1 de janeiro de 2010

Num dois mil e nove que permanece e que não fica...
Num dois mil e dez que não vem e que já estava no que não ficará...


“Há um minuto do mundo que passa... não o conservamos sem nos transformamos nele [...] As grandes paisagens têm, todas elas, um caráter visionário. A visão é o que do invisível se torna visível... a paisagem é invisível porque quanto mais a conquistamos, mais nela nos perdemos. Para chegar à paisagem, devemos sacrificar tanto quanto possível toda determinação temporal, espacial, objetiva; mas este abandono não atinge somente o objetivo, ele afeta a nós mesmos na mesma medida. Na paisagem, deixamos de ser seres históricos, isto é, não temos memória, nem mesmo para nós na paisagem. Sonhamos em pleno dia e com os olhos abertos. Somos furtados ao mundo objetivo mas também a nós mesmos. É o sentir.”
(o falsário do Deleuze valendo-se de Cézanne, QPh? p.220)


“Ele (o artista) viu na vida algo muito grande, demasiado intolerável também, e a luta da vida com o que a ameaça, de modo que o pedaço de natureza que ele percebe, ou os bairros da cidade, e seus personagens, acedem a uma visão que compõe, através deles, perceptos desta vida, deste momento, fazendo estourar as percepções vividas numa espécie de cubismo, de simultanismo, de luz crua ou de crepúsculo, de púrpura ou de azul, que não têm mais outro objeto nem sujeito senão eles mesmos [...] chama-se de estilos (artísticos) essas visões paradas no tempo e no espaço.”
(o falsário do Deleuze valendo-se de Giacometti, QPh? p. 222)


“O escritor torce a linguagem, fá-la vibrar, abraça-a, fende-a, para arrancar o percepto das percepções, o afecto das afecções, a sensação da opinião – visando, esperamos, esse povo que ainda não existe. Minha memória não é amor, mas hostilidade, e ela trabalha não para reproduzir, mas para descartar o passado... Que queria dizer minha família? Eu não sei. Ela era gaga de nascença e contudo tinha algo para dizer. Sobre mim, e sobre muitos de meus contemporâneos, pesa a gagueira de nascença. Aprendemos, não a falar, mas a balbuciar, e é só ouvindo o ruído crescente do século, e uma vez lavados pela espuma de sua onda mais alta, que nós adquirimos uma língua.”
(o falsário do Deleuze valendo-se de Mandelstam, QPh? p. 228)


“O atelier de Elstir me apareceu como o laboratório de uma espécie de nova criação do mundo, onde, do caos em que estão todas as coisas que vemos, ele havia tirado, pintando-os sobre diversos retângulos de tela que se achavam colocados em todos os sentidos [...] raros momentos em que se via a natureza tal como é, poeticamente, desses momentos é que era composta a obra de Elstir. Uma das metáforas mais freqüentes nas marinhas que tinha consigo naquele momento era justamente a que, comparando a terra ao mar, suprimia qualquer demarcação entre ambos [...] No primeiro plano da praia, o pintor soubera habituar os olhos a não reconhecerem fronteira fixa, demarcação absoluta, entre a terra e o oceano. Homens que lançavam barcos ao mar corriam nas ondas como sobre a areia, a qual, molhada, refletia já os cascos, como se fosse água. Nem o próprio mar subia regularmente, mas seguia os acidentes da costa, que a perspectiva chanfrava ainda mais, tanto que um navio em alto mar, meio oculto pelas obras avançadas do arsenal, parecia vogar no meio da cidade; mulheres que apanhavam mariscos nas rochas, como estava cercadas de água e devido à depressão que, após a barreira circular das rochas, afundava a praia até o nível do mar, pareciam estar num gruta marinha encimada de barcos e vagas, aberta e protegida no meio das ondas miraculosamente afastadas [...] o esforço de Elstir para não expor as coisas tal como sabia que eram, mas tem função das ilusões ópticas que formam a nossa visão inicial, o tinha levado integralmente a por em evidência alguma dessas leis de perspectiva, que então chocavam mais porque era a arte que primeiro as revelava.”
(Proust, À Sombra das Raparigas em Flor p. 326/327)


 Assim festejo a passagem artificial, porque a não artificial é diária...
Viva 2009 que se fará, sem dúvida, pulsante nas tantas páginas seguintes...
Viva 2010! Venha transbordando de Filosofia e Arte; não menos Paz...


  Carol Gomes





2 comentários:

  1. por que você escreve "o falsário do Deleuze"?

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  2. Olá Pedro e Paulo, tudo na paz?

    Então, eis Proust antecipando a 'falsidade deleuzeana':

    "Um romancista poderia, no curso da vida de seu herói, pintar quase exatamente iguais os seus sucessivos amores, e dar com isso a impressão, não de imitar-se a si mesmo, de criar, pois há menos força numa inovação artificial que numa repetição destinada a sugerir uma verdade nova." (PROUST, Vol II, p. 374)

    O "falsário do Deleuze" é uma provocação às leituras deleuzeanas, posto que no diálogo das categorias Repetição e Diferença há um romance intrínseco, donde o novo só é parido do repetido, donde a criação é rachar um tal que já existe... desse modo, ao voltarmos a Cézanne, p.e., não encontraremos o (se é que há) Cézanne, talvez encontremos um monstro que até então não houvera existido.

    O 'falsário' expressa apreço pelo filósofo...

    Abraços...

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