilma, e emendei um “logicamente”. Ela fez cara de nojinho, e retrucou: “Sério que você acredita nela? Também não gosto do Serra. PT e PSDB fazem a política do ódio”. E completou: “Votei na Marina, que é uma nova visão pra política nacional”.

Expliquei as coisas óbvias: que o PV está mais para a direita do que para a esquerda, que esse modelo de ONGs ambientais que apóiam a Marina é perigoso, que o discurso dela é demagogo etc. Aí veio a frase da menina: “Ah, os petistas têm sempre o mesmo papo. Não quero saber de direita ou esquerda. Eu torço pela humanidade”.

Dei um gole na cerveja, respirei fundo e citei a frase de Paulo Freire. Ela fez expressão de desprezo. Mostrei o frentista, as pessoas que atendem na loja de conveniência do posto ao lado do samba e perguntei se ela via a humanidade trabalhando ali para ganhar tão pouco, ou se ela via negros trabalhando, enquanto nós, brancos, filosofávamos baratamente sobre política. Se todos fossemos igualmente humanos, pela visão dela, não haveria aquela diferença cromática entre quem está trabalhando pra ganhar pouco e quem está na boa. Ela: “Ah, não vejo diferença nisso, não. Já disse: somos todos humanos”.

O papo continuou mais um pouco. Descobri logo depois que ela adorava os negros, o jeito sorridente deles e que até teve um namorado bem moreno que conheceu num verão no litoral da Bahia. Que não saía da capoeira, e agradece aos negros todas as quartas quando foge da dieta para encarar uma feijoada. Mas não gostava de nenhuma divisão e acha todo mundo igual. Era contra as cotas universitárias e contra as outras políticas para a promoção social dos negros. Mas era a favor da humanidade.

Fonte: http://www.brunohoffmann.blogspot.com/

15 de dezembro de 2010

À beira do pensamento

O indivíduo senta... e se lança no reflexo de si.

E aquela frase?: ‘como fere e faz barulho um bicho que se machucou’. Ou ainda a outra: ‘Será que é o trem que passou, ou passou quem fica na estação?’

A cabeça roda segura e lúcida, a recortar e reencontrar o recortado. Das cenas fixadas formata-se a cena presente. É isso, na película insignificante do dia o indivíduo não sujeito sentado à beira... o olho fixado no mais próximo horizonte, o do pensamento.

Do tal horizonte brotam-se texturas pinceladas numa grande tela: a vida. E essas pinceladas ressurgem gradativas e de um futuro acontecendo vestem-se num passado-presente, pois trazidas do anterior e puxadas do depois compõem o conjunto refletido.

O carro era branco no contraste com o olho verde. Surgia como tubarão no verde-marrom da mistura mato e barro. Olhava-se e o suspiro era de orientação, pois por vezes os indivíduos se confortam na submissão ao que se aponta para ser seguido. E isso não é ‘amarelo’, isso é momento de condição coletiva.

Subia um morro com caminho delimitado por eucaliptos; no pensamento a certeza que chegaria até a arquitetura colonial confiante de que o relógio seguraria os 60 exatos do que passou sem poder ter passado. Dez por cento do que passou foram suficientes para desfazer um intenso de busca, de crença. E então naquele que expressava o uso do gás rolou-se a ingenuidade da eterna criança, que ‘sempre’ confiante desilude-se com o não previsto.

No fim do corredor à esquerda, mineiros ao lado, no susto batem-se. Ora conhecia-se sem idêntico aquele olho, de onde? A memória não conseguiu buscar, mas o silêncio da razão emocionada intuiu o que no girar futuro confirmaria o esbarrão acidental, meramente acidental. Precisa-se que só apenas depois, bem depois os encaixes vagarosamente foram se dando, justamente porque no fim de tudo o grande foi o rasgado do bilhete a sustentar o endereço, carregado do reforço, mantemo-nos.

Engraçado como lá do alto do vigésimo primeiro menos a quarta parte do vinte subtraído o um, o olho a olhar, não menos que curioso se fez reflexivo. Como as cenas de um modista década de 90 com passagem envelhecida, abusadas as luzes meio laranjas da avenida, à frente o centro moderno comercial, e a condução no rol dos antigos a sair. Nisso a madrugada havia entrado com pressa, ainda que parada no sentido. E no pensamento: o que se faz?

De repente a cabeça ergue-se, o rodar retoma o probo e ciência de que ‘a lei te procura amanhã de manhã com seu faro’...

