Adendos a uma pólis separatista e cadavérica
Passados 3 anos da inauguração, eis que recentemente adentrei na tão
publicitada Cidade Administrativa do governo estadual das Minas Gerais. Quanta
frieza medonha passou-me na espinha!
Fiquei dias e dias pensando sobre esse ocorrido dispensável na vida de
uma reles pessoa que não nutre pretensões de dominar o mundo. Em sintonia com a
famosa: “Viveria muito bem sem isso”.
Pois bem, calculada uma previsão de tempo necessário para chegar à
pomposa sede do Monsieur Anastasia e cia Neves, bem como lançar no mapa a rota
mais econômica, carreguei o celular, coloquei a blusa de frio (afinal era um
dia chuvoso), passei um batom para amenizar a ‘cara’ de pessoa não requintada e
me joguei na rua. Parte do caminho fiz a pé até chegar num ponto de informações
para turista. De posse da instrução para ‘tomar’ o ônibus em frente ao Parque
Municipal, segui na empreitada.
Coitadinha dessa romântica aos moldes do XXI, não imaginava que mofaria
no ponto de ônibus nada menos que 1 hora. O ônibus?! o tal SE02, linha
executiva específica para a tal Cidade da burocracia. Atente-se: custo para o
passeio turístico assombroso: R$ 5,00. Isso mesmo, um cidadão que necessite ir
à sede do governo resolver questões oficiais, será obrigado a desembolsar R$
10,00 exclusivos para transporte. Isso porque em Minas Gerais de certo que a
população goza de nado borboleta em dinheiro. R$ 10,00 se quiser voltar para a
cidade de BH, mas se por acaso se encantar com a cidade do governo e por lá
ficar, ou, se enfartar de nervos e de lá mesmo partir para o cemitério, o custo
será os R$ 5,00 apenas da ida.
Na confusão deliciosa da Av. Afonso Pena, já com as pernas bambas de
ficar em pé e com a visão vesga de tanto fixar letreiro dos ônibus, visualizo o
tal SE02. A mente já mendigando piedade comemora: “Alegria, alegria, SE02, sou
feliz!”. Piedade meu povo, assim também tem sido os golpes do Estado, a
sujeição do indivíduo a situações tão bizarras que o coitado passa de fato a se
enxergar como tal e mendigar momentos mesquinhos de uma esdruxula alegria. Onde
já se viu comemorar e sentir-se alegre por ver o ônibus SE02 do trajeto para um
túmulo burocrático?!
Já previa a empreitada do dia, porque, claro, construíram a tal Cidade
no caminho entre aeroporto e BH, de modo que a Cidade concreto seja também um
ponto turístico, tal qual um lego gigante erguido com dinheiro público.
Inúmeras vezes percorri o caminho de acesso do aeroporto para a capital, e ao
ver a sede do governo me perguntava ingenuamente: “Cadê as árvores?”. Quanta birra tenho dos tais coqueiros,
palmeiras, sei lá que diabos é aquilo
que virou praga em projeto paisagístico. De longe nem imaginava que no dia de
uma visita fatídica, o susto e a repulsa estomacal seriam incontroláveis.
Continuando o trajeto do SE02, lentamente imerso no trânsito de
capital, observei o luxo do ônibus, li e reli o quadro de horários que
anunciava tempo médio de espera nos pontos de 30 minutos (mentira descarada!),
assisti um pouco da TV com propaganda imbecil (com justificativa, afinal,
estava eu indo para ao encontro de um feito imbecil que só depois de lá chegar
eu saberia). A viagem do centro de BH até a Cidade Administrativa demorou uns
40 minutos. Caramba, fiquei pensando nos funcionários que fazem o percurso
diariamente. Ou seja, pagam pelos caprichos de políticos com sistema
neurológico suspeito.
Saí da Cidade de Belo Horizonte e cheguei à Cidade Administrativa. Sim!
São cidades diferentes, e sem pudores, tenho comigo que essa diferença
fundamental figura dentre os objetivos principais dos mandantes executores do
feito: separação clara e distinta (afinal, cartesianamente e aludindo a uma
amiga: “a bestialidade é a coisa mais bem distribuída entre os homens”), BH é
uma coisa e Cidade Administrativa é outra, aliás, Cidade Administrativa é uma
coisa e o resto é o resto. Ok?!
Chegando na pólis
administrativa mineira, antes mesmo de descer do ônibus coletivo, iniciaram os
sustos: 1º suspiro enfartídico, o
estacionamento de funcionários e visitantes fica a uns bons quilômetros até os
prédios. Pensei: “o povo anda isso aqui todo dia no sol queimando o couro
cabeludo? Não, não, o governo paga um transporte interno para o acesso do
estacionamento aos prédios. Hum, entendi!
