4 de dezembro de 2018


Dispositivos Coreográficos:
(des)posando efeitos de (des)controles

Por Carol Gomes
Doutoranda em Filosofia/UFPR
Profa. Filosofia IFTM


Palavras sobre um espetáculo para quem não o viu e para os que viram com outras lentes
Talvez um dos mais imponentes desafios do estarmos contemporâneos é não se fechar no modelo longínquo clássico do par causa-efeito. A causa como fonte primeira, fundante e por certo inquestionável como verdade. Isso não quer dizer que não haja causa e que tudo é efeito, e que portanto o contemporâneo é um decalque caótico e não emancipado do saber moderno. Não, a provocação é simples e despretensiosa. É apenas começar a aceitar o óbvio como óbvio. Decompor as existências com base no que temos delas, partindo disso que delas chamamos de efeitos. Como é que tenho acesso à fala de uma pessoa, se não pelas palavras ou expressões que ela emite? Não tenho acesso à causa, ao porquê imediato daquela fala. Parte-se dos efeitos das palavras, dos gestos, das temperaturas e dos cheiros para daí compormos a causa do que se passa entre essa quem me fala e essa pessoa quem ouço. É isso. Os efeitos como o que de fato tenho acesso e através dos quais tenho as existências, incluindo eu mesma. Nada novo o que digo, lá nos anos de 1600 um pensamento tal já nos ensinava isso, como ensinou a Nietzsche, Foucault, Deleuze, por exemplo[1].
Pois bem, a mim o espetáculo Dispositivos Coreográficos, na apresentação de estreia e abertura do Festival Paralela 2018[2], trouxe justamente a previsibilidade de viver como modo de existência óbvia. Ora, não há segredos, pulos do gato, magias impenetráveis do pensamento e das criações artísticas. Há corpos e não por acaso são esses os corpos do Provisório Corpo – Grupo de Dança, sob direção e concepção de Ricardo Alvarenga. A magnitude do espetáculo se deu lentamente, ou seja, foi crescendo do início ao fim, um construto de efeitos cuja causa se completa ao término de cada bloco de repetição. Causa como resultado, como produção, efeitos tomados de corpo em corpo, como corpo a corpo ao longo do espetáculo enquanto criação mecânica e maquínica.
Vi corpos se fazendo dança de moléculas e em plasticidades, portanto biológicos. Vi corpos em movimento como deslocamento contínuo de repetições espacializadas, portanto físicos. Vi corpos como elementos distintos se implodindo juntos, portanto químicos. Vi corpos grafitando o espaço infinito entre 1 e 1,0001... dos palcos, internos e externos, portanto matemáticos. Vi corpos fêmeos, machos, trans, negros, brancos, portanto políticos. Senti com os olhos os movimentos, os repousos (embora tenham sido poucos), vibrações térmicas e auditivas, portanto sensações.
Um espetáculo com 16 dançantes, entre dançarinas e dançarinos, começou com alguns poucos no palco e os demais chegaram vindos dos corredores entre a plateia. Cada corpo nesse instante já era mais que um corpo em forma estática, àquela altura era movimento ritmando e desritimando moléculas, linhas e retas abstratas da matemática, ondas de luz, matérias de som, relação entre movimento e repouso continuamente, por isso corpo-dança. Os corpos-dança se colocavam todos numa mesma série, melhor, num mesmo bloco de movimento repetitivo. Mas veja bem, como toda repetição, poderíamos ter o repetitivo apenas como infernal, o mesmo infinitamente sem parar. O corpo mecânico de articulação em articulação reproduzindo o mesmo gesto: erguem as pernas, erguem os braços, coluna ereta, sentido para frente, para traz, para cima, para baixo, e assim uma reprodução marcada por sinalizações de tempo dadas num espaço indicado mentalmente pelos próprios ensaios da produção coreográfica. Mas não, o que parecia menor da dança, justamente essa repetição, implodiu cada corpo individual afirmando uma menoridade específica de dançante por dançante conectados uns aos outros. Em outros termos: o corpo individual que de maneira mecânica reproduzia os movimentos, se conecta exatamente através da repetição com os outros distintos corpos também individuados. É essa conexão, essa relação entre corpos individuados e distintos que maquinicamente produzem um corpo agora sim maiorizado numa noção comum estabelecida entre os corpos enquanto se davam as repetições. No espetáculo, portanto, não é possível ver um grupo maior dançando sem ver cada corpo na sua menoridade individuada, nem tampouco, é possível ver individual sem o todo. A repetição dos movimentos mecânicos, avolumados na luz, ritmados em matérias musicadas, revestidos de tecidos recortados e recosturados para cada corpo impôs um maquinismo desposado dos controles de poder. O que havia de comum produzido maquinicamente a partir de uma repetição mecânica, trata justamente de uma causa produzida pelos próprios corpos. Veja, ‘causa produzida’ pelos corpos, qual seja, o controle político de existências. Portanto, nada mais contemporâneo e preciso em pleno 2018, um espetáculo cujos corpos desvestem os dispositivos, ordinariamente invisibilizados como produções de controle. O que Ricardo Alvarenga, os 16 corpos dançantes e toda a equipe de produção nos deu, foi um desposamento do segredo das vigilâncias de controle a partir dos seus efeitos nos corpos individuados sempre conectados nas sociabilidades.

