31 de dezembro de 2011

Um sabor Cordeiro para uma lembrança que chega atravessando...

Em pontos segue um relato pouco fidedigno aos fatos, embora real.

Pontuação primeira
Já final de tarde, inesperadamente foi chegando um bronzeado pelo Sol, barba branca, esguio, timidez sobressalente. Para a criança que apontava suas 13 unidades viventes em marcações de cronos, tratava-se de um fato; de há muito esperado. Em certo, um universo novo chegava junto da mochila de coro surrada, suja das andanças roceiras.

Duas gerações separadas por estradas sinistras da Vida. Um breve e baixo ‘Olá’ marcava o encontro. Claro que para ambas (gerações) estava posto, era aquilo e tudo o mais que haveria de vir, a admiração recíproca que anos depois se manteria em silêncio brilhante.

A convivência de dias breves contados na folhinha não filtrou como barragem o encontro, entre 1917 e 1983. Desde então, seguiu-se uma parceria, de longas conversas, histórias e estórias fiadas, tal qual mestres fiandeiros. Sim, a criança havia muito de aprender, caminhar pela roça e usar o famoso estilingue, compreender a utilidade da espingarda, o significado predador na caça ao veado, ao bandeira (isso, o tamanduá). Dos tantos aprendizados, como o caminhar da cidade para a roça, no Sol, carregando a moringa de água e a mochila de couro surrada, seguiu-se o inesquecível prazer do cultivo de melancias. Muito mais que um hábito de plantador, para a criança, tratou-se de magia. Adentrar a cerca que marcava o limite da terra e de imediato iniciar um dos tantos rituais do roceiro, aquele de dar-se à sua roça, ao plantio do sustento.

Como fotografia, certamente se teria a bela imagem em cores reveladas num verde na parte inferior da fotografia, uma luz intensa de três horas da tarde, dois ─ um velho e uma criança, agachados no meio da plantação.

Como foto, indiscutivelmente, haveria de passar o ensinamento dos que vivem, uma Vida vibrando tempos reencontrados.

Como cinema, talvez, páginas da literatura esvoaçantes. A criança como mágica invadida pelo aprendizado de receber da natureza o momento certo de colher a fruta; duas batidas na melancia, que soando oco, expressa: ‘Sim, posso ser colhida’.

Bem que do outro, do velho, quiçá havia o rodeio de conjecturas sobre a criança vinda da cidade. Hábitos diferentes, noções ausentes sobre a terra, sobre os animais, sobre a cantoria dos pássaros, sobre a dureza do sertanejo do ‘interior-do interior’ das Minas... das beiras de rio entre João Pinheiro e Pirapora; mas em certo, ele sabia que ali estava a origem daquela criança, estranhada com tanta novidade.

Do terreiro em frente à casinha de chão batido, o velho re-via, outras crianças correndo, brincando, fartando-se com a diversidade frutífera. Naqueles dias, ele via em outras cores, crianças das suas crianças de 60 e 70. Ele via, duas gerações, de certo teve dias de costuras temporais, como que vendo o tempo caminhando em matéria... e da criança que tivera sido na beira dos rios, íntimo à vida indígena, agora ensinava à continuidade tão diferente, o convívio com as galinhas de angola. Ensinava, entre muitas brincadeiras, a de jogar cartas para que o tempo passasse em partilha, em coletivo, afinal, na roça, não se joga cartas sozinho, há sempre um parceiro. E entre as gerações, ficaria a pergunta sobre a passagem do tempo: por que passar o tempo nas cartas?

A manhã amanhecia bem mais cedo que as manhãs da cidade. O café no fogão à lenha, o pão de dias anteriores levados da padaria da cidade, enquanto que um bolo de fubá em minutos sairia quentinho. Assim se deu o aprendizado do café, associação que se seguiu anos, tanto quanto a clássica frase do velho: “Eita café doce, café de mulher apaixonada”.

Tempo corrido, múltiplos fluxos, inexplicáveis curvas, e aquela criança sente a ressonância dos dias de 1996 no choroso-alegre som da viola caipira. Como relato-recontado, imerso na magia descompromissada com qualquer verdade postulada de palavras, atravessa como que guiada pelo vento a lembrança do velho, do velho Cordeiro, vivificadas em trechos cantados na voz daquele que repinta as modas da viola caipira.

Conhecer as manhas
E as manhãs
O sabor das massas
E das maçãs
É preciso amor
Pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir
[Tocando em frente; Renato Teixiera e Almir Sater]


Pontuação segunda
O velho que outrora recebera a criança, fora, em tempos outros, recebido pela criança, já não tão criança, na cidade grande, na sua grande cidade. O velho que então marcara pelo uso de roupas surradas, botina sempre suja, mostrava-se na cidade com camisa e calça de tecidos que exigiam atentado trato do ferro doméstico para roupas.

Inevitavelmente a já não mais criança, olhava e titubeava, entre o velho de camisa engomada e o velho de camisa suja; algo em comum aos velhos, o chapéu. O chapéu que mais que um acessório, também se apresentava renovado, como a camisa. Na roça, o chapéu mostrava-se em palhas; na cidade, meio aveludado, num tom quase engomado como a camisa. Sim, o chapéu, a marca do velho que sempre em baixo tom falava calmamente das coisas e também das não-coisas.

As longas conversas pareciam também terem encontrado outros rumos. Já não era mais possível falar das melancias, dos abacaxis, das fruteiras, nem tampouco dos carteados, a criança de então demonstrava disposição para outros assuntos, entre os quais, a política nos tempos do velho. E então, a prosa fiada era adornada pela declaração de que Getúlio Vargas era sim um pai, um querido por quem o velho havia caminhado dias para vê-lo passar em desfile pela cidade mais próxima, animado para ver ao menos uma vez, o grande presidente.

Certamente que apenas após outros tantos anos, aquela criança já crescida, conseguiria compreender a adoração ao presidente, o universo que rondava o sertanejo que jamais entrara numa escola na figura de aprendente.

Na cidade, o velho olhava para a criança com ar de admiração. A criança dominava e se desenvolvia com maestria no meio de tanto concreto e barulho, tal qual ele se desenvolvia na roça, no mato, entre plantações e bichos. Num dos momentos de diálogo admirado, recíproco, bem certo, o velho soltou naturalmente uma fadiga para a criança; fadiga esta que se fez marco: ‘aqui não se pode ver a vaca mascando o capim’. Aquela criança que já ia com suas duas décadas, percebeu que novamente o tempo se colocava entre ela e o velho. Na roça a vaca mascava não apenas o capim, ainda, os pensamentos sertanejos, as modas de viola, enfim, a própria Vida, vivida, vista e pensada, sobretudo após as dezoito horas, quando a iluminação era apenas da Lua ou das lamparinas. Na cidade a vaca em seu universo sertanejo inexistia, mas para a criança, a vaca poderia ser retomada, noutra forma, trazida a ruminação, em termos de contemplação. E lá estava, o velho, mais uma vez ensinando.

O que se tem não é uma tensão polar entre campo e cidade, antes, é um entrelaçamento do tempo, um tempo que encontra e re-encontra intensidades, aparentemente, tão distantes. Vê-se, pois, a roça na criança da cidade, tanto quanto vê-se a cidade no velho do campo, entrelaçados, bem certo, por hábitos de família, e não somente, ainda por ressonâncias ruminantes dos que vivem dando-se à Vida, sem deixá-la escapar ao pensamento.

Sonoro proseio dos caipiras de cidade grande, Pena Branca & Xavantinho, que da interiorana Uberlândia, tonalizou fadigas sertanejas, vividas, vistas e pensadas nas cidades, nas estradas, nas roças, nos espaços...

Pra ser um palhaço
Um carlito, um caipira
No grande circo da vida
Tem que ser louco e não ser
E o povo todo sendo o Jeca com você
Era uma coisa muito linda de se ver
[Mazzaropi; Pena Branca e Xavantinho]


Pontuação terceira
Da cidade grande, a criança crescida, distanciou-se do velho rumando outra cidade, uma grande cidade. Antes, chorou-lhe em público a admiração que até então disfarçava; e seguiu, desbravante em intensidades do coração.

As notícias que chegavam, davam-se como pedidos do velho que surpreendido pela fragilidade orgânica, expressava em vestes brancas uniformizadas, o desejo de mais um encontro. Confundindo as cidades, as grandes, ele dizia em gênero, Norte... sabia o rumo que tomara a criança crescida, mas não sabia identificar no mapa.

