Dispositivos Coreográficos:
(des)posando efeitos de (des)controles
Por Carol Gomes
Doutoranda em Filosofia/UFPR
Profa. Filosofia IFTM
Palavras sobre um espetáculo para quem
não o viu e para os que viram com outras lentes
Talvez
um dos mais imponentes desafios do estarmos contemporâneos é não se fechar no
modelo longínquo clássico do par causa-efeito. A causa como fonte primeira,
fundante e por certo inquestionável como verdade. Isso não quer dizer que não haja
causa e que tudo é efeito, e que portanto o contemporâneo é um decalque caótico
e não emancipado do saber moderno. Não, a provocação é simples e despretensiosa.
É apenas começar a aceitar o óbvio como óbvio. Decompor as existências com base
no que temos delas, partindo disso que delas chamamos de efeitos. Como é que
tenho acesso à fala de uma pessoa, se não pelas palavras ou expressões que ela
emite? Não tenho acesso à causa, ao porquê imediato daquela fala. Parte-se dos
efeitos das palavras, dos gestos, das temperaturas e dos cheiros para daí
compormos a causa do que se passa entre essa quem me fala e essa pessoa quem
ouço. É isso. Os efeitos como o que de fato tenho acesso e através dos quais
tenho as existências, incluindo eu mesma. Nada novo o que digo, lá nos anos de
1600 um pensamento tal já nos ensinava isso, como ensinou a Nietzsche, Foucault,
Deleuze, por exemplo[1].
Pois
bem, a mim o espetáculo Dispositivos
Coreográficos, na apresentação de estreia e abertura do Festival Paralela
2018[2], trouxe justamente a previsibilidade
de viver como modo de existência óbvia. Ora, não há segredos, pulos do gato, magias
impenetráveis do pensamento e das criações artísticas. Há corpos e não por
acaso são esses os corpos do Provisório
Corpo – Grupo de Dança, sob direção e concepção de Ricardo Alvarenga. A
magnitude do espetáculo se deu lentamente, ou seja, foi crescendo do início ao
fim, um construto de efeitos cuja causa se completa ao término de cada bloco de
repetição. Causa como resultado, como produção, efeitos tomados de corpo em
corpo, como corpo a corpo ao longo do espetáculo enquanto criação mecânica e
maquínica.
Vi
corpos se fazendo dança de moléculas e em plasticidades, portanto biológicos.
Vi corpos em movimento como deslocamento contínuo de repetições espacializadas,
portanto físicos. Vi corpos como elementos distintos se implodindo juntos,
portanto químicos. Vi corpos grafitando o espaço infinito entre 1 e 1,0001...
dos palcos, internos e externos, portanto matemáticos. Vi corpos fêmeos,
machos, trans, negros, brancos, portanto políticos. Senti com os olhos os movimentos,
os repousos (embora tenham sido poucos), vibrações térmicas e auditivas,
portanto sensações.
Um espetáculo com 16 dançantes, entre dançarinas e dançarinos, começou com
alguns poucos no palco e os demais chegaram vindos dos corredores entre a plateia.