Carol Gomes

13 de dezembro de 2010

Divagação divagante de andanças

Passo a passo, contados
bem que reflexivos também
amarela, bem infantil, ingênua
pretensiosa ingenuidade
ganhou-me
dançou-me os olhos
casei-a com os passos
seguiram seguindo-me
e lá fomos, rumo ao calor
pára!
Noutra já estava branca
requintada, vestido rodado
meio baile formatura, não sei
naquele miolo protegido estava
a beleza, não, o belo
o másculo impositivo no fêmeo
trancei-as: amarela à branca
era um abraço
tímido, talvez
dele o que não se traduziu
o que se interpretou
nos minutos seguintes
adentrado à sala o deslocamento
corrompeu-as
privou-as
disso a inferência segunda
da faculdade nous
o estouro esteve no espanto
no alimento de pegá-las
separadas
e
uni-las
partilha movente...
segundos
ainda partilha
o amarelo no branco
a amarela na branca
porque a brevidade
ilimitou-se
no ato de tomar o puro
como caminho
sendo
o objetivo caminhante
do escaldante calor
do Tijuco.
Repita-se:
O grande é pegar as flores
no caminho como presente...

Carol Gomes

14 de novembro de 2010

Adendos verdadeiros, postula-se ingenuamente...



- I -
Belchior

Moro num lugar comum, perto daqui, chamado Brasil.
Feito de três raças tristes, folhas verdes de tabaco
e o guaraná guarani.
Alegria, namorados, alegria de Ceci.
Manequins emocionadas:
- são touradas de Madrid
...que em matéria de palmeira ainda tem o buriti perdido.
Símbolo de nossa adolescência,
signo de nossa inocência índia, sangue tupi.
E por falar no sabiá, o poeta Gonçalves Dias é que sabia...
Sabe lá se não queria
uma Europa bananeira.
- Diga lá, tristes trópicos,
sabiá laranjeiras.
Aliás, meu camarada, o cantor popular falou divinamente:
Deus é uma coisa brasileira, nordestinamente paciente.
Oh! blood moon.
---

- II -

Renato Teixeira e Zé Geraldo

O gesto que agradece o dado
O ato que engradece o fato
As coisas do mundo
Vão se traduzindo
E o tempo é o vento
que vai conduzindo
E a gente navega
nos mares da vida
aprendendo a viver
O tempo de plantar os sonhos
A hora mestra do momento
A voz do povo não pergunta
Apenas comenta
O gestual da ousadia
O verso inverso da poesia
O lado oculto do silêncio
Não tema o jeito do destino
Viver é só um fingimento
E tudo é só uma lembrança
Imagens
Momentos

---

- III -

Oswaldo Montenegro

Desde que eu me juntei aos tais menestréis
Todos falam: "ele é mesmo assim,
metido, maluco ele é pretensioso"
Ai, as rádios não gostam de mim
Eu sei que tenho um coração bem largo
Eu canto afinado e adoro jasmim
Será que é porque eu tenho cara de bravo
Que as rádios não gostam de mim?
E só porque eu gosto de dança e teatro
E não canto mais o bandolim
E eu não agüento mais as guitarras de sempre
As rádios não gostam de mim
Aí estão os anjos e os nossos demônios
Mostrados com luz de marfim
Taí nossa alma e os nossos neurônios
Mostrados do início ao fim
O chato que todos já fomos
E os reis nossos donos são mortos no fim
O trânsito, o bar, as Marias
E a boca do dia é a do Rin Tin Tin
A feira, o cego, a lavoura
O casal que se adora e se mata no fim
O ganso selvagem, eu quero minha mãe
São demônios e anjos assim
Aí, já valeu, vamos embora
Quem sabe sua hora vira querubim
E Sherlock Homes e os saxofones
São partes, são partes de mim
Oh gente que nos olha atenta
E que aqui nos sustenta com olhar de festim
Taí nossos anjos e nossos demônios
Mostrados do início ao fim

---

- IV -

Porque por vezes repetir-recortando é menos copiante...

11 de outubro de 2010

Velho texto batido... repetido, repetido!

Minha geração não teve Elis, mas ora, temos seu 'escracho' parido!

Vale-me pelo piano... pela evocação. Vale-me pelo veneno que escorre pela voz... pela sutileza mortal do sentimento nada mais que representado e fuzilante...


(Maria Rita cantando na gravação de seu DVD "Segundo" no Citibank Hall no Rio de Janeiro em 2006)

Vai abaixo o 'velho texto batido dos amantes mal-amados' ao modo proustiano, rasgado pela voz da Maria Rita que anuncia ao 'baixar o nível':

'E dizer que eu estraguei anos inteiros da minha vida, que desejei a morte, que tive o meu maior amor, por uma mulher que não me agradava, que não era o meu tipo!"
(PROUST, Vol. 1, Em busca do tempo perdido, Ed. Globo, 1ªed., 1948, p. 314)


Carol Gomes

12 de setembro de 2010

'Dever" para Casa

Há quem ainda 'vomitando bobagens' diga que Filosofia é resultado de pobres divagações...