Desavisada de tudo, a criança, por motivos tantos resolvera retornar para a cidade grande. No primeiro trecho de um retorno que se alongaria por 2 dias, telecomunicou. Se no primeiro encontro um breve e baixo 'Olá' fez-se marco, do telefonema a secura de mais um marco silenciava a voz e umedecia o olho da não mais criança, que em segundos, numa cidade não grande mas turisticamente religiosa, em terras de sertanejos de Padre Cícero, chorou, não como as lágrimas do primeiro dia que correra das vacas bravas de quem o velho a protegera; chorou pelo aparecimento de mais uma estrada sinistra que marcava o desencontro entre dois que em presença pareciam distantes, mas que em afetos mantinham-se grudados.

Dois dias caminhantes por uma nova estrada, nova sintonia, ainda que conhecida em forma. A criança que naquela altura já sentia calejos do tempo, sentiu uma fadiga, talvez aquela mesma fadiga do velho quando falou da vaca na cidade grande. Compreendeu então, que ali estava falando do tempo que vai nos passando e que nem sempre os observamos, não por mero olhar, muito antes, por compreensão aos recortes dos dias, da Vida. Por certo, o velho estava dando àquela criança, seu mais nobre ensinamento, o de que a Vida há de ser vivida, mas também há de ser pensada.

A criança que chegara dois dias depois, não mais encontrou o velho, tampouco seus lentos, baixos e discretos descolantes momentos de Vida... havia encerrado, embora tivesse deixado o elogio de ter visto na criancinha a ruminação faminta dos que sentem a força da terra.

O velho era um avô, e a criança, uma neta. A neta a quem o avô não viu nascer. O avô a quem a neta não viu morrer. Ambos, quiçá mantiveram lembranças vivas guardadas em nomes que vai-e-volta se reencontram...

Mais alguns tantos anos depois, o universo sertanejo-roceiro-interiorano é retomado, não apenas de modo ativo, talvez o universo tenha se deslocado ele por ele mesmo, até as vagas andanças pensantes daquela criança-neta que vivendo novas e antigas fadigas, tem vacilado nos tantos ritmos da Vida, ora acelerado, ora desacelerado, ora desritmado, ora sem ritmo, ora cansado, ora desconhecido, ora repetitivo... ora ora ora... e como se o caipira avô, Cordeiro, se mostrasse como uma atravessante lembrança em dias de necessários territórios sobreviventes; qual seja, uma urbanóide em nostalgia de sua origem interiorana.

Pra todo aquele que só fala que eu não sei viver:
Chega lá em casa pruma visitinha,
Que no verso ou no reverso da vida inteirinha,
Há de encontrar-me num cateretê
[Vide-Vida Marvada; Rolando Boldrin]



Carol Gomes

18 de dezembro de 2011

Sobre bibliotecas, ciclovias e praças com botequim:
para a salvação das flores secas ─
o que se chama de êxtase fotográfico

Acredito sim na revolução... com bibliotecas, ciclovias e praças com botequim. Bibliotecas para experimentarmos o tempo. Ciclovias para experimentarmos os fluxos materializados, e não apenas. Praças com botequim para experimentarmos o esquecimento das agendas e brindarmos a Vida! com música e sorrisos, muitos. As flores secas, tomadas como coloridos ofuscados por escolha.

Sabe aquelas falas-frases que pessoas jogam ao léu? Pois é, em uma leitura curiosa, porém sem pretensões, topei logo na primeira página com discreto cinismo-realista do Barthes. Lá vai: “a vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões”. Ora, eu quem tinha iniciado a leitura desordenadamente, caminhando seduzida pelos títulos dos pequenos capítulos, fui surpreendida, para não dizer que certa vertigem me abraçou.

Caí nos braços do Barthes brigada com outro filósofo. O motivo: fotografia. Certo que a briga será retomada em outro momento, cujo tempo esteja favorável, para retorcer tal filósofo e, certamente, cuspi-lo, como ritual de atravessamento, de ‘desbunde’ e adesão aos seus próprios ensinamentos, entre os quais, retomá-lo no simulacro mais infiel, contestando, rasgando, rebelando. O fato é que desejosa de encontros chegou-me em total acaso, a ‘A câmara clara’ do Barthes; texto escrito em 1979.

