30 de agosto de 2010

! Teatro Vampiresco !
... de Deleuze e seu teatro da repetição a Palma e sua espécie de vampiro ...

Engraçado como já há algum tempo compreendia que a parceria frutífera para leituras prazerosas, porém não menos cansativas, era música instrumental (sempre a preferir Chopin ou Brahms) com texto filosófico embebido de uma doce escrita estética (na preferência, claro, Gilles Deleuze).

Ocorre que involuntariamente presenciei uma nova partilha, que do inesperado e nada provável pareceu-me harmônico. Taí, ler Deleuze escutando Jorge Palma. Não tinha me atrevido a tamanha ousadia. Confesso que algumas vezes gostei de buscar os escritos deleuzeanos ao som de Hilda Hilst nas vozes femininas do álbum produzido por Zeca Baleiro; sem dúvida pela pretensa presença de Dionísio... oh! Entretanto Jorge Palma superou, superou pela vivacidade discreta do seu piano e pelas palavras puras das tantas composições.

Só por existir
Só por duvidar
Tenho duas almas em guerra
E sei que nenhuma vai ganhar
Só por ter dois sois
Só por hesitar
Fