18 de janeiro de 2010

O Casamento da Lua
Vinícius de Moraes*

 O que me contaram não foi nada disso. A mim, contaram-me o seguinte: que um grupo de bons e velhos sábios, de mãos enferrujadas, rostos cheios de rugas e pequenos olhos sorridentes, começaram a reunir-se todas as noites para olhar a Lua, pois andavam dizendo que nos últimos cinco séculos sua palidez tinham aumentado consideravelmente. E de tanto olharem através de seus telescópios, os bons e velhos sábios foram assumindo um ar preocupado, e seus olhos já não sorriam mais; puseram-se, antes, melancólicos. E contaram-me ainda que não era incomum vê-los, peripatéticos, a conversar em voz baixa enquanto balançavam gravemente a cabeça.

É que os bons e velhos sábios haviam constatado que a Lua estava não só muito pálida, como envolta num permanente halo de tristeza. E que mirava o Mundo com olhos de um tal langor e dava tão fundos suspiros – ela que por milênios mantivera a mais virginal reserva – que não havia como duvidar: a Lua estava pura e simplesmente apaixonada. Sua crescente palidez, aliada a uma minguante serenidade e compostura no seu noturno nicho, induzia uma só conclusão: tratava-se de uma Lua nova, de uma Lua cheia de amor, de uma Lua que precisava dar. E a Lua queria dar-se justamente àquele de quem era a única escrava e que, com desdenhosa gravidade, mantinha-a confinada em seu espaço próprio, usufruindo apenas de sua luz e dando azo a que ela fosse motivo constante de poemas e canções de seus menestréis, e até mesmo de ditos e graças de seus bufões, para distraí-lo em suas periódicas hipocondrias de madurez.

Pois não é que ao descobrirem que era o Mundo a causa do sofrimento da Lua, puseram-se os bons velhos sábios a dar gritos de júbilo e a esfregar as mãos, piscando-se os olhos e dizendo-se chistes que, como toda franqueza, não ficam nada bem em homens de saber... Mas o que se há de fazer? Frequentemente, a velhice, mesmo sábia, não tem nenhuma noção do ridículo nos momentos de alegria, podendo mesmo chegar a dançar rodas e sarabandas, numa curiosa volta à infância. Por isso perdoemos aos bons e velhos sábios, que se assim faziam é porque tinham descoberto os males da Lua, que eram males de amor. E males de amor curam-se com o próprio amor – eis o axioma científico a que chegaram os eruditos anciãos, e que escreveram no final de um longo pergaminho crivado de números e equações, no qual fora estudado o problema de crescente palidez da Lua.

 Virgens apaixonadas, disseram-se eles, precisam casar-se urgentemente com o objeto de sua paixão. Mas, disseram-me eles ainda, o que pensaria disso o desdenhoso Mundo, preocupado com as suas habituais conquistas? O problema era dos mais delicados, pois não se inculca tão facilmente, em seres soberanos, a idéia de desposarem suas escravas. Todavia, como havia precedentes, a única coisa a fazer era tentar. Do contrário operar-se-ia uma partenogênese na Lua, o que seria em extremo humilhante e sem graça para ela. Não. Proceder-se-ia a uma inseminação artificial, e, uma vez o fato consumado, por força haveria de se abrandar o coração do Mundo.

 E assim se fez. Durante meses estudaram os homens de saber, entre seus cadinhos e retortas, e com grande gasto de papel e tinta, o projeto de um lindo corpúsculo seminal que pudesse fecundar a Lua. Um belo dia ei-lo que fica pronto, para gáudio dos bons e velhos sábios, que o festejaram profusamente com danças e bebidas, tendo havido mesmo alguns que, de tão incontinentes, deixaram-se a dormir no chão de seus laboratórios, a roncar como pagãos. Chamaram-no Lunik, como devia ser. E uma noite, em que o Mundo agitado pôs-se a sonhar sonhos eróticos, subitamente partiu ele, o lindo corpúsculo seminal, sequioso e certeiro em direção à Lua, que, em sua emoção pré-nupcial, mostrava com um despudor desconhecido nela as manchas mais capitosas de seu branco corpo à espera. Foi preciso o Vento, seu antigo guardião, escandalizado, se pusesse a soprar nuvens por todos os lados, com toda a força de suas bochechas, para encobrir o firmamento com véus de bruma, de modo a ocultar a volúpia da Lua expectante, a altear os quartos nas mais provocadoras posições.

 Hoje, fecundada, ela voltou finalmente ao céu, serena e radiosa como nunca a vira dantes. Pela expressão com que me olhou, penso que já está grávida. Ou muito me engano, ou amanhã deve estar cheia.