Quanto mais lia, mais as palavras se mostravam familiares: “Em relação à fotografia, eu era tomado de um desejo ‘ontológico’: eu queria saber a qualquer preço o que ela era ‘em si’, por que traço essencial ela se distinguia da comunidade das imagens”. Se quer eu me preocupava com os termos ‘essencial’ e ‘distinção’; em verdade percebi que naquela presença de leitura estava enfraquecida da crítica à representação e não me reprimiria. Sem titubeios, Barthes dialogava comigo, e me acalmou: “eu dava testemunho da única coisa segura que existia em mim (por mais ingênua que fosse): a resistência apaixonada a qualquer sistema redutor”.

Como um termômetro totalmente desregulado, a agitação na leitura atingia picos, do alto ao baixo, repentinamente. Leitura saborosa, embora, conflitante, entre o que lia e o que tomava como acervo de leitura.  

Escutei de um fotógrafo-técnico a noção de ‘hora mágica’. A hora singular da luz natural para a captura fotográfica. A tal ‘hora mágica’ me instigou por vislumbrar o entrelaçamento da arte com a natureza, uma criadora da outra em simultaneidade. A ‘hora mágica’ como reunião difusa da potência de luz da natureza, difundida nas próprias outras individuações naturantes: nuvens, plantas, correntezas de água, enfim, difusores e/ou refletores naturais. Assim, pareceu-me a fotografia como captura das dobras da imanência.

A magia fotográfica, que postulo ultrapassar a formalidade de fixar o movimento, sinaliza justamente o que parece não poder ser fixado. Na fotografia de um leão, o fixar modula o animal selvagem; por outro, o sinalizar se coloca atrás do olho do leão, ou no movimento da juba, ou no amarelo corrupto do pelo, enfim, a fotografia contorce a técnica, subvertendo-a e subvertendo a si mesma. A foto existida dentro da fotografia transborda na própria fotografia, algo como: toda foto tem uma fotografia, mas nem toda fotografia tem uma foto. Isso! A foto é o que se insinua no fixar do movimento; na captura da luz. Diz Barthes: “No fundo, a Fotografia é subversiva, não quando aterroriza, perturba ou mesmo estigmatiza, mas quando é pensativa.” Taí, sendo pensativa, ela é foto.

Entre tantas finuras do texto, a retomada da máscara do teatro antigo, transposta para a fotografia, me ajudou compreender o porque de inúmeras vezes apreciar uma fotografia e me perguntar pela repetição de outra. Explico: em 2008, tive a singular oportunidade de ir à exposição do Voltaire Fraga na Pinacoteca-SP (adendo: e em 2009 na do Pierre Verger na Galeria Olido-SP, e vi que de fato há um diálogo entre ambos, a despeito de toda polêmica que exista). Entre as tantas fotografias sobre a Bahia, tema do artista, que inclusive apontava como título “Abundante cidade: Dessemlhante Bahia”, fui seduzida ‘por uma’ (e não ‘pela’) foto gritante; uma negra baiana sentada na beira de um carrinho de madeira. Ora, essa foto permaneceu em mim muito tempo, até hoje a lembro com vivacidade. Vivacidade retomada pelo destaque da página 59 no livro do Barthes.


Voltaire Fraga. Exposição Pinacoteca 2008


Ora, o que se vê na foto não é um negro, é também. O que se vê como foto nessa fotografia, é, justamente, o atravessamento de algo que passa atrás dos olhos, entre o olhar movente. O mesmo que, indubitavelmente, atravessou o olhar da negra baiana fotografada por Fraga. O que atravessa em gritos de silêncio chama-se escravidão; marcas da escravidão atualizada, no atemporal. Em rabiscos o filósofo sobre a fotografia de R. Avedon.

 R. Avedon: William Casby, nascido escravo, 1963. [p. 59]

“Já que toda foto é contingente (e por isso mesmo fora de sentido), a Fotografia só pode significar (visar uma generalidade) assumindo uma máscara [...] a máscara é o sentido, na medida em que é absolutamente puro [...] A máscara é, no entanto, a região difícil da Fotografia. A sociedade, assim parece, desconfia do sentido puro: ela quer sentido”.

Pois bem; até aqui, escrevi um mísero parágrafo sobre bibliotecas, ciclovias e praças com botequim. Mais essa vez fracassei na vontade de iniciar, talvez, meu primeiro ensaio filosófico. Há uma foto sem reações químicas reveladoras da hora mágica captada com recursos óticos me rondando, insinuando-se quanto à filosofia das bibliotecas, ciclovias e praças com botequim. Em objetividade tentei mais essa vez rabiscar o tal ensaio, dei-me fracassada com vistas ao não objetivo da escrita, que novamente me ludibriou. Insinuou os traços do ensaio em palavras sobre fotografia. Não por acaso o livro do Barthes apanhei emprestado em uma biblioteca; várias páginas do livro as li sentada em uma praça (sem botequim, tudo bem) aguardando o horário de um filme; quanto às ciclovias, essas entram como parte de um contexto descontextualizado. As bibliotecas, as ciclovias e as praças (as três palavras femininas) me são fotografias que transbordam fotos. É isso... constroem o meu êxtase fotográfico.

Toda foto guarda em si, uma fuga. Não por acaso o lado direito inferior de uma fotografia, por vezes seja tomado como ‘ponto de fuga’ do tema fotografado. Ora, talvez seja esse atravessamento fugidio que mostrará o quão próximo da fotografia esteve aquele que apontou sua preferência pelo cinema à fotografia; tendo reencontrado em Barthes a provocativa: “Decretei que gostava da Foto contra o cinema”. Assim, vejo um potente encontro em dissonância tridimensional.

“Louca ou sensata? A Fotografia pode ser uma ou outra: sensata se seu realismo permanece relativo, temperado por hábitos estéticos ou empíricos (folhear uma revista no cabeleireiro, no dentista); louca, se esse realismo é absoluto e, se assim podemos dizer, original, fazendo voltar à consciência amorosa e assustada a própria letra do Tempo: movimento propriamente revulsivo, que inverte o curso da coisa e que eu chamarei, para encerrar, de êxtase fotográfico.”

Veja-se que as bibliotecas, as ciclovias e as praças fugiram atravessando a fotografia que ainda não fotografei como filosofia.

Fonte [embora haja um misto de GD, RB e CG viajando]: BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Tradução Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

Carol Gomes

11 de dezembro de 2011

Dos passeios pelas páginas usadas, rabiscadas e deixadas a outrem em quadrantes paulistanos

De certo que me habituei buscar pelo mais moço, Rimbaud. Tanto mais pelo fervor de uma escrita apaixonada e entregue sem culpa ao fogo expressivo do fluxo. Mas não, noutro dia me encantei pela maturidade do movimento potente das palavras do mais velho, Verlaine. Doce como falou, colocou-se nas águas de um rio; qualquer ao meu desconhecimento nada parisiense.

Senti no impulso, palavras de tantas mortes que jogamos gratuitamente aos fluxos, não apenas para que levem e se deem ao esquecimento, muito antes, para que o fluxo as misture, as ‘trans’ em outras tantas alheias também jogadas entre dispersões luzentes.

Mesmo dada ao ‘sem rumo’, triste me chegaram palavras do não possível, que na tremura vibrante do material, necessitei recompor-me do tropeço da solidão que já há alguns dias me desejava. Nessa, Verlaine me acompanhou em minutos, não terapêuticos, embora também assim, compondo-se em re-alumiações de um passeio.

O moço de traços charmosos deu-me seu colóquio de sentimentos, que dele me despedi, salivante, interrompida pelo amargo sentido prático dos contados contabilizados pelas páginas.

Cadenciada que não fracassei. Busquei um café. Um café a Verlaine; retribuição pela leveza da apresentação, iminentemente encontrada nos não sentidos lógicos de uma mente que aguardava... aguardava o tempo que claramente não passava porque em fonte, o desejo era mesmo de que não passasse.

Dias atravessados, provoco o encontro do cello de Raiff Dantas Barreto (suavidade discreta e singular, para não dizer inesquecível) com Verlaine, recobertos pelo choro alegre de Chopin e a marcação-marcante de Mignone... no mero e 'acasado' desinteresse.