Cada corpo nesse instante já era mais que um corpo em forma estática, àquela
altura era movimento ritmando e desritimando moléculas, linhas e retas
abstratas da matemática, ondas de luz, matérias de som, relação entre movimento
e repouso continuamente, por isso corpo-dança. Os corpos-dança se colocavam
todos numa mesma série, melhor, num mesmo bloco de movimento repetitivo. Mas
veja bem, como toda repetição, poderíamos ter o repetitivo apenas como
infernal, o mesmo infinitamente sem parar. O corpo mecânico de articulação em
articulação reproduzindo o mesmo gesto: erguem as pernas, erguem os braços,
coluna ereta, sentido para frente, para traz, para cima, para baixo, e assim
uma reprodução marcada por sinalizações de tempo dadas num espaço indicado
mentalmente pelos próprios ensaios da produção coreográfica. Mas não, o que
parecia menor da dança, justamente essa repetição, implodiu cada corpo
individual afirmando uma menoridade específica de dançante por dançante conectados
uns aos outros. Em outros termos: o corpo individual que de maneira mecânica reproduzia
os movimentos, se conecta exatamente através da repetição com os outros
distintos corpos também individuados. É essa conexão, essa relação entre corpos
individuados e distintos que maquinicamente produzem um corpo agora sim maiorizado
numa noção comum estabelecida entre os corpos enquanto se davam as repetições. No
espetáculo, portanto, não é possível ver um grupo maior dançando sem ver cada
corpo na sua menoridade individuada, nem tampouco, é possível ver individual
sem o todo. A repetição dos movimentos mecânicos, avolumados na luz, ritmados
em matérias musicadas, revestidos de tecidos recortados e recosturados para
cada corpo impôs um maquinismo desposado dos controles de poder. O que havia de
comum produzido maquinicamente a partir de uma repetição mecânica, trata
justamente de uma causa produzida pelos próprios corpos. Veja, ‘causa
produzida’ pelos corpos, qual seja, o controle político de existências. Portanto,
nada mais contemporâneo e preciso em pleno 2018, um espetáculo cujos corpos desvestem
os dispositivos, ordinariamente invisibilizados como produções de controle. O
que Ricardo Alvarenga, os 16 corpos dançantes e toda a equipe de produção nos
deu, foi um desposamento do segredo das vigilâncias de controle a partir dos
seus efeitos nos corpos individuados sempre conectados nas sociabilidades.
Não
bastassem o mecânico e o maquinismo conectados realizando efeitos que implodem
como causa os controles políticos dos e nos corpos, Dispositivos Coreográficos avança e ao sair do quadrado do palco
italiano lança todos os corpos, veja bem, todos os corpos para fora do teatro. Que
operação maquínica é essa? Passados cerca de 30 minutos de espetáculo, entram
no palco alguns corpos rígidos estranhos ao bloco das repetições. Esses corpos
abrem as portas de metal do fundo do teatro, como que abrindo numa plasticidade
metálica as cortinas do palco visto do lado contrário, de fora para dentro,
embora estivéssemos todos do lado interno. Naquele instante o espetáculo nos
colocou contraluz de nós mesmos. Se antes éramos dançarinos no palco com a
plateia bem definida no seu lugar frontal do palco italiano, ao abrir as cortinas
metálicas, éramos todos naquele instante corpos docilizados assistidos por uma
tecnologia de captação de imagem: um drone. Sim, as cortinas se abriram e
imediatamente subiu um drone que filmava a todos, dançarinos e plateia. Vigilância.
Qual corpo se conectava repetidamente a quais outros corpos agora? Estávamos
todos na repetição, mecânica e maquínica. Éramos todos partes de uma produção
cujos dispositivos já não escondiam seus corpos. O drone se mostrou e nos
captou como efeitos, não bastasse, nos lançou como sínteses em imagens na
parede externa do próprio teatro. Enquanto dançarinos saiam do palco e nós, a
plateia, saíamos para a parte externa, quem nos via na parede externa captados
e imediatamente projetados como imagem? Quens corpos nos viagiavam?! Esses
minutos ainda parecem condensados em energias dos controles de poder. Quem nos
controla? Uma vez mais Dispositivos
Coreográficos desnudou a partir dos efeitos as causas produzidas dos
controles. A brandura dos nossos corpos conectados fabricando os controles como
causas resultantes de nós mesmos ao que chamamos razão humana emancipadora. Para
quais existências cultivamos tanto controle?
No piso
externo do teatro, de frente para o projeto arquitetônico do Niemeyer e nele
todos os corpos sendo projetados, visualizávamos marcações em amarelo no chão
que grafavam uma centralidade para os dançarinos. Nas laterais a estrutura
metálica com os refletores de iluminação circular, uma composição de luzes
coloridas com rodinhas girando dentro de uma grande roda (quase um Tempos Modernos com Carlitos sendo
engolido pelas traquinagens da fábrica), a música numa sintetização alucinante
que colocava em matéria os pixels dos digitais, o binário controlador estava no
cenário como música, como onda material alucinando os corpos nas séries de
repetições. Acima dos corpos, o drone com seu som tecnológico de uma engrenagem
que lembra muito um grande mosquito que vê tudo; mas veja lá, o mosquito vê,
porém o drone, vê, conserva, acumula e projeta as imagens. Uma coisa é sermos
vistos ininterruptamente por outras tantas existências (os outros seres vivos e
inorgânicos nos veem), outra coisa é fazer uso simbólico e portanto político do
que se vê. Estávamos todos vendo e todos nas suas individuações sendo vistos e
projetados instantaneamente.
