13 de março de 2011

Dança noturna na manhã

Não se poderia furtar de narrar o que ainda não se sabe se efetivamente viu ou fora visto no pensamento.

Quinta-feira pós carnaval, lá pelas tantas das 8h. Manhã chuvosa e vento frio. Lá se ia um ser humano caminhante, pensativo, talvez até ainda dormindo, entremeando os sonhos conscientemente caóticos; até que 'pimba', ao erguer a cabeça avista a representação viva da malandragem.

Caramba! Um grupo canil de malandros. Eram vários, alguns de pêlo preto, outros pêlo caramelo. Uns pequenos, outros grandes. Alguns com latido forte, outros com latido preguiçoso. Algo em comum: a disposição impositiva pós madrugada de carnaval.

O olho via e só enxergava um amontoado de cachorros mascarados. Foi como se eles sintetizassem os vários dias da folia, pelos que gozaram aos seus modos a festa e pelos que criticaram, também aos seus modos; o fato era que naquela marcação pouco antes das 8h os cachorros ainda pulavam as marchinhas pelas vias. Claramente se enxergou aquelas fitas coloridas perpassando o grupo, enxergou-se ainda máscaras medonhas, outras divertidas, inspiradas. Engraçado como se dividiam em dupla ou trio, pouco se reuniam no total para a caminhada... Ah! Começaram a malandrar. Sim! Correndo atrás dos carros e motos. Os transeuntes não lhes interessavam, como se não existissem, e olha que eram muitos que passavam, afinal, o espaço onde malandravam era institucionalizado, para não dizer letrado, sendo que os passantes tratavam-se de professores, alunos, uns mais professores que outros, outros menos alunos que outros, e uns tantos proletários, e outros nada proletários, afinal, a luta de classes já ficara para o sr. tempo; enfim, todos invisíveis para os cães malandros, ou não, malandros cães.

O que prendeu a atenção tratava-se justamente, de modo excessivamente irônico, da liberdade malandra que impregnava os cachorros. Estavam nada preocupados com o som 'gritado' dos latidos ao correr desafiadoramente atrás dos carros. Pouco importava se havia aula, se a vigilância logo os expulsariam. Fizeram as alheias memórias reviverem madrugadas fragmentadas no tempo em que se saía das noitadas e as caminhadas de retorno ao ninho por vezes eram longas, daí as amizades mostravam-se cúmplices, os amores mostravam-se únicos no romantismo das mãos dadas noite à fora, e as noites mostravam-se ímpares na pureza das energias livres...

Foi assim que por minutos os cachorros expressavam não um hábito da raça, muitos machos atrás da fêmea (explicação conveniente à biologia), antes, expressavam corpos de frente para o nascimento do dia, contudo ainda imersos na energia da noite. Pronto! Indiferentes à classificação animal, estavam a exteriorizar um fio invisível que os entorpeciam e instintivamente faziam-se malandros. Gargalhavam alto a gozar dos carros, ignoravam propositadamente os humanos, ironizavam os vigilantes, agrediam o perigo mostrado pela velocidade das motos... as máscaras carnavalescas transfiguravam tudo e todos, ora monstros, ora belos humanos, ora celebridades, ora ora ora...

O pensamento orientado perguntava-se: O que é isso? Imediatamente um cachorro deu por correr, majestosamente, e do latido a resposta: Isso nada é porque não é para ser!

Sim, claro. Nada é para ser no movimento dos cachorros numa manhã pós carnaval... e nem há de ser, mesmo que a mente queira e delibere que seja. Tinha algo nos cachorros? Sim, tinha! Eis que não cabe explicar metodicamente, porque ao escolher pela crença de que nem todas sucessões são traduzidas, a validade não se mostra num processo unicamente lógico, se mostra pelo acontecimento, pelo desdobramento do foi-sendo. Não, não... por aqui maquinaria do pensamento por ele mesmo.

A contação é simples, relato dos cachorros latindo carros e motos numa quinta-feira nas ruas de uma universidade enquanto o 'olhante' caminhava rumo às atividades proletárias.

A malandragem enxergada perdeu-se no matutar pensante na busca da resposta se houve ou não a dança canina pela manhã... posto que existir não se mostrou a questão primeira, antes, o sucedido ou não.

Carol Gomes