Carol Gomes

Chopin: Sonata para cello e piano, III-largo




Mignone: Macunaíma "A valsa sem caráter"


10 de dezembro de 2011

Manifesto para dias menos escaldantes
sobre bibliotecas, ciclovias e transporte público

Somam-se alguns dias que reluto para não sair da imersão em assuntos sérios, muito mais sérios e vitais do que o incômodo de rabiscar sobre questões sociais que emergem da imbecilidade propositada de alguns humanos. Impõe-se um aborrecimento enorme por força da necessidade mental, inquietada com ocorrências numerosas, ao deixar momentaneamente, líricos escritos, intempestivos aforismos, relampares páginas metafísicas, para divagar sobre alguns desencontros que insistem em se mostrarem costumeiros.

Sustentando-me em três pilares, divago sobre questões menos importantes que a Arte-Filosofia e mais importante que infraestrutura/superestrutura (da produção à circulação, incluindo governos, partidos políticos, grupos econômicos, máfias diversas, programadores do meio ambiente  e tudo quanto é coletivo que acredita em um mundo melhor partindo tão e somente do seu quintal).

Desinteressada em anarquismos, comunismos, capitalismos, sustentalismos, cubanismos, bem-estar(ismos), obanismos, sarkozysmos, lulismos, dilmismos etc., abraço o felicismo!

Quero ser Feliz! Com bibliotecas, ciclovias e transporte público.

Com bibliotecas para experimentar a liberdade da Vida. As bibliotecas fazem-se prova dos existentes de que é possível trilhar labirintos no tempo, desprendidos de culpa. Topar com personagens que a certa altura não se mostram no fio da realidade, tampouco se preocupam, tanto mais porque a culpabilidade que possa haver, mostra-se para as páginas oscilantes entre o possível e o real.

Com bibliotecas cria-se mundos, cria-se cores e sons.

Carol Gomes

5 de dezembro de 2011

Relato infiel de momentos desprendidos do real

Uma cidade que transborda delírios. É dessa perspectiva que se dá o lançamento de um relato abdicado de fidelidade, sobretudo para com uma verdade, e àqueles, que como me ensinou um amigo, salivam com vontade de verdade, permitam-se por minutos à vontade de desejar. Assim, quem saberá?!, poder-se-á percorrer, desinteressadamente, trilhas rascunhadas numa mente alegre em colorido.

Sem definições formalísticas, sem localização geográfica, definições que pouco interessam em nomenclatura, ao contrário,  engessam a liberdade das letras, tecladas, lentamente...

Pouco antes das oito da manhã, um vento frio com chuvisco preguiçoso, imerso num amontoado de pessoas penduradas no ponteiro dos segundos, um atendente de padaria insistia em cantarolar ao receber cada pedido. “Uma promoção para viagem! Um pão de queijo com café! Pão na chapa com suco de laranja sem açúcar para viagem!” Tantos pedidos simultâneos e na agilidade de uma percepção automatizada, o atendente complementava os pedidos. “Manda um pão na chapa para viagem... capricha na chapa porque o gravata tem fome! Pão de queijo caprichado, quentinho e da hora para fazer seu dia alegre!”. Nada familiar a disposição de um moço atrás do balcão em plena manhã de sexta-feira servindo apressados rumo ao trabalho. Certo que do desprendimento desse momento, a mensagem estava posta: os delírios são construídos, por vezes, para evitar o massacre do relógio que adora rodar-rodar sem progredir nas horas. Talvez como olhar insistentemente para os ponteiros e vê-los sempre marcando a mesma posição, quando não se quer enxergá-los.

Sim! O atendente da padaria por certo que não seja a abertura principal de um episódio em três capítulos, embora tão certo ele seja, indiscutivelmente, o portal de estranhezas experimentadas noutros espaços, diferentes apenas na tonalidade cinzenta.

Foi numa tal Casa das Rosas, na garoa fria, que a colagem dos poucos cacos apanhados começou a ser realizada. Tudo cinza. A casa cinza, as cadeiras cinzas, o piso cinza, o guarda-sol num cinza para preto, tão cinza que a chuva mostrava-se à beira do que chamam: grafite. O que haveria de tão especial na tal casa? Nada! Após a passagem pelo portal, o cinzento das horas matutinas não apresentou uma lírica se quer. Nada saiu, tampouco nada entrou em rosas ou de rosas na casa.

Carol Gomes