Não bastassem o mecânico e o maquinismo conectados realizando efeitos que implodem como causa os controles políticos dos e nos corpos, Dispositivos Coreográficos avança e ao sair do quadrado do palco italiano lança todos os corpos, veja bem, todos os corpos para fora do teatro. Que operação maquínica é essa? Passados cerca de 30 minutos de espetáculo, entram no palco alguns corpos rígidos estranhos ao bloco das repetições. Esses corpos abrem as portas de metal do fundo do teatro, como que abrindo numa plasticidade metálica as cortinas do palco visto do lado contrário, de fora para dentro, embora estivéssemos todos do lado interno. Naquele instante o espetáculo nos colocou contraluz de nós mesmos. Se antes éramos dançarinos no palco com a plateia bem definida no seu lugar frontal do palco italiano, ao abrir as cortinas metálicas, éramos todos naquele instante corpos docilizados assistidos por uma tecnologia de captação de imagem: um drone. Sim, as cortinas se abriram e imediatamente subiu um drone que filmava a todos, dançarinos e plateia. Vigilância. Qual corpo se conectava repetidamente a quais outros corpos agora? Estávamos todos na repetição, mecânica e maquínica. Éramos todos partes de uma produção cujos dispositivos já não escondiam seus corpos. O drone se mostrou e nos captou como efeitos, não bastasse, nos lançou como sínteses em imagens na parede externa do próprio teatro. Enquanto dançarinos saiam do palco e nós, a plateia, saíamos para a parte externa, quem nos via na parede externa captados e imediatamente projetados como imagem? Quens corpos nos viagiavam?! Esses minutos ainda parecem condensados em energias dos controles de poder. Quem nos controla? Uma vez mais Dispositivos Coreográficos desnudou a partir dos efeitos as causas produzidas dos controles. A brandura dos nossos corpos conectados fabricando os controles como causas resultantes de nós mesmos ao que chamamos razão humana emancipadora. Para quais existências cultivamos tanto controle?
No piso externo do teatro, de frente para o projeto arquitetônico do Niemeyer e nele todos os corpos sendo projetados, visualizávamos marcações em amarelo no chão que grafavam uma centralidade para os dançarinos. Nas laterais a estrutura metálica com os refletores de iluminação circular, uma composição de luzes coloridas com rodinhas girando dentro de uma grande roda (quase um Tempos Modernos com Carlitos sendo engolido pelas traquinagens da fábrica), a música numa sintetização alucinante que colocava em matéria os pixels dos digitais, o binário controlador estava no cenário como música, como onda material alucinando os corpos nas séries de repetições. Acima dos corpos, o drone com seu som tecnológico de uma engrenagem que lembra muito um grande mosquito que vê tudo; mas veja lá, o mosquito vê, porém o drone, vê, conserva, acumula e projeta as imagens. Uma coisa é sermos vistos ininterruptamente por outras tantas existências (os outros seres vivos e inorgânicos nos veem), outra coisa é fazer uso simbólico e portanto político do que se vê. Estávamos todos vendo e todos nas suas individuações sendo vistos e projetados instantaneamente.