2º suspiro cabulento, o
indivíduo anônimo que chega no local tem que adivinhar qual direção seguir e
onde estará o carimbo e papel que necessita, porque não tem placas
identificando os órgãos, nem tampouco mapas de localização, um mínimo que eu
esperava, porque se é para ser shopping, então que seja com deveras
competência. Se tinha isso por lá, estava escondido, porque antes de cutucar o
povo para pedir informação, procurei guerreiramente por painéis de informação.
3º suspiro brochante: cagaram na cabeça do Niemeyer, a energia
que rola na Cidade Administrativa é de morte total, frieza, afetos aniquilados,
um túmulo! O arquiteto que projetou o belíssimo Edifício Niemeyer na Praça da
Liberdade em BH mexeu no túmulo ainda tão fresco e deu dor de barriga com essa
Cidade burocrática. Certeza!
Adentrei ao recinto e puuu!!! Protocolo de segurança de sistema
prisional: Documento de identidade, registro de digital, foto e registro do
motivo da visita. “Visita é o caramba, estou aqui por obrigação, para pegar um
documento”, pensei enquanto olhava para a recepcionista que digitava e fazia as
perguntas.
A recepcionista registrava minha presença de tudo quanto era modo, e
enquanto isso, ia eu observando vários funcionários terceirizados, seguranças
para todo canto e catracas de acesso liberadas apenas com crachás. Fiquei
pensando: “Provavelmente a premissa de recepção aos indivíduos é: todo mundo é pobre
bandido ou manifestante baderneiro, evite o acesso dessa gentalha a todo custo”.
Feitos os registros, a moça devolveu minha carteira de identidade e um
crachá de visitante e disse: “Com esse crachá você será liberada para entrar no
prédio e ter acesso à sala onde precisa ir”. Isso mesmo, tudo quanto era mexida
da perna eu deveria passar o crachá em um painel de identificação.
Segui a caminhada, com a cara de matuta com armas apontadas de todo
lado, seguranças olhando com cara de “vou te estrangular se você sair do
protocolo”. Nem o elevador era normal, não bastava apertar qualquer um, tive
que apertar um botão central que aciona todos os elevadores, sendo que o painel
avisa qual elevador você deve entrar. “Vixe!”, pensei, “o meu elevador vai ter
uma bomba para me eliminar do planeta, sou pobre e manifestante de nascença”.
Cheguei ao andar devido. Outra recepção. Agora um moço que mostrou com
o dedo para onde deveria caminhar e disse ao final: “Passe seu crachá no sensor
do painel ao lado da porta para que a mesma abra”. Soltei mais um “Vixe!”.
Entrei num recinto enorme todo recortado por mesinhas com computadores
e impressoras em pontos estratégicos com estilo ‘disco voador’ de tão avançadas.
A imagem cinematográfica que veio à mente foi, indubitavelmente: “um criadouro
de suínos, agência de notícias ou galpão de telemarketing”. A imagem mostrou-se
fiel, afinal, o que tem feito a esfera estadual dos poderes?! Se não propagandas,
falatórios vazios, porcarias de chiqueiro em processo de engorda?!
Caminhei entre algumas mesas e cheguei à devida que disponibilizaria o
documento necessário, claro, com carimbo e assinatura, porque era apenas isso
que interessava; não importava quem assinaria, mas por formalidade, a
assinatura era indispensável. Fui informada pela mesa vizinha que naquele
instante o habitante da mesa não estava, pois presenciava uma comemoração e
sugeriu que eu aguardasse. Sugerido e cumprido, afinal, a mendiga por documento
oficial ali era eu, ou seja, eu que aguardasse ou me estrepasse. E por favor,
sem fazer manifestação, não poderia esquecer de todos os registros que foram
feitos, com foto e digitais. Qualquer tom mais alto e minha vida seguiria em
dias de sol quadrado.
Aguardei uns 10 minutos em um sofá de corredor de frente para uma
super-mega impressora que cuspia, cuspia oficialidades a serem assinadas. “Tadinha
dessa existência, só cospe porcaria”. 10 minutos delirando na pólis burocrática e consegui o que
precisava. Saí ofegante, querendo sumir daquele lugar com energia de túmulo
carimbado e assinado. No caminho de saída, protocolo mantido, “passa crachá,
abre porta e libera elevador”. Na caminhada topei com deputado e prefeito sonorizando
falatórios no corredor, com seus bigodes lindos e ternos impecáveis, afinal,
nos criadouros, vendem-se a aparência do que vai para as prateleiras da
indústria alimentícia que capricha nos venenos.