Vejamos: O Teatro da Repetição

"A primeira repetição é repetição do mesmo e se explica pela identidade do conceito ou da representação: a segunda é a que compreende a diferença e compreende a si mesma na alteridade, na heterogeneidade de uma 'apresentação'. Uma é negativa por falta do conceito, a outra é afirmativa por excesso da Idéia. Uma é hipotética, a outra é categórica. Uma é estática, a outra é dinâmica. Uma é repetição no efeito, a outra na causa. Uma é em extensão, a outra é intensiva. Uma é ordinária, a outra é notável e singular. Uma é horizontal, a outra é vertical. Uma é desenvolvida, explicada, a outra é envolvida, devendo ser interpretada [olha o Proust aí]. Uma é revolutiva, a outra é evolutiva. Uma é de igualdade, de comensurabilidade, de simetria, a outra se funda no desigual, mesmo na natureza e na terra. Uma é inanimada, a outra tem o segredo de nossos mortos e de nossas vidas, de nossos aprisionamentos e de nossas libertações, do demoníaco e do divino. Uma é repetição "nua", a outra é repetição vestida, que forma a si própria vestindo-se, mascarando-se, disfarçando-se. Uma é de exatidão, a outra tem a autenticidade como critério."
[Deleuze, DF, 1968]


Eita, se isso não é experimento filosófico, num pretenso sentido utilitário, não sei então o que seja vida... aliás, de fato não a sei, tampouco porque saber talvez implica vivê-la... vixe! Assim estou em fase real de experimentação sem data prevista para conclusão de pesquisa... pesquisar a vida é surto imediato, esse tem sido meu aprendizado.

Então... lá me vou buscar um tal fundo secreto oscilante entre a idéia de diferença e a essência da repetição...

Carol Gomes

30 de agosto de 2010

! Teatro Vampiresco !
... de Deleuze e seu teatro da repetição a Palma e sua espécie de vampiro ...

Engraçado como já há algum tempo compreendia que a parceria frutífera para leituras prazerosas, porém não menos cansativas, era música instrumental (sempre a preferir Chopin ou Brahms) com texto filosófico embebido de uma doce escrita estética (na preferência, claro, Gilles Deleuze).

Ocorre que involuntariamente presenciei uma nova partilha, que do inesperado e nada provável pareceu-me harmônico. Taí, ler Deleuze escutando Jorge Palma. Não tinha me atrevido a tamanha ousadia. Confesso que algumas vezes gostei de buscar os escritos deleuzeanos ao som de Hilda Hilst nas vozes femininas do álbum produzido por Zeca Baleiro; sem dúvida pela pretensa presença de Dionísio... oh! Entretanto Jorge Palma superou, superou pela vivacidade discreta do seu piano e pelas palavras puras das tantas composições.

Só por existir
Só por duvidar
Tenho duas almas em guerra
E sei que nenhuma vai ganhar
Só por ter dois sois
Só por hesitar
Fiz a cama na encruzilhada
Chamei casa a esse lugar
E anda sempre alguém por lá
Junto à tempestade
Onde os pés não tem chão
E as mãos perdem a razão
Só por enfrentar
Só por destruir
Tenho as chaves do céu e do inferno
Deixo o tempo decidir
[PALMA, J. Só]

É essa vivacidade que logo me remeteu a Deleuze com o seu rigor no teatro explosivo do pensamento.

Trata-se de produzir, na obra, um movimento capaz de comover o espírito fora de toda representação; trata-se de fazer do próprio movimento uma obra sem interposição; de substituir representações mediadas por signos diretos; de inventar vibrações, rotações, giros, gravitações, danças ou saltos que atinjam diretamente o espírito. [DELEUZE, 2006, p. 29]

Por vezes vi Deleuze e Jorge Palma num diálogo (excitante). O filósofo lança a questão: Como ler... sem encenar o funâmbulo que abre toda a história? (p. 30). A resposta do músico surge: Sou o amigo mais funesto da poesia... tu não sabes de onde venho (Espécie de Vampiro). E seguia-se o diálogo silencioso e não menos enigmático, que eu já nem sabia se essencialmente filosófico, ou no próprio olhar de Deleuze, a filosofia na intercessão com outro não filosófico.

O ocorrido foi simples, casual, resultante de uma noite insossa de domingo, aquelas mesmas em que nos colocamos às leituras ou músicas para perceber o girar dos ponteiros. A grandeza deveu-se à imponência do Sr. Jorge Palma com frases: “meu olhar tem razões que o coração não freqüenta” (Quem és tu de novo)...

Interessante, para além do diálogo entre os personagens foi ver o piano se emaranhando nas palavras, ora as de Deleuze ora as do próprio Palma. Imediatamente recordei-me da bela passagem de Proust.

Primeiro o piano solitário se queixou, como um pássaro abandonado da sua companheira; o violino escutou-o, respondeu-lhe como de uma árvore vizinha. Era como no princípio do mundo, ou antes, era naquele mundo fechado a tudo o mais, construído pela lógica de um criador e onde para todo o sempre só os dois existiriam: aquela sonata. Era um pássaro? Era a alma ainda incompleta da pequena frase, era uma fada, invisível e chorosa, cuja queixa o piano em seguida ternamente redizia? Seus gritos eram tão súbitos que o violino devia precipitar-se sobre o seu arco para os recolher. Maravilhoso pássaro! O violinista parecia querer encantá-lo, amansá-lo, capturá-lo. Já havia passado para a sua alma, já a pequena frase evocada agitava, como ao de um médium, o corpo verdadeiramente possesso do violinista. [PROUST, 1948, p. 290]



É isso... um adendo limitado ao diálogo...



DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Trad. Luiz B. L. Orlandi, Roberto Machado – Rio de Janeiro: Graal, 2ª ed., 2006. 437 p.

PALMA, Jorge. No Tempo dos Assassinos. CD 1 e 2. Gravado no Teatro Villaret em Junho/2002.

PROUST. Marcel. No Caminho de Swann. Trad. Mário Quintana. 1ª edição. Editora Globo. RJ/POA/SP. 1948.


Carol Gomes

28 de julho de 2010

A música no jardim

O dia era claro e aparentemente corriqueiro. No relógio do sujeito caminhante marcava-se lá pelas três da tarde. Numa visão retilínea viam-se os passos do moço, passo a passo a seguir sabe-se lá qual destino com desconhecidos pensamentos. Na parada o ambiente era amarelado, a mesa armada se destacava talvez não pela cor e sim pelo que oferecia, a companhia e a possibilidade de um preenchimento não material do tempo.

Na mesa a presença era o conhecido de outras paradas, de outras horas marcadas no ponteiro, os assuntos talvez não tivessem preenchido o tempo com tamanha precisão, dada a recorrência.
Estranho! Pode sim ser esse o termo. Do caminhar que se seguiu, o encontro transbordou não apenas o cumprimento, os olhares denunciaram que famintos estavam para preencher a volta do relógio. As palavras sobressaíam de cada olhar como vôos impulsionados por uma tal liberdade mental.

Ambos postos, como que literalmente prontificados para o combate. O motivo era o diálogo, despretensioso, melindrosamente sedutor. O tema surgiu da interpretação de um olhar sob o outro. Na conhecida dança das intenções, donde um se deixa julgar interpretado pelo outro. À espreita a cena era acompanhada, detalhe a detalhe, julgava-se que no instante assistia-se ímpar acaso dos dias.
Os olhares eram constituídos no rebate das perspectivas mundanas de cada um dos sujeitos que sobre a mesa colocavam-se nas palavras, antes, no silêncio tagarelante. Eram dois tecendo questionamentos, erguendo impérios mentais, edificando estruturas que se quer o tempo conseguiria mensurar, menos ainda a formalidade material.

O músico suavemente escolhia as palavras como que se valendo de notas, ora harmonizando ora surpreendendo ao tomar bruscamente uma des-sintonia das palavras. O caminhante de pensamentos desconhecidos era o jardineiro, que retocava palavra por palavra, movimentando-as como que para o mais nobre dos cultivos, planejado ou não.

O cenário era esse, a quentura dos raios do sol refletidos no asfalto, a via era dupla e a mesa posta na marca que fixava a curva; sim, a mesa como o ponto da curva na reta, pois era esse o trajeto do caminho que seguia a passos lentos o jardineiro quando se permitiu sentar para o diálogo com o conhecido músico. Pessoas passavam, a pé, nos veículos, sozinhas, acompanhadas, falantes, silenciadas pelos pensamentos agitados, as buzinas ora assustavam; a riqueza do contexto era talvez o fundo visível, contudo obscuro com que os dias se mostram.

O músico lançava-se com insistência na sentença de que a vida é resultado da confluência de partes desconstituídas e alocadas em diferentes espaços, e que quando reunidas, mesmo que poucas das muitas partes, a existência acontecia. O entendimento do sujeito parecia vislumbrar a existência tal qual a criação de uma canção, em que as notas são erguidas na união com outras, nas suas singularidades que no encontro com as outras desvelam o plural unido. Mais ainda o músico cancionava sobre a existência. Conquanto o diálogo continuava, a visão da existência era transposta numa construção musical, longínqua a observação constatava a perspectiva musical da existência como uma melodia que no pulsar de cada nota constitui o conjunto da obra, donde uma nota baixa suaviza a nota alta, donde o agudo é parceiro simétrico do tônico. Eis que a existência para o músico é mostrada como uma canção, como criação que transfigura sons em imagens e explica as partes antes desconstituídas, reunindo os acasos para expressar o conjunto existente.
Para o músico o questionamento fundante não apontava para o início da existência ou para o por quê da mesma, para além, o central tratava obstinadamente da interpretação da existência. Assim a perspectiva do músico mostrava que reunir as notas é tomar a vida como dada em toda sua grandeza, contudo, não apenas na pobreza de reuni-las mecanicamente, antes é reuni-las e realocá-las, redesenhando-as, daí a criação musical da existência, que repetindo as notas as redistribui em tonalidades diferentes.

O jardineiro, silencioso, olhava e nos olhos conseguia ouvir a canção falada de um músico pintor. No músico não se ouvia a canção, via-se o erguer de uma imagem da existência. Das palavras sonorizadas, a imagem era lapidada, o tom dos verbos ditava a pincelada na tela. Ali, naquela mesa-ponto-curva, o jardineiro via um músico criar uma pintura, a pintura da existência. Se do músico o jardineiro via um pintor, pincelando tonalidades diversas de um conjunto, na mente do jardineiro à espreita via-se uma película cinematrográfica. Imagens passando, como que fotos reveladas que sobrepostas constituíam uma longa filmagem, uma entre tantas contações da existência (...)