Me perguntava pela relação entre as séries de repetição dos dançarinos e a captação e projeção das imagens de todos nós. Há também uma relação de repetição entre as imagens quando do processo de captação, acumulação, sequenciamento e projeção dessas imagens. O drone repetia esse processo escancaradamente no espetáculo. Um desvelamento direto do controle. Há uma distância temporal que é preenchida por acumulação simbólica (imagens acumuladas, lembranças) entre os atos do dispositivo de captar, acumular, sequenciar e projetar. O que se coloca nos intervalos entre cada um desses 4 atos é o que produz os controles!? Um dentre tantos aspectos que o espetáculo desnudava evidenciou o dispositivo numa autonomia política ao estabelecer relações entre os corpos dançantes e os corpos espectadores. Se havia distinção até então, com a entrada do drone na cena, todos passamos a personagens, estrategicamente captados, acumulados, sequenciados e projetados, portanto, deliberadamente controlados.
Um drone repete séries de captação dos instantes temporais, mecanicamente há um movimento de sequenciamento de imagens, o famoso modelo do cinema de 24 fotogramas por segundo para nos dar uma imagem em movimento. Para além dessa técnica mecânica, há ainda um maquinismo da tecnologia que se faz ao conectar a função específica de cada parte do corpo-drone: as lentes ampliam, reduzem, aproximam, distanciam, fecham ou abrem a cena. O diafragma e a velocidade com que abre e fecha controla a quantidade de luz, portanto o realismo e o ficcionalismo na profundidade da imagem e isso implica na multiplicidade de planos dentro de uma mesma cena que remete à presença de infinidades dentro de uma única imagem. Aqui então retornamos à relação produtora dos efeitos para com a causa. Se inicialmente tomávamos os corpos-dança como os dispositivos de produção da causa de controle, num segundo momento quando da virada do espetáculo que se deu no ambiente externo, vimos um corpo-drone produzir essa causa controladora a partir dos efeitos em relação dada nos e entre os corpos humanos (dançarinos e público), bem como os corpos matéria de ondas de som, corpos energia de ondas luminosas e grafias em roupas e marcações espaciais no chão.
Foto: Carol Gomes
Desvelados os efeitos produtores de causas de controle, Dispositivos Coreográficos, traz com corpos-dança uma estética do comum construída do que se passa entre individuais na efetuação de um corpo-todo seriado em repetições. É por isso que dentro das séries repetitivas, em vários momentos escutamos gritos e inclusive visivelmente corpos se contorcendo como se estivessem numa pane (como os androides-humanizados de Blade Runner: o caçador de andróides). Isso sim são as fissuras dentro das repetições mecânicas e maquínicas de controle. Se concluímos que o controle é fabricação de corpos conectados, não excluímos que essa própria fabricação traz consigo o germe das panes, das fissuras, dos buracos sem fundo ou das atonalidades de territórios desconhecidos dentro das geografias mapeadas. No interior da repetição as diferenças atormentavam, dentro da dança o movimento claramente definido como harmonia corporal trazia brechas e vácuos para instantes quaisquer de quebras do controle. O corpo sozinho de um dançarino aqui, outro ali, outro acolá, se contorcendo dentro da própria série repetitiva era o suspiro do corpo dizendo que ele poderia muito mais, ao ponto de em si mesmo desconhecer as forças resistentes e potentes do agir.
Dispositivos Coreográficos colocou corpos dançando, ergueu corpos-dança, desposou dispositivos de controle como causas produzidas dentro dos efeitos de corpos, portanto realizados e alimentados pelos corpos-sujeitos assumidos por si mesmos como corpos-objetos controlados. Os quens foram postos nos palcos, dentro e fora, do teatro e de nós mesmos. Vimos e fomos vistos. Olhamos e fomos olhados. Movimentaram-nos na coreografia daquilo que criamos como símbolo da emancipação humana, justamente para nos confrontarmos frente a frente com os controles e a potência fissuradora do poder de um corpo. 



