3 de janeiro de 2018

Ao garçom os jilós. Ao coletivo meu projeto. À chuva meu "como"

Esses dias findantes de 2017 estava eu em um bar com os amigos, aliás, as amigas, para tomar água com limão e gelo e escutar a geração lá-lá (que ficou conhecida por Clube da Esquina). Nos organizamos assim: alguém chega antes e pega uma mesa farta para umas 10 amigas e vai lá, um marido gente fina da amiga retrô-vintage estilosa no cabelo look orange.;-)Descoladíssima.

Pois bem, a amiga dos cabelos livres e com cachos exaltados levemente amarelos (chamam de louro) chegou cedo e nos apanhou uma mesa na parte limite da cobertura anti-chuva, afinal, embora não sejamos açúcar, também não precisamos ficar ensopadas pós um 2017 de tanta merda com dinheiro público. Talvez tivesse começado aí a matéria da narrativa: o limite.

Fomos chegando em dupla, em trio, todas com suas doses de folie refinada. Tá certo que algumas amigas tem doses exageradas de loucura, assumo inclusive que por vezes me pergunto: uai, será que ela não é mesmo louca? essa fase dela é nova para mim, tão evidentemente não comum que me faz sentir a primeira das últimas jovens caretas aos 34 anos. Sou velha mesmo, oxalá velho sempre em mim.

Começamos a pedir ao moço as bebidas e a singularidade começou de cara: "Moço, por favor, uma caipirinha sem açúcar". A outra: "Para mim também, sem açúcar, igual a dela". Eu timidamente como uma velha criança: "Para mim uma água sem gás com gelo e limão, por favor". O moço anotou no papelzinho e saiu. Imediatamente perguntei para as loucas em doses aparentemente equilibradas: "Gente, caipirinha sem açúcar? Nunca vi isso. Vai virar água com pinga e limão". Uma respondeu: "Sempre pedi assim". A outra disse resoluta e tranquila: "Só colocar adoçante, eu faço isso". Pensei: Vixe, adoçante?! Mas vai lá, quem era eu para pensar na caipirinha sem açúcar tendo pedido água sem gás com limão e gelo. Cada qual com seus métodos. E vieram mais uma meia dúzia de caipirinhas sem açúcar, águas com limão e gelo, cervejas artesanais (transbordando glúten), porções de jiló frito maravilhosas e mandioca frita. E quem veio também para o show e diversão toda? A CHUVA. Reinando linda e maravilhosa, imperatriz carlota joaquina mineira.

Assim que a chuva chegou, o LIMITE que já não era mais a caipirinha sem açúcar deu vistas ao que tomei para mim como o signo mais direto da decadência da esquerda no Brasil. Vamos lá.

Um senhor na mesa ao lado estava territorializado na parte outra do limite que não era nem externa e nem interna, pois estávamos todos num deck do lado de fora do ambiente, embora a parte que lhe cabia no latifúndio daquele imóvel histórico cravado na história do bairro com nome intrigante (Fundinho, vê que nome primo) era no limite da cobertura que protegia as amigas da chuva. Pimba! O senhor começou a sentir a chuva e se pôs a movimentar puxando mesas e cadeiras para o nosso lado. Olhei para um lado havia uma cerca metálica que nos encerrava naquele lado do latifúndio, do outro lado mesas que espacialmente opostas a nós demarcavam a passagem dos garçons (igual ao filme "Dogville", onde não tem paredes mas todo mundo sabe bem as marcações espaciais, e sobretudo as marcações simbólicas).

E naquele imbróglio de mexe cadeira, puxa mesa, chuva cai, música toca alta, amigas riem e todo um misto de bar mineiro, eis que o senhor começa a nos pedir educadamente: "Vocês podem chegar a mesa para lá porque estamos molhando aqui?". Pensei: Uai, podemos, mas como? (questão indispensável para um cérebro que anda imerso em escrita acadêmica: o tal do 'Como". O ponto de partida para sapiar se alguma coisa funciona mesmo: Como! Se alguém algum dia colocar para você a questão do "Como", pode saber, essa pessoa não é do Bem, simplesmente porque ela é do Mundo, e quem é do mundo quer saber dos modos como as coisas se dão em vida, não para além da vida. Ops, aqui é texto de facebook e não de...). Para lá o latifúndio tem uma cerca metálica, para lá tem outras mesas ocupadas. Ingenuamente eu e outra amiga levantamos pensando algo assim: "uai, o show está atrasado, esse moço "Bem" intencionado está nos chegando para lá onde não há espaço, vamos levantar e ir embora".