Carol Gomes

16 de março de 2010

Cavalgada dos olhos

A pergunta é inevitável: Por que essa página? Alimenta-se ou não os acasos da existência?

Muito já se falou das páginas literárias como remédios da alma... mais uma para os olhos ressecados...


Reflexões sobre a Via

Cavalgando três dia e três noites ele chegou ao lugar, mas decidiu que ao lugar não se podia chegar.

Parou, pois, para pensar.

Este deve ser o lugar. Se cheguei a ele, então não tenho importância.

Ou pode não ser este o lugar. Não há, pois, importância, mas eu próprio não sou diminuído.

Ou pode ser este o lugar. Mas talvez eu não tenha chegado a ele. Posso ter estado sempre aqui.

Ou ninguém está aqui, e eu simplesmente sou do lugar e nele estou. E ninguém pode chegar a ele.

Talvez este não seja o lugar. Eu tenho, pois, um propósito. Sou importante, mas não cheguei a ele.

Mas este deve ser o lugar. E como não posso chegar a ele, eu não sou, não estou aqui, aqui não é aqui.

Após cavalgar três dias e três noites ele não chegou ao lugar, e tornou a afastar-se cavalgando.

Dar-se-ia que o lugar não o conhecesse, ou não o encontrasse? Não era ele capaz?

Na história só se diz que se deve chegar ao lugar.

Cavalgando três dias e três noites ele chegou ao lugar, mas decidiu que ao lugar não se podia chegar.
(Harold Bloom em A Angústia da Influência: Uma Teoria da Poesia)


Pergunta: Quem é ele e onde é o lugar?

21 de fevereiro de 2010

Falso ‘Mesmólogo’

O Eu confessa para Você que já não se suporta; aliás, que já não suporta os dias. E desconfiado pergunta: O problema se faz uma questão para mim ou para você?

Eis a questão: Se suportar e suportar os dias é um problema do Eu, do Você ou dos dias?

A questão não interessa. O Eu haveria de ouvir o Você e ouvir ainda os dias.

Deveria o Eu rasgar a fantasia, aquela que Chico cantara ‘quem brincava de princesa acostumou na fantasia’. Escancarar-se e jogar-se no mundo, permitir-se às criaturas mundanas. Na noite não buscar o príncipe encantado, buscar os bruxos, selvagens, e ao contrário de perguntar algo para o Você, deveria dizer a si: ‘quem te viu, quem te vê’.

Especula-se desse diálogo se o Eu não haveria doutro modo olhar para fora e fazer curva na visão para dentro. Isso mesmo! O olho que lança para fora uma visão voltada para dentro. Talvez tenha sido essa visão de Pessoa, numa pergunta propositadamente perdida: ‘quem é esse eu que me vê’?

Ora, majestoso Eu, revele-se no Você plebeu moribundo. Mostra-se satânico e guie os anjos rebelados. Ah! Sabedoria seria desconfiar do medo. A fantasia do principado não lhe permite revelar-se a si mesmo, daí a falsidade de sua não resistência, de ti ou dos dias.

Eis que para além da moralidade cristã, tão insignificante diante do seu medo de admitir o desconhecido, vê-se rolando na lama como bicho indistinguível, animal-homem. Não! Homem-animal. Mais te vale ser animal pós ter sido homem, daí julgarias ter aprendido o devir... Não seja ingênuo. Seja altivo e não se jogue na lama como besta irracional. Seja majestoso, não como príncipe, antes como vagante mônada de alma nobre. Jogue-se internamente na lama, depois role e ria aos choros da existência.

Grite. Sussurre. Chore aos berros. Reverta o sacro e conheça as forças. Oh forças! Só fará teoria depois de vivê-las. Como distinguir o bom do ruim; o certo do incerto; o correto do incorreto sem misturar os lados, sem dissolver o dúbio e fazer sua própria mistura. Vale-se você-mesmo-eu dos pressupostos.

Que é isso que aparece? Diante do Eu uma pronúncia ‘oraculosa’. Eis que se o Eu não se revela a si, nem ao Você e nem aos dias, na presença dos deuses que o rondam revela.

Quantas vezes diante das obras de um artista adorado desejou esbravejar: Que horrível! De posse de um livro mal cheiroso de poeira considerado clássico quis dizer tranquilamente: Que horrível! Ouvindo um som que nomeiam música erudita almejou revelar: Que horrível! De frente para tela donde se reproduzia cenas de um filme adorado pela crítica, ansiou: Que horrível! Visitando construções antigas e adoradas pelos detalhes edificados, pretendeu: Que horrível! E assim seguir-se-ia: Que horrível! Que horrível!

Nas palavras do Eu para os dias, para o Você, revela-se o voltar-se. Horrível não só aos outros. Horrível ao todo. ‘Horríverar’ é desfazer o mundo que lhe mostra insuportável, enfadonho, feio, fedido. Enfim o Eu assume-se. Admite sua mediocridade.