[1] Me refiro a Spinoza no livro Ética publicado em 1677, bem como aos capítulos Visão ética do mundo e As noções comuns de Deleuze no livro Espinosa e o problema da expressão de 1968.
[2] Apresentação única no Teatro Municipal de Uberlândia em 28 de novembro/2018.

3 de outubro de 2018

panfletando o coração com ponteiros de um relógio de primavera

não me afobe no 1º dia
não se afobe no 2º dia
não te afobo no 3º dia
não nos afobemos no 4º dia
não te afobes no 5º dia
não nos afobem no 6º dia
não se afobem no 7º dia
não a afobe no 8º dia
não as afobem no 9º dia
não lhes afobem no 10º dia
não se nos afobem no 11º dia
não vos afobeis no 12º dia
não afobe no 13º dia

afobe-me no 14º dia
afobe-se no 15º dia
afobe-te no 16º dia
afobe-nos no 17º dia
afobem-se no 18º dia
afobem-na no 19º dia
afobem-se no 20º dia
afobem-lhes no 21º dia
afobar-lhes-ei no 22º dia
afobar-nos-íamos no 23º dia
afobar-me-ei no 24º dia
afobara-me no 25º dia
afobaras-te no 26º dia
afobamo-nos no 27º dia

e nesse último dia
afobaram-se
todos os dias
da primavera futura

e nesse primeiro dia do futuro
afobaram-se
os olhos olhando e cheirando
os 27 dias passados

e nesses dias de agora
afobam-se
os sentidos todos
porque não os são
esses 27 dias
são aqueles recontados
esparsos na memória
onde se afobam
todos os dias
de imprecisos 5 anos

(dos afobamentos de um coração descaradamente afobado que ama)
Carol Gomes

12 de setembro de 2018

Biblioteca, 12 de setembro de 2018.
(Período em que no cerrado-sertão mineiro os ipês roxo e amarelo já floriram e os brancos florem).

Um senhor senta na mesa a minha frente. Chegou com as mãos livres, apenas com uma garrafa de água, sem caneta e nem papel.  Deixou a garrafa na mesa e foi até as prateleiras pegar um livro. Voltou. Sentou. Abaixou a cabeça e começou a leitura. Camisa quadriculada e cabelos grisalhos.

Quando o avistei entrando no salão de estudos, pensei: o que faz uma pessoa frequentar bibliotecas?! Sem respostas e elucubrações delongadas retomei meu estudo.

Depois de 1 hora, levantei para abastecer a minha garrafinha de água.  Saí em direção ao lado esquerdo da mesa. Não por deliberação voluntária e sim por afeto involuntário do meu corpo.

Fui. Voltei em menos de 3 minutos. No retorno mudei a direção e segui pela direita. Cheguei à mesa. Sentei.

Passados 5 minutos o homem grisalho começou a se contorcer olhando para trás. Pensei: Coitado, começou a conflitar as faculdades. Noutros termos: começou a dar pane de leitura.

Imediatamente ele virou todo o corpo para trás e disse: "Eu não te vi voltando. Tenho amnésia". Virou para frente e aparentemente sossegou.

