18 de dezembro de 2011

Sobre bibliotecas, ciclovias e praças com botequim:
para a salvação das flores secas ─
o que se chama de êxtase fotográfico

Acredito sim na revolução... com bibliotecas, ciclovias e praças com botequim. Bibliotecas para experimentarmos o tempo. Ciclovias para experimentarmos os fluxos materializados, e não apenas. Praças com botequim para experimentarmos o esquecimento das agendas e brindarmos a Vida! com música e sorrisos, muitos. As flores secas, tomadas como coloridos ofuscados por escolha.

Sabe aquelas falas-frases que pessoas jogam ao léu? Pois é, em uma leitura curiosa, porém sem pretensões, topei logo na primeira página com discreto cinismo-realista do Barthes. Lá vai: “a vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões”. Ora, eu quem tinha iniciado a leitura desordenadamente, caminhando seduzida pelos títulos dos pequenos capítulos, fui surpreendida, para não dizer que certa vertigem me abraçou.

Caí nos braços do Barthes brigada com outro filósofo. O motivo: fotografia. Certo que a briga será retomada em outro momento, cujo tempo esteja favorável, para retorcer tal filósofo e, certamente, cuspi-lo, como ritual de atravessamento, de ‘desbunde’ e adesão aos seus próprios ensinamentos, entre os quais, retomá-lo no simulacro mais infiel, contestando, rasgando, rebelando. O fato é que desejosa de encontros chegou-me em total acaso, a ‘A câmara clara’ do Barthes; texto escrito em 1979.

Quanto mais lia, mais as palavras se mostravam familiares: “Em relação à fotografia, eu era tomado de um desejo ‘ontológico’: eu queria saber a qualquer preço o que ela era ‘em si’, por que traço essencial ela se distinguia da comunidade das imagens”. Se quer eu me preocupava com os termos ‘essencial’ e ‘distinção’; em verdade percebi que naquela presença de leitura estava enfraquecida da crítica à representação e não me reprimiria. Sem titubeios, Barthes dialogava comigo, e me acalmou: “eu dava testemunho da única coisa segura que existia em mim (por mais ingênua que fosse): a resistência apaixonada a qualquer sistema redutor”.

Como um termômetro totalmente desregulado, a agitação na leitura atingia picos, do alto ao baixo, repentinamente. Leitura saborosa, embora, conflitante, entre o que lia e o que tomava como acervo de leitura.  

Escutei de um fotógrafo-técnico a noção de ‘hora mágica’. A hora singular da luz natural para a captura fotográfica. A tal ‘hora mágica’ me instigou por vislumbrar o entrelaçamento da arte com a natureza, uma criadora da outra em simultaneidade. A ‘hora mágica’ como reunião difusa da potência de luz da natureza, difundida nas próprias outras individuações naturantes: nuvens, plantas, correntezas de água, enfim, difusores e/ou refletores naturais. Assim, pareceu-me a fotografia como captura das dobras da imanência.

A magia fotográfica, que postulo ultrapassar a formalidade de fixar o movimento, sinaliza justamente o que parece não poder ser fixado. Na fotografia de um leão, o fixar modula o animal selvagem; por outro, o sinalizar se coloca atrás do olho do leão, ou no movimento da juba, ou no amarelo corrupto do pelo, enfim, a fotografia contorce a técnica, subvertendo-a e subvertendo a si mesma. A foto existida dentro da fotografia transborda na própria fotografia, algo como: toda foto tem uma fotografia, mas nem toda fotografia tem uma foto. Isso! A foto é o que se insinua no fixar do movimento; na captura da luz. Diz Barthes: “No fundo, a Fotografia é subversiva, não quando aterroriza, perturba ou mesmo estigmatiza, mas quando é pensativa.” Taí, sendo pensativa, ela é foto.