* Em: Para viver um grande amor. Livraria José Olympio Editora. RJ/RJ. 1976

1 de janeiro de 2010

Num dois mil e nove que permanece e que não fica...
Num dois mil e dez que não vem e que já estava no que não ficará...


“Há um minuto do mundo que passa... não o conservamos sem nos transformamos nele [...] As grandes paisagens têm, todas elas, um caráter visionário. A visão é o que do invisível se torna visível... a paisagem é invisível porque quanto mais a conquistamos, mais nela nos perdemos. Para chegar à paisagem, devemos sacrificar tanto quanto possível toda determinação temporal, espacial, objetiva; mas este abandono não atinge somente o objetivo, ele afeta a nós mesmos na mesma medida. Na paisagem, deixamos de ser seres históricos, isto é, não temos memória, nem mesmo para nós na paisagem. Sonhamos em pleno dia e com os olhos abertos. Somos furtados ao mundo objetivo mas também a nós mesmos. É o sentir.”
(o falsário do Deleuze valendo-se de Cézanne, QPh? p.220)


“Ele (o artista) viu na vida algo muito grande, demasiado intolerável também, e a luta da vida com o que a ameaça, de modo que o pedaço de natureza que ele percebe, ou os bairros da cidade, e seus personagens, acedem a uma visão que compõe, através deles, perceptos desta vida, deste momento, fazendo estourar as percepções vividas numa espécie de cubismo, de simultanismo, de luz crua ou de crepúsculo, de púrpura ou de azul, que não têm mais outro objeto nem sujeito senão eles mesmos [...] chama-se de estilos (artísticos) essas visões paradas no tempo e no espaço.”
(o falsário do Deleuze valendo-se de Giacometti, QPh? p. 222)


“O escritor torce a linguagem, fá-la vibrar, abraça-a, fende-a, para arrancar o percepto das percepções, o afecto das afecções, a sensação da opinião – visando, esperamos, esse povo que ainda não existe. Minha memória não é amor, mas hostilidade, e ela trabalha não para reproduzir, mas para descartar o passado... Que queria dizer minha família? Eu não sei. Ela era gaga de nascença e contudo tinha algo para dizer. Sobre mim, e sobre muitos de meus contemporâneos, pesa a gagueira de nascença. Aprendemos, não a falar, mas a balbuciar, e é só ouvindo o ruído crescente do século, e uma vez lavados pela espuma de sua onda mais alta, que nós adquirimos uma língua.”
(o falsário do Deleuze valendo-se de Mandelstam, QPh? p. 228)


“O atelier de Elstir me apareceu como o laboratório de uma espécie de nova criação do mundo, onde, do caos em que estão todas as coisas que vemos, ele havia tirado, pintando-os sobre diversos retângulos de tela que se achavam colocados em todos os sentidos [...] raros momentos em que se via a natureza tal como é, poeticamente, desses momentos é que era composta a obra de Elstir. Uma das metáforas mais freqüentes nas marinhas que tinha consigo naquele momento era justamente a que, comparando a terra ao mar, suprimia qualquer demarcação entre ambos [...] No primeiro plano da praia, o pintor soubera habituar os olhos a não reconhecerem fronteira fixa, demarcação absoluta, entre a terra e o oceano. Homens que lançavam barcos ao mar corriam nas ondas como sobre a areia, a qual, molhada, refletia já os cascos, como se fosse água. Nem o próprio mar subia regularmente, mas seguia os acidentes da costa, que a perspectiva chanfrava ainda mais, tanto que um navio em alto mar, meio oculto pelas obras avançadas do arsenal, parecia vogar no meio da cidade; mulheres que apanhavam mariscos nas rochas, como estava cercadas de água e devido à depressão que, após a barreira circular das rochas, afundava a praia até o nível do mar, pareciam estar num gruta marinha encimada de barcos e vagas, aberta e protegida no meio das ondas miraculosamente afastadas [...] o esforço de Elstir para não expor as coisas tal como sabia que eram, mas tem função das ilusões ópticas que formam a nossa visão inicial, o tinha levado integralmente a por em evidência alguma dessas leis de perspectiva, que então chocavam mais porque era a arte que primeiro as revelava.”
(Proust, À Sombra das Raparigas em Flor p. 326/327)


 Assim festejo a passagem artificial, porque a não artificial é diária...
Viva 2009 que se fará, sem dúvida, pulsante nas tantas páginas seguintes...
Viva 2010! Venha transbordando de Filosofia e Arte; não menos Paz...


  Carol Gomes