Eu que sou defensora das bibliotecas como pulmões das urbanidades, fui logo concluindo que o senhor era mais um entre tantos que vão para as bibliotecas para dessufocarem, seja ou não são ou louco. Incluindo eu.

Eis que o homem se vira novamente e num tom de relato interativo em prol da sociabilidade (dois anônimos no meio de um tanto de livros mudos) diz que foi aposentado porque tem amnésia do lado direito. Olhando fixo para mim com parte do tronco e do pescoço contorcidos na minha direção pergunta: "Você voltou pela direita, né?!".

Respondi me apressando no pensamento que ele ia querer conversar sobre amnésia e eu iria escapulir como?! "Sim, voltei pelo lado direito".

"Ah bom, porque te vi indo mas não me recordo de você voltando. Qual sua religião?".

Eu: Minha região? (Já enchendo o peito para dizer Minas Gerais quem te conhece não esquece jamais).

Ele: Não, sua religião.

Eu começando a palpitar inquietações: Não tenho religião (deveria ter respondido: Lulista religião emancipadora e não-ascética. Na próxima vou lembrar dessa).

Não ter religião foi a resposta mais resolutiva porque até conseguir explicar a ele que para mim as árvores conversam e que o universo conjura tudo em todos ao mesmo tempo e por isso sou divindade tanto quanto a florzinha amarela do ipê apaixonada pelo verde da trepadeira que vive na árvore ao lado, as outras pessoas certamente nos chamariam atenção reivindicando silêncio.

Ele com um espanto e mudo se virou para frente e pronto.
Ele mudo em fala e eu tagarelando em pensamento: vixe, agora esse senhor se levanta e me questiona ou começará a me catequizar. "Nenhuma e nenhoutra" das opções diretamente, mas o seu silêncio, os seus cabelos grisalhos, as costas e sua cabeça abaixada sendo sustentada pela mão  (evocando Rodin e o pensar como verbo em mármore de corpo macho) me inquietou diante da relação amnésia e direita.

Se meu corpo se lançou involuntariamente em direção à esquerda, a memória dele por sua vez recusa a direção direita.

Para finalizar a pausa ergonômica de relaxamento da cervical, concluí com uma questão imprópria e desnecessária:

No que e n'onde encontramos como diferentes e como semelhantes no involuntariado do corpo para esquerda e na amnésia da memória para a direita?

Se não há ficção, indiscutivelmente não existiriam bibliotecas reais, nem de esquerda e nunca de direita. Uma como direção topológica-territorial e outra como memória sem direção e portante apenas e tão somente como espectro.

(foto de ficções como fragmentos de realidades não verdadeiras e tão belas justamente por serem falsas).


8 de janeiro de 2018

Segunda-feira de janeiro de 2018, 6:45, chuvinha calma, passarinhos cantarolando na mangueira e a cabeça atinando para a jornada cujas demandas cotidianas pululam.

8:30 eis que um país inteiro te solapa em pouco menos de 5 minutos. Posto de combustível com gasolina a 4,39 e álcool a 2,88. A promoção é única e nenhum outro lugar da cidade com 700 mil habitantes alcança essa façanha, e o mais próximo concorrente ficou longe pedindo 4,65 na gasolina. Quando tem promoção não há titubeio e a fila de espera para encher o tanque é quilométrica.