Me perguntava
pela relação entre as séries de repetição dos dançarinos e a captação e
projeção das imagens de todos nós. Há também uma relação de repetição entre as imagens
quando do processo de captação, acumulação, sequenciamento e projeção dessas
imagens. O drone repetia esse processo escancaradamente no espetáculo. Um
desvelamento direto do controle. Há uma distância temporal que é preenchida por
acumulação simbólica (imagens acumuladas, lembranças) entre os atos do dispositivo
de captar, acumular, sequenciar e projetar. O que se coloca nos intervalos
entre cada um desses 4 atos é o que produz os controles!? Um dentre tantos
aspectos que o espetáculo desnudava evidenciou o dispositivo numa autonomia
política ao estabelecer relações entre os corpos dançantes e os corpos
espectadores. Se havia distinção até então, com a entrada do drone na cena,
todos passamos a personagens, estrategicamente captados, acumulados,
sequenciados e projetados, portanto, deliberadamente controlados.
Um
drone repete séries de captação dos instantes temporais, mecanicamente há um
movimento de sequenciamento de imagens, o famoso modelo do cinema de 24
fotogramas por segundo para nos dar uma imagem em movimento. Para além dessa técnica
mecânica, há ainda um maquinismo da tecnologia que se faz ao conectar a função
específica de cada parte do corpo-drone: as lentes ampliam, reduzem, aproximam,
distanciam, fecham ou abrem a cena. O diafragma e a velocidade com que abre e
fecha controla a quantidade de luz, portanto o realismo e o ficcionalismo na
profundidade da imagem e isso implica na multiplicidade de planos dentro de uma
mesma cena que remete à presença de infinidades dentro de uma única imagem.
Aqui então retornamos à relação produtora dos efeitos para com a causa. Se
inicialmente tomávamos os corpos-dança como os dispositivos de produção da
causa de controle, num segundo momento quando da virada do espetáculo que se
deu no ambiente externo, vimos um corpo-drone produzir essa causa controladora
a partir dos efeitos em relação dada nos e entre os corpos humanos (dançarinos
e público), bem como os corpos matéria de ondas de som, corpos energia de ondas
luminosas e grafias em roupas e marcações espaciais no chão.
Foto: Carol Gomes |
Desvelados
os efeitos produtores de causas de controle, Dispositivos Coreográficos, traz com corpos-dança uma estética do comum
construída do que se passa entre individuais na efetuação de um corpo-todo
seriado em repetições. É por isso que dentro das séries repetitivas, em vários
momentos escutamos gritos e inclusive visivelmente corpos se contorcendo como
se estivessem numa pane (como os androides-humanizados de Blade Runner: o caçador de andróides). Isso sim são as fissuras
dentro das repetições mecânicas e maquínicas de controle. Se concluímos que o
controle é fabricação de corpos conectados, não excluímos que essa própria
fabricação traz consigo o germe das panes, das fissuras, dos buracos sem fundo
ou das atonalidades de territórios desconhecidos dentro das geografias
mapeadas. No interior da repetição as diferenças atormentavam, dentro da dança
o movimento claramente definido como harmonia corporal trazia brechas e vácuos
para instantes quaisquer de quebras do controle. O corpo sozinho de um
dançarino aqui, outro ali, outro acolá, se contorcendo dentro da própria série
repetitiva era o suspiro do corpo dizendo que ele poderia muito mais, ao ponto
de em si mesmo desconhecer as forças resistentes e potentes do agir.
Dispositivos Coreográficos colocou corpos dançando,
ergueu corpos-dança, desposou dispositivos de controle como causas produzidas
dentro dos efeitos de corpos, portanto realizados e alimentados pelos
corpos-sujeitos assumidos por si mesmos como corpos-objetos controlados. Os
quens foram postos nos palcos, dentro e fora, do teatro e de nós mesmos. Vimos
e fomos vistos. Olhamos e fomos olhados. Movimentaram-nos na coreografia
daquilo que criamos como símbolo da emancipação humana, justamente para nos
confrontarmos frente a frente com os controles e a potência fissuradora do
poder de um corpo.