29 de janeiro de 2017

Dança, Cinema e Teatro e os falsos movimentos de relação

uma coreografia assinada por australianos. um filme assinado por estadunidenses. um teatro assinado por franceses.

Ler textos que tratam das relações diversas na arte é perturbante, especialmente porque há o aspecto da escolha narrativa do autor que implica seleção dos termos e as próprias adjetivações, e há também os distanciamentos espacial e temporal do leitor em relação à produção artística (embora no cinema isso me pareça menos conflitante). Quando da leitura, dão-se dois movimentos, se não distintos em natureza, ao menos distintos em processamento: um entendimento das palavras na relação entre leitor e autor, e ainda, do leitor para com a obra numa reconstrução da obra descrita no texto.

Pois bem, esse duplo movimento reflexivo se pôs a mim numa bagunça inesperada mais ou menos assim.

Vamos ao teatro?! Vamos. Onde? Ver o que? Quanto?

Fomos com quase nenhuma especulação sobre o espetáculo. Talvez tenhamos questionado mais o valor das entradas do que o conteúdo da sessão.

Sentada no assento já marcado no bilhete, avistei três telões na sala. Pensei?! Vai rolar aquelas montagens com vídeo. Li um resumo do espetáculo e vi que a proposta tratava de um diálogo entre dança e cinema a partir do filme de 1950, D.O.A. Pois bem, que haveria de vir?! Não seria possível que uma fotocópia de cenas do filme?! Não, não.

Iniciou o espetáculo, os telões acenderam e o filme começou a rolar desde as legendas iniciais. Sim, os filmes nessa época exibiam os créditos logo no início. Fui surpreendida ao deslocar o olhar de um dos telões que estava fixado na parte superior direita em direção ao palco. Magnífico! O ator se movimentava num plano contraluz cuja silhueta ia de encontro (isso, em choque mesmo) a uma tela com projeção de um quadrado branco que se abria como a tela mesma do cinema. O que exclamei de magnífico foi justamente o falso movimento real do dançarino que se mexia sem se deslocar continuamente no chão (no espaço). Pimba, um falso raccord na dança?! Falso porque o quadrado branco ao abrir engolia o dançarino que mexendo o corpo (estilo a dança clássica do Michael Jackson) forjava uma caminhada tal qual a cena do filme, menos o corpo se deslocava no espaço e mais o corpo era engolido pela tela à sua frente, cuja relação era dada a partir da contraluz.

Ora, no primeiro momento pareceu uma fotocópia (adoro essa palavra brega), talvez uma transliteração, mas não, acho que pela primeira vez vivi um diálogo entre dança e cinema. Eu olhava para o telão e a cena cinematográfica estava lá. Olhava para o palco e a dança estava lá, ambas tratando de um mesmo plano, mas com movimentos distintos. Imagens em movimento, ou melhor, imagens em movimentos. Definitivamente não consigo selecionar termos que tornem possível uma plástica descritiva.

E assim o espetáculo continuou, o filme rodou do seu minuto inicial ao minuto final projetado dos três telões fixados nas laterais e um à frente, todos na parte superior. No palco, os dançarinos deslocavam no chão ora fragmentando os movimentos corporais ora continuamente sem pausas, eram pernas, braços, colunas fluidas. Um trem de doido! Nos telões e no palco as mesmas cenas movimentadamente distintas. Como pode?!

O simulacro se deu tão propositadamente flagrante que num instante de beijo na cena do filme, os dançarinos mostravam-se olhando para o telão como que forjando que estavam fotocopiando tudo, embora imediatamente giravam os corpos no ritmo da mudança de corte da cena cinematográfica, de modo que o beijo que desenrolava harmonicamente no filme, não se encaixava entre o dançarino e a dançarina, pois ambos estavam num corte frontal para o palco olhando justamente para o telão.
O corte frontal que muitas vezes é privilegiado no cinema, foi propositadamente privilegiado na coreografia. Ora, certamente uma crítica direta de que os movimentos em dança e em cinema podem se encontrar, mas dentre das suas temporalidades. Um corte frontal cinematográfico em primeiro plano pode me dizer da preocupação do ator ao descobrir que havia sido envenenado, uma imagem-afecção, mas em dança, um corte frontal se me pareceu pertinente justamente no corpo circulante da dançarina que girava e girava como uma vertigem diante da descoberta do veneno.

O espetáculo foi aberto com o dançarino caminhando falsamente e foi fechado com as dançarinas caminhando em lateral também falsamente.

O filme começou com um ator caminhando verdadeiramente dentro de um plano médio e terminou com o mesmo ator caído no chão. Tudo dentro de uma tela.

Pois bem, saí pensativa e só depois de 1 dia do espetáculo me dei conta de possíveis perguntas: haveria movimento verdadeiro e falso nessa relação entre dança e cinema?

E a propósito: não havíamos comprado entradas para o teatro?

O duplo movimento de um texto na relação autor e leitor parece só ter ganhado mais algumas pernas.

[Dança: Movie Picture 2015, Lucy Guerin]
[Cinema: D.O.A. 1950, Rudolph Maté]
[Fotos: encontradas no Google]