9:05 de frente para bomba, os olhos se inquietam entre a pistola de onde sai gasolina, álcool ou diesel e o painel que cronometra a relação entre preço e litros. Em segundos a retina recebe estímulos de prazer e de dor, de conservação e de ameaça, pois a pistola em pleno funcionamento é sinal de tanque cheio e mobilidade garantida com o tanque do carro cheio, mas a cada jato da pistola o cronômetro roda e inversamente diminui as notas da bolsa ou o limite do cartão. É isso que um posto de gasolina não tarda em ensinar, quiçá ensinamento mais direto que quaisquer aulas de proporção inversa, pois mesmo o mais romântico ou o mais bobo ser humano percebe que quanto mais a pistola libera líquido combustível, menos dinheiro se tem na poupança. Mais combustível, menos dinheiro; ou, menos combustível, mais dinheiro; ou, mais locomoção sem aperto e atrasos de ônibus, menos dinheiro; ou, mais tanque cheio, menos economias, e assim vai a relação inversa, altera-se as variantes e a relação inversa permanece. O fato é que à fórmula imperecível outros tantos fatores são conectados, por exemplo: se você opta por menos pistola funcionando e portanto menos combustível no carro, o desdobramento é que a locomoção no automóvel deverá diminuir, e considerando que não é possível viver isolado em casa, o próximo desdobramento é se locomover a pé, de bicicleta, transporte público ou outro modo: uber, táxi, carona. Se na opção da locomoção à pé ou da bicicleta os gastos diminuem, em contrapartida numa cidade com ausência ignorante de arborização, a economia no combustível custará gastos na proteção da pele e com calçados para longas caminhadas. Se a opção é por transporte público: dispensa comentários. Se a opção é uber, táxi, experimente ir ao trabalho a 30 quilômetros de casa calculando ida e volta diariamente. Se a opção é carona, considere as instabilidades, afinal carona é carona e não prestação de serviço. Disso tudo esqueça o fator segurança, sobretudo quem optar por bicicleta e ou caminhadas.

Pois bem, passado esse momento de reflexão lucífera (seja por evocar a luz ou por evocar ação do anjo decaído), os olhos estimulados não se aquietam e se lançam no envio de estímulos ao sistema nervoso que solicitará outros dispositivos do corpo para atuarem diante da relação inversa que funda as atividades lucrativas das redes de combustível.

- Bom dia moço, tudo bem?
> Tudo bem.
- O senhor completa por favor com álcool?
> O álcool está em falta, só temos gasolina e diesel.
Em fração de segundos o cérebro dispara: diesel? Isso é para motor grande. Álcool em falta? A festa acabou.
- Mas moço, como assim não tem álcool?
> É minha filha, tem 2 dias que não chega álcool, e nos disseram que a Petrobrás parou de liberar álcool.
- E tem previsão para retornar?
> Não, não tem previsão.
O olho fixa na marcação do painel no carro com a luz da reserva já acesa e delibera:
- Coloca 100 reais de gasolina, por favor.
> Ok, 100 de gasolina?
O cérebro trabalha em silêncio: é né, você reproduzindo essa conversa furada do dono do posto para justificar gasolina com esse alto preço e segurando álcool para nos próximos dias reajustar o preço absurdamente.

Nesse interim a pistola começa a trabalhar e libera gasolina no tanque. A máquina começa a liberar o som do líquido sendo injetado e em pleno movimento em direção de partida da bomba para o tanque do carro. Enquanto isso o diálogo vai tomando rumos que todos conhecem embora por mistérios lucíferos (olha a luz ou anjo aqui novamente) os responsáveis não se assumem e muito menos não se dignam à correção.
- Pois é moço, muita gente me disse em 2016 que o problema era a mulher?
> Como assim a mulher?
- O país era governado por uma mulher e por isso estava tudo caminhando para a falência. O problema é que quando ela estava governando a gasolina era 3,30 e não faltava álcool na pistola.
> Pois é.
- E agora?
> Agora é trazer ela de volta.
- Entendi. Obrigada. Vou ao caixa pagar.

3 de janeiro de 2018

Ao garçom os jilós. Ao coletivo meu projeto. À chuva meu "como"

Esses dias findantes de 2017 estava eu em um bar com os amigos, aliás, as amigas, para tomar água com limão e gelo e escutar a geração lá-lá (que ficou conhecida por Clube da Esquina). Nos organizamos assim: alguém chega antes e pega uma mesa farta para umas 10 amigas e vai lá, um marido gente fina da amiga retrô-vintage estilosa no cabelo look orange.;-)Descoladíssima.