Levantamos e perdidas no espaço, naquele espaço já molhado com a chuva, ficamos igual saco no ar, voando sem "quês" e "por quês"; mas aí o senhor "bem" intencionado chegou numa das amigas, uma amiga cuja dose tem variantes. O moço chegou dizendo: "Vai, arrasta sua cadeira para lá porque estamos molhando aqui". A amiga categórica (sei lá se na vibe do Kant): "Por que?". Respondeu o moço já em tom não cordial: "Dá para você se mexer porque estamos molhando aqui?!" Vixe, eu que era saco voando no ar sem nada entender, tive naquele momento a resposta para a minha questão do "Como". Disse a amiga: "Não! Não dá para eu me mexer. Aqui não há espaço para mudar mesas e cadeiras. Eu não vou me molhar para que o senhor não se molhe. Ali é o espaço do garçom passar, se eu arrastar vai atrapalhá-lo". O senhor cuja cordialidade tinha ficado nos idos de 2004 (conjecturo que após os primeiros meses de governo federal quando a esperança venceu o medo) soltou o mais objetivo signo de um período duro na história brasileira: "Foda-se o garçom!".

Ops... nessa hora eu já não era saco voando sem rumo, o "Como" já tinha respostas, as caipirinhas sem açúcar ficaram azedas, a água com limão ficou tóxica, a cerveja esquentou, a chuva aumentou, o show não começou e o jiló amargou. Discussões para cá, discussões para lá e entre os LIMITES e os SIGNOS me camuflei num cantinho da mesa, sentindo a chuva molhar minhas costas e em silêncio fui tomando goles de água e notas de alguns caracteres:

- o senhor era homem e falava umas coisas do discurso histórico de esquerda.

- nossa mesa era predominantemente de mulheres e falava de sei lá o quê, mas não de discurso representativo de uma tal coletividade, nem tampouco de altruísmos sociais forjados em projetos discursivos cujas práticas imperam repetição do mesmo.

- o garçom não sabia nada que estava acontecendo, mas naquele instante tornara-se algo que passava rasgando como limite numa discussão, cuja culpa era da chuva.

No fim disso tudo, umas amigas foram embora sem ver o show, outras como eu permaneceram mesmo que molhando. O senhor ficou resmungando ao lado, no mesmo instante na nossa mesa também tiveram resmungos e assim a noite continuou. Os músicos entraram para tocar as clássicas do Clube da Esquina e aos coros entoamos: "E lá se vai mais um dia".

O limite não era da cobertura anti-chuva, nem do açúcar ausente na caiprinha, o limite mesmo foi estreitado na contramão de uma miscelânea ao escutar alguém acusar minha amiga de curtir o show sem se preocupar com o outro enquanto este se molhava na chuva.

Ora, pois, eu quero ter convicção de que a frase do senhor de "bem" sobre o garçom tenha sido um equívoco da chuva cujas palavras não saíram de uma boca humana, assim como as armas do golpe político não tenham saído da própria esquerda. Quase ao final do show foi entoado o coro: "Fora Temer" e seguimos aparentemente felizes para 2018. Assim, vi as amplitudes que os limites diversos nos dão serem estreitadas e os convenientes serem imperados como clichês: "Pensar no outro". Nessa noite vi também que independente do lado, se você está tomando sua bebida e a chuva lhe incomoda, o outro jamais será um "garçom". Palavra que talvez nunca para mim, até então, tenha sido tão originalmente francesa.

Isso foi dia 30/12/2017 numa terra cujo nome histórico é também Sertão da Farinha Podre.

Nenhum comentário:

Postar um comentário