Sabedor, o Eu se mostra ciente de uma não autonomia do mundo objetivo. Escolas diriam tratar de uma questão subjetivista a feiúra do mundo. Escolas outras diriam tratar de uma construção individual a feiúra do mundo. Escolas outras diriam tratar de algo insignificante a feiúra ou não do mundo perante o Eu, sobretudo porque o mundo não estaria diante do Eu, e sim o Eu diante do mundo. Escolas outras diriam e diriam... como de tudo se diz e se diz, e como tudo diz.

O falatório do Eu com o Você nada mais é que desvelar o cansaço, antes, valer-se de palavras para voar... soltar...

Não importa a falação cansativa do Eu, o que lhe importa é falar... falar-se a si é reerguer-se ao mundo, é transverberar... no ‘mesmólogo’ permite a si o descanso de si, o livrar-se do peso sartreano e gozar dos silêncios mundanos, esses mesmos que silenciados pelo barulho do mundo se fazem gritantes nas fissuras íntimas...

Eis que para o Eu, para o Você e para os dias fica o aprendizado de que das provas valem-se as conseqüências, de todo, qualquer mundo que o seja tem sua raiz, e a este, nem mesmo o mais magnânimo ‘mesmólogo’ ou a mais magnânima metafísica pode valer-se da indiferença.

Carol Gomes

18 de fevereiro de 2010

Do aprendizado de um café...
Do carinho daquele amigo...
Se viste esses versos é porque viste o que insisto não dizer...

"Se cantar só quase o homem, não chega às coisas tais como são"


O homem do violão azul
Wallace Stevens
(De The Man with the Blue Guitar, 1937)

I
Homem curvado sobre violão,
Como se fosse foice. Dia verde.

Disseram: "É azul teu violão,
Não tocas as coisas tais como são".

E o homem disse: As coisas tais como são
Se modificam sobre o violão".

E eles disseram: "Toca uma canção
Que esteja além de nós, mas seja nós,

No violão azul, toca a canção
Das coisas justamente como são".


II
Não sei fechar um mundo bem redondo,
Ainda que o remende como sei.

Canto heróis de grandes olhos, barbas
De bronze, mas homem jamais cantei.

Ainda que o remende como sei
E chegue quase ao homem que não cantei.

Mas se cantar só quase ao homem
Não chega às coisas tais como são,

Então que seja só o cantar azul
De um homem que toca violão.

11 de fevereiro de 2010

Um Cansaço Autêntico


Depois de alguns bons meses de procura encontro numa seleção de poemas, para mim uma relíquia, um conjunto de aforismos do Sr. Pessoa. Digo aforismos pois em cada verso uma lição, uma sentença... talvez menos próximos de um conjunto de sensações e sim mais próximos de sentenças filosóficas... julgo...

Lisbon Revisited


NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!)
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-a!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havermos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul – o mesmo da minha infância –
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!


Claro que o ‘NÃO’ afirmativo do Pessoa imediatamente me remete à Emily Dickinson. Como não recordar os versos perfurantes que estampam e nos escancaram os medos íntimos, talvez o maior deles, qual seja: o cansaço para com o mundo. A obscura sentença do ‘viver morto a vida’...

Nós te cobrimos rosto amado,
Não por estarmos de ti fatigados,
Mas porque cansaste de nós


A cegueira medíocre dos desavisados remete os escritos poéticos ao que chamam transtornos mentais, de depressões à esquizofrenia, no entanto, pouco ou quase desconfiam que por entre essas linhas há um diálogo autêntico, maduro de autoconhecimento, donde os indivíduos se permitem ao silêncio consigo mesmos.

Começa-se pela distinção dos termos Solitude e Solidão. Ora, o dicionário realmente traz ambas as palavras como sinônimas, entretanto tantas literaturas nos trazem como termos que apontam para rumos um tanto diferentes.

Solitude o diálogo, diria, egoísta do eu consigo. Solidão como a perda de si nos labirintos permanentes da multidão.

Estaria Dickinson e Pessoa expressando e clamando à cegueira do mundo o direito à solitude? Seja ou não seja, a questão apresentada me parece distante dos transtornos mentais e sim uma questão de visão intuitiva, donde o poeta (a poetisa) em suas solitudes tratam de assuntos pessoais com eles mesmos.

Recordo-me de repetidas vezes encontrar nos escritos que tratam da mente humana, apontamentos do quanto grande parte dos indivíduos não suporta ‘estar e ficar’ sozinhos, sobretudo porque esses mesmos têm medo deles mesmos. Esse apontamento não é uma defesa do ‘estar e ficar’ só, é antes, tomar do aprendizado com escritores, o quão o autoconhecimento é resultado do diálogo de si consigo, estando aberto ao mundo, no entanto, não dado gratuitamente ao movimento aparente e artificial dos dias.