Depois de sair do prédio, perguntei onde conseguiria tomar um café,
afinal, foram mais de 3 horas desde aguardar o ônibus até a espera pelo
documento. Indicaram um prédio chamado Centro de Convivência. Pronto, já tinha
escutado esse nome em outro espaço público, e que na verdade funciona por
contrário, o lugar onde não se convive. Ao entrar, confirmei a desconfiança
inicial, lá estava eu em um shopping, com lojas, bancos e praça de alimentação.
Quanta feiura tudo aquilo. Quanta artificialidade.
Pedi um café e um pão de queijo que me custaram R$ 6,00. Ou seja, pobre
que precisa dos serviços oficiais do governo mineiro precisa somar aos R$ 10,00
do transporte os R$ 6,00 de alimentação.
Enquanto tomava o café, sentia o vento frio e úmido que passava por
entre o concreto com janelas espelhadas. Titubeante foi meu pensamento entre
uma aparente beleza arquitetônica e a enunciação da morte do Estado, cujo
cadáver continua sendo alimentado por autoridades fantasmagóricas e violentas.
Que a arte não esteja relacionada, permanentemente com o belo, isso me
é comestível, mas naquela ida à Cidade Administrativa e diante da edificação de
um projeto propagandeado como sendo de autoria do Niemeyer, senti um mal estar
estomacal que travou a respiração. Sentindo a inexistência de pulsões,
visualizando em ausências o massacre de vidas e exploração de indivíduos,
experimentei, impositivamente uma repulsa a tudo aquilo, repulsa por todo
aquele concreto, por todas aquelas palmeiras artificiais, falseantes de
natureza. Deixei o café e o pão de queijo por terminarem e procurei imediatamente
a parada de ônibus.
A máquina fotográfica que estava na bolsa, emitiu indisposição para
qualquer exposição, não haveria naquela pólis
cadavérica nenhum instante aberto aos encontros de luzes para as lentes. Não
queria reter nada, não queria ampliar nada daquele lugar.
Avistei o ônibus parado para o embarque, corri muito para alcança-lo e não
precisar aguardar nenhum minuto naquele lugar. Senti horror, enjoo, repulsa e
desprezo por tudo aquilo.
Em fotografia não fui tomada pelo desejo do registro, mas em
pensamento, o fantasma da Cidade Administrativa tem me rondado. Dias e dias
ruminando sobre o que há revelado como não dito mas expresso nessa pólis da burocracia?
Ali, há uma concentração do poder institucionalizado que aumenta consideravelmente
os gastos com manutenção. Aumenta-se o quantitativo de segurança. Aumenta-se o
gasto com iluminação, refrigeração, transporte, contratação de terceiros.
Gastos astronômicos para a construção dos prédios, enfim... Mas esses gastos
são complementares, porque, impõe-se, efetivamente, o afastamento do poder
público da sua raiz pública. O Estado tem dono, suas salas não são de acesso e
não devem ser. A máxima é proteger o Estado do povo.
Veja-se em números a propaganda da Cidade Administrativa inaugurada em
2010: 270 mil m² construídos. Valor da obra divulgado em mais de 1 bilhão.
Número de pessoas que trabalham diariamente somam 17 mil. Ora, eis uma Cidade
criada exclusivamente para separar: vida e burocracia, aliás, uma Cidade para
submeter as cidades, culturalmente diversas com poderes anônimos e mascarados anteriores
ao institucional.
Não especialista confessa que pretendo permanentemente ser, ouso
desconfiar que qualquer mando racionalizado em planificações, concluiria que a
construção da tal Cidade Administrativa não representa avanço nas rotinas, quiçá
economia nos gastos com manutenção. A concepção e execução dessa estrutura
atende, exclusivamente, interesse político muito bem fundamentados em vaidades
ascéticas de superioridade e dominação, para não falar em distúrbio psicológico
por conquista de poder.
Nosso tempo continua mostrando cotidianamente que a centralização de
quaisquer ações finda em fracasso, diga-se lá concentração físico-estrutural do
poder institucional. Mas tudo bem, no meu país ainda as razões são diversas,
como pretensa origem do ‘ser brasileiro’, ainda que essas razões por vezes
custe muito caro para milhões que não tem qualquer pretensão por poder.
É indispensável que aqui a Cidade Administrativa seja lida como
representação do governo estadual de Minas Gerais enquanto instituição, por
isso, nenhuma das ironias são remetidas a servidores, funcionários,
estagiários, enfim, aos seres individuados que habitam a tal Cidade, o texto
tem sim o propósito de uma crítica política, anarquizada, que desde longínqua data
encontra na autora uma crítica à existência da esfera estadual dos poderes, e que
por sinal, grito pelo fim desta.
Carol Gomes