Pois bem, a amiga dos cabelos livres e com cachos exaltados levemente amarelos (chamam de louro) chegou cedo e nos apanhou uma mesa na parte limite da cobertura anti-chuva, afinal, embora não sejamos açúcar, também não precisamos ficar ensopadas pós um 2017 de tanta merda com dinheiro público. Talvez tivesse começado aí a matéria da narrativa: o limite.

Fomos chegando em dupla, em trio, todas com suas doses de folie refinada. Tá certo que algumas amigas tem doses exageradas de loucura, assumo inclusive que por vezes me pergunto: uai, será que ela não é mesmo louca? essa fase dela é nova para mim, tão evidentemente não comum que me faz sentir a primeira das últimas jovens caretas aos 34 anos. Sou velha mesmo, oxalá velho sempre em mim.

Começamos a pedir ao moço as bebidas e a singularidade começou de cara: "Moço, por favor, uma caipirinha sem açúcar". A outra: "Para mim também, sem açúcar, igual a dela". Eu timidamente como uma velha criança: "Para mim uma água sem gás com gelo e limão, por favor". O moço anotou no papelzinho e saiu. Imediatamente perguntei para as loucas em doses aparentemente equilibradas: "Gente, caipirinha sem açúcar? Nunca vi isso. Vai virar água com pinga e limão". Uma respondeu: "Sempre pedi assim". A outra disse resoluta e tranquila: "Só colocar adoçante, eu faço isso". Pensei: Vixe, adoçante?! Mas vai lá, quem era eu para pensar na caipirinha sem açúcar tendo pedido água sem gás com limão e gelo. Cada qual com seus métodos. E vieram mais uma meia dúzia de caipirinhas sem açúcar, águas com limão e gelo, cervejas artesanais (transbordando glúten), porções de jiló frito maravilhosas e mandioca frita. E quem veio também para o show e diversão toda? A CHUVA. Reinando linda e maravilhosa, imperatriz carlota joaquina mineira.

Assim que a chuva chegou, o LIMITE que já não era mais a caipirinha sem açúcar deu vistas ao que tomei para mim como o signo mais direto da decadência da esquerda no Brasil. Vamos lá.

Um senhor na mesa ao lado estava territorializado na parte outra do limite que não era nem externa e nem interna, pois estávamos todos num deck do lado de fora do ambiente, embora a parte que lhe cabia no latifúndio daquele imóvel histórico cravado na história do bairro com nome intrigante (Fundinho, vê que nome primo) era no limite da cobertura que protegia as amigas da chuva. Pimba! O senhor começou a sentir a chuva e se pôs a movimentar puxando mesas e cadeiras para o nosso lado. Olhei para um lado havia uma cerca metálica que nos encerrava naquele lado do latifúndio, do outro lado mesas que espacialmente opostas a nós demarcavam a passagem dos garçons (igual ao filme "Dogville", onde não tem paredes mas todo mundo sabe bem as marcações espaciais, e sobretudo as marcações simbólicas).

E naquele imbróglio de mexe cadeira, puxa mesa, chuva cai, música toca alta, amigas riem e todo um misto de bar mineiro, eis que o senhor começa a nos pedir educadamente: "Vocês podem chegar a mesa para lá porque estamos molhando aqui?". Pensei: Uai, podemos, mas como? (questão indispensável para um cérebro que anda imerso em escrita acadêmica: o tal do 'Como". O ponto de partida para sapiar se alguma coisa funciona mesmo: Como! Se alguém algum dia colocar para você a questão do "Como", pode saber, essa pessoa não é do Bem, simplesmente porque ela é do Mundo, e quem é do mundo quer saber dos modos como as coisas se dão em vida, não para além da vida. Ops, aqui é texto de facebook e não de...). Para lá o latifúndio tem uma cerca metálica, para lá tem outras mesas ocupadas. Ingenuamente eu e outra amiga levantamos pensando algo assim: "uai, o show está atrasado, esse moço "Bem" intencionado está nos chegando para lá onde não há espaço, vamos levantar e ir embora".