Entre tantas finuras do texto, a retomada da máscara do teatro antigo, transposta para a fotografia, me ajudou compreender o porque de inúmeras vezes apreciar uma fotografia e me perguntar pela repetição de outra. Explico: em 2008, tive a singular oportunidade de ir à exposição do Voltaire Fraga na Pinacoteca-SP (adendo: e em 2009 na do Pierre Verger na Galeria Olido-SP, e vi que de fato há um diálogo entre ambos, a despeito de toda polêmica que exista). Entre as tantas fotografias sobre a Bahia, tema do artista, que inclusive apontava como título “Abundante cidade: Dessemlhante Bahia”, fui seduzida ‘por uma’ (e não ‘pela’) foto gritante; uma negra baiana sentada na beira de um carrinho de madeira. Ora, essa foto permaneceu em mim muito tempo, até hoje a lembro com vivacidade. Vivacidade retomada pelo destaque da página 59 no livro do Barthes.


Voltaire Fraga. Exposição Pinacoteca 2008


Ora, o que se vê na foto não é um negro, é também. O que se vê como foto nessa fotografia, é, justamente, o atravessamento de algo que passa atrás dos olhos, entre o olhar movente. O mesmo que, indubitavelmente, atravessou o olhar da negra baiana fotografada por Fraga. O que atravessa em gritos de silêncio chama-se escravidão; marcas da escravidão atualizada, no atemporal. Em rabiscos o filósofo sobre a fotografia de R. Avedon.

 R. Avedon: William Casby, nascido escravo, 1963. [p. 59]

“Já que toda foto é contingente (e por isso mesmo fora de sentido), a Fotografia só pode significar (visar uma generalidade) assumindo uma máscara [...] a máscara é o sentido, na medida em que é absolutamente puro [...] A máscara é, no entanto, a região difícil da Fotografia. A sociedade, assim parece, desconfia do sentido puro: ela quer sentido”.

Pois bem; até aqui, escrevi um mísero parágrafo sobre bibliotecas, ciclovias e praças com botequim. Mais essa vez fracassei na vontade de iniciar, talvez, meu primeiro ensaio filosófico. Há uma foto sem reações químicas reveladoras da hora mágica captada com recursos óticos me rondando, insinuando-se quanto à filosofia das bibliotecas, ciclovias e praças com botequim. Em objetividade tentei mais essa vez rabiscar o tal ensaio, dei-me fracassada com vistas ao não objetivo da escrita, que novamente me ludibriou. Insinuou os traços do ensaio em palavras sobre fotografia. Não por acaso o livro do Barthes apanhei emprestado em uma biblioteca; várias páginas do livro as li sentada em uma praça (sem botequim, tudo bem) aguardando o horário de um filme; quanto às ciclovias, essas entram como parte de um contexto descontextualizado. As bibliotecas, as ciclovias e as praças (as três palavras femininas) me são fotografias que transbordam fotos. É isso... constroem o meu êxtase fotográfico.

Toda foto guarda em si, uma fuga. Não por acaso o lado direito inferior de uma fotografia, por vezes seja tomado como ‘ponto de fuga’ do tema fotografado. Ora, talvez seja esse atravessamento fugidio que mostrará o quão próximo da fotografia esteve aquele que apontou sua preferência pelo cinema à fotografia; tendo reencontrado em Barthes a provocativa: “Decretei que gostava da Foto contra o cinema”. Assim, vejo um potente encontro em dissonância tridimensional.

“Louca ou sensata? A Fotografia pode ser uma ou outra: sensata se seu realismo permanece relativo, temperado por hábitos estéticos ou empíricos (folhear uma revista no cabeleireiro, no dentista); louca, se esse realismo é absoluto e, se assim podemos dizer, original, fazendo voltar à consciência amorosa e assustada a própria letra do Tempo: movimento propriamente revulsivo, que inverte o curso da coisa e que eu chamarei, para encerrar, de êxtase fotográfico.”

Veja-se que as bibliotecas, as ciclovias e as praças fugiram atravessando a fotografia que ainda não fotografei como filosofia.

Fonte [embora haja um misto de GD, RB e CG viajando]: BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Tradução Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

Carol Gomes

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