Cansar-se do mundo, não é se postar enquanto deus e menosprezar a vida, ao contrário, é reafirmar a vida, contudo, livrando-se das mediocridades absurdas que preenchem mentes preguiçosas dadas às verdades mastigadas e de fácil digestão. Cansar-se do mundo é buscar para si o silêncio dos sentidos na busca de uma sensibilidade apurada, que permite ouvir um olhar, que permite ver uma nota musical, que permite sentir o cheiro do verde de uma planta, enfim, que permite sentir o colorido do céu azul...

Para mim fica o NÃO de Fernando Pessoa como impositiva afirmação para a vida e advertência para os lixos descartáveis (não recicláveis) do mundo. Da Emily Dickinson me fica o adeus dos que por vezes insistem na dificuldade de compreender que o diálogo também se faz num monólogo silencioso, fundamentalmente porque há aí uma descoberta de outros eus, descobertas que no barulho do mundo mediocrizado pode por vezes passarem desapercebidas.

Carol Gomes

18 de janeiro de 2010

O Casamento da Lua
Vinícius de Moraes*

 O que me contaram não foi nada disso. A mim, contaram-me o seguinte: que um grupo de bons e velhos sábios, de mãos enferrujadas, rostos cheios de rugas e pequenos olhos sorridentes, começaram a reunir-se todas as noites para olhar a Lua, pois andavam dizendo que nos últimos cinco séculos sua palidez tinham aumentado consideravelmente. E de tanto olharem através de seus telescópios, os bons e velhos sábios foram assumindo um ar preocupado, e seus olhos já não sorriam mais; puseram-se, antes, melancólicos. E contaram-me ainda que não era incomum vê-los, peripatéticos, a conversar em voz baixa enquanto balançavam gravemente a cabeça.

É que os bons e velhos sábios haviam constatado que a Lua estava não só muito pálida, como envolta num permanente halo de tristeza. E que mirava o Mundo com olhos de um tal langor e dava tão fundos suspiros – ela que por milênios mantivera a mais virginal reserva – que não havia como duvidar: a Lua estava pura e simplesmente apaixonada. Sua crescente palidez, aliada a uma minguante serenidade e compostura no seu noturno nicho, induzia uma só conclusão: tratava-se de uma Lua nova, de uma Lua cheia de amor, de uma Lua que precisava dar. E a Lua queria dar-se justamente àquele de quem era a única escrava e que, com desdenhosa gravidade, mantinha-a confinada em seu espaço próprio, usufruindo apenas de sua luz e dando azo a que ela fosse motivo constante de poemas e canções de seus menestréis, e até mesmo de ditos e graças de seus bufões, para distraí-lo em suas periódicas hipocondrias de madurez.

Pois não é que ao descobrirem que era o Mundo a causa do sofrimento da Lua, puseram-se os bons velhos sábios a dar gritos de júbilo e a esfregar as mãos, piscando-se os olhos e dizendo-se chistes que, como toda franqueza, não ficam nada bem em homens de saber... Mas o que se há de fazer? Frequentemente, a velhice, mesmo sábia, não tem nenhuma noção do ridículo nos momentos de alegria, podendo mesmo chegar a dançar rodas e sarabandas, numa curiosa volta à infância. Por isso perdoemos aos bons e velhos sábios, que se assim faziam é porque tinham descoberto os males da Lua, que eram males de amor. E males de amor curam-se com o próprio amor – eis o axioma científico a que chegaram os eruditos anciãos, e que escreveram no final de um longo pergaminho crivado de números e equações, no qual fora estudado o problema de crescente palidez da Lua.

 Virgens apaixonadas, disseram-se eles, precisam casar-se urgentemente com o objeto de sua paixão. Mas, disseram-me eles ainda, o que pensaria disso o desdenhoso Mundo, preocupado com as suas habituais conquistas? O problema era dos mais delicados, pois não se inculca tão facilmente, em seres soberanos, a idéia de desposarem suas escravas. Todavia, como havia precedentes, a única coisa a fazer era tentar. Do contrário operar-se-ia uma partenogênese na Lua, o que seria em extremo humilhante e sem graça para ela. Não. Proceder-se-ia a uma inseminação artificial, e, uma vez o fato consumado, por força haveria de se abrandar o coração do Mundo.

 E assim se fez. Durante meses estudaram os homens de saber, entre seus cadinhos e retortas, e com grande gasto de papel e tinta, o projeto de um lindo corpúsculo seminal que pudesse fecundar a Lua. Um belo dia ei-lo que fica pronto, para gáudio dos bons e velhos sábios, que o festejaram profusamente com danças e bebidas, tendo havido mesmo alguns que, de tão incontinentes, deixaram-se a dormir no chão de seus laboratórios, a roncar como pagãos. Chamaram-no Lunik, como devia ser. E uma noite, em que o Mundo agitado pôs-se a sonhar sonhos eróticos, subitamente partiu ele, o lindo corpúsculo seminal, sequioso e certeiro em direção à Lua, que, em sua emoção pré-nupcial, mostrava com um despudor desconhecido nela as manchas mais capitosas de seu branco corpo à espera. Foi preciso o Vento, seu antigo guardião, escandalizado, se pusesse a soprar nuvens por todos os lados, com toda a força de suas bochechas, para encobrir o firmamento com véus de bruma, de modo a ocultar a volúpia da Lua expectante, a altear os quartos nas mais provocadoras posições.