Levantamos e perdidas no espaço, naquele espaço já molhado com a chuva, ficamos igual saco no ar, voando sem "quês" e "por quês"; mas aí o senhor "bem" intencionado chegou numa das amigas, uma amiga cuja dose tem variantes. O moço chegou dizendo: "Vai, arrasta sua cadeira para lá porque estamos molhando aqui". A amiga categórica (sei lá se na vibe do Kant): "Por que?". Respondeu o moço já em tom não cordial: "Dá para você se mexer porque estamos molhando aqui?!" Vixe, eu que era saco voando no ar sem nada entender, tive naquele momento a resposta para a minha questão do "Como". Disse a amiga: "Não! Não dá para eu me mexer. Aqui não há espaço para mudar mesas e cadeiras. Eu não vou me molhar para que o senhor não se molhe. Ali é o espaço do garçom passar, se eu arrastar vai atrapalhá-lo". O senhor cuja cordialidade tinha ficado nos idos de 2004 (conjecturo que após os primeiros meses de governo federal quando a esperança venceu o medo) soltou o mais objetivo signo de um período duro na história brasileira: "Foda-se o garçom!".

Ops... nessa hora eu já não era saco voando sem rumo, o "Como" já tinha respostas, as caipirinhas sem açúcar ficaram azedas, a água com limão ficou tóxica, a cerveja esquentou, a chuva aumentou, o show não começou e o jiló amargou. Discussões para cá, discussões para lá e entre os LIMITES e os SIGNOS me camuflei num cantinho da mesa, sentindo a chuva molhar minhas costas e em silêncio fui tomando goles de água e notas de alguns caracteres:

- o senhor era homem e falava umas coisas do discurso histórico de esquerda.

- nossa mesa era predominantemente de mulheres e falava de sei lá o quê, mas não de discurso representativo de uma tal coletividade, nem tampouco de altruísmos sociais forjados em projetos discursivos cujas práticas imperam repetição do mesmo.

- o garçom não sabia nada que estava acontecendo, mas naquele instante tornara-se algo que passava rasgando como limite numa discussão, cuja culpa era da chuva.

No fim disso tudo, umas amigas foram embora sem ver o show, outras como eu permaneceram mesmo que molhando. O senhor ficou resmungando ao lado, no mesmo instante na nossa mesa também tiveram resmungos e assim a noite continuou. Os músicos entraram para tocar as clássicas do Clube da Esquina e aos coros entoamos: "E lá se vai mais um dia".

O limite não era da cobertura anti-chuva, nem do açúcar ausente na caiprinha, o limite mesmo foi estreitado na contramão de uma miscelânea ao escutar alguém acusar minha amiga de curtir o show sem se preocupar com o outro enquanto este se molhava na chuva.

Ora, pois, eu quero ter convicção de que a frase do senhor de "bem" sobre o garçom tenha sido um equívoco da chuva cujas palavras não saíram de uma boca humana, assim como as armas do golpe político não tenham saído da própria esquerda. Quase ao final do show foi entoado o coro: "Fora Temer" e seguimos aparentemente felizes para 2018. Assim, vi as amplitudes que os limites diversos nos dão serem estreitadas e os convenientes serem imperados como clichês: "Pensar no outro". Nessa noite vi também que independente do lado, se você está tomando sua bebida e a chuva lhe incomoda, o outro jamais será um "garçom". Palavra que talvez nunca para mim, até então, tenha sido tão originalmente francesa.

Isso foi dia 30/12/2017 numa terra cujo nome histórico é também Sertão da Farinha Podre.