 Hoje, fecundada, ela voltou finalmente ao céu, serena e radiosa como nunca a vira dantes. Pela expressão com que me olhou, penso que já está grávida. Ou muito me engano, ou amanhã deve estar cheia.

* Em: Para viver um grande amor. Livraria José Olympio Editora. RJ/RJ. 1976

1 de janeiro de 2010

Num dois mil e nove que permanece e que não fica...
Num dois mil e dez que não vem e que já estava no que não ficará...


“Há um minuto do mundo que passa... não o conservamos sem nos transformamos nele [...] As grandes paisagens têm, todas elas, um caráter visionário. A visão é o que do invisível se torna visível... a paisagem é invisível porque quanto mais a conquistamos, mais nela nos perdemos. Para chegar à paisagem, devemos sacrificar tanto quanto possível toda determinação temporal, espacial, objetiva; mas este abandono não atinge somente o objetivo, ele afeta a nós mesmos na mesma medida. Na paisagem, deixamos de ser seres históricos, isto é, não temos memória, nem mesmo para nós na paisagem. Sonhamos em pleno dia e com os olhos abertos. Somos furtados ao mundo objetivo mas também a nós mesmos. É o sentir.”
(o falsário do Deleuze valendo-se de Cézanne, QPh? p.220)


“Ele (o artista) viu na vida algo muito grande, demasiado intolerável também, e a luta da vida com o que a ameaça, de modo que o pedaço de natureza que ele percebe, ou os bairros da cidade, e seus personagens, acedem a uma visão que compõe, através deles, perceptos desta vida, deste momento, fazendo estourar as percepções vividas numa espécie de cubismo, de simultanismo, de luz crua ou de crepúsculo, de púrpura ou de azul, que não têm mais outro objeto nem sujeito senão eles mesmos [...] chama-se de estilos (artísticos) essas visões paradas no tempo e no espaço.”
(o falsário do Deleuze valendo-se de Giacometti, QPh? p. 222)


“O escritor torce a linguagem, fá-la vibrar, abraça-a, fende-a, para arrancar o percepto das percepções, o afecto das afecções, a sensação da opinião – visando, esperamos, esse povo que ainda não existe. Minha memória não é amor, mas hostilidade, e ela trabalha não para reproduzir, mas para descartar o passado... Que queria dizer minha família? Eu não sei. Ela era gaga de nascença e contudo tinha algo para dizer. Sobre mim, e sobre muitos de meus contemporâneos, pesa a gagueira de nascença. Aprendemos, não a falar, mas a balbuciar, e é só ouvindo o ruído crescente do século, e uma vez lavados pela espuma de sua onda mais alta, que nós adquirimos uma língua.”
(o falsário do Deleuze valendo-se de Mandelstam, QPh? p. 228)


“O atelier de Elstir me apareceu como o laboratório de uma espécie de nova criação do mundo, onde, do caos em que estão todas as coisas que vemos, ele havia tirado, pintando-os sobre diversos retângulos de tela que se achavam colocados em todos os sentidos [...] raros momentos em que se via a natureza tal como é, poeticamente, desses momentos é que era composta a obra de Elstir. Uma das metáforas mais freqüentes nas marinhas que tinha consigo naquele momento era justamente a que, comparando a terra ao mar, suprimia qualquer demarcação entre ambos [...] No primeiro plano da praia, o pintor soubera habituar os olhos a não reconhecerem fronteira fixa, demarcação absoluta, entre a terra e o oceano. Homens que lançavam barcos ao mar corriam nas ondas como sobre a areia, a qual, molhada, refletia já os cascos, como se fosse água. Nem o próprio mar subia regularmente, mas seguia os acidentes da costa, que a perspectiva chanfrava ainda mais, tanto que um navio em alto mar, meio oculto pelas obras avançadas do arsenal, parecia vogar no meio da cidade; mulheres que apanhavam mariscos nas rochas, como estava cercadas de água e devido à depressão que, após a barreira circular das rochas, afundava a praia até o nível do mar, pareciam estar num gruta marinha encimada de barcos e vagas, aberta e protegida no meio das ondas miraculosamente afastadas [...] o esforço de Elstir para não expor as coisas tal como sabia que eram, mas tem função das ilusões ópticas que formam a nossa visão inicial, o tinha levado integralmente a por em evidência alguma dessas leis de perspectiva, que então chocavam mais porque era a arte que primeiro as revelava.”
(Proust, À Sombra das Raparigas em Flor p. 326/327)


 Assim festejo a passagem artificial, porque a não artificial é diária...
Viva 2009 que se fará, sem dúvida, pulsante nas tantas páginas seguintes...
Viva 2010! Venha transbordando de Filosofia e Arte; não menos Paz...


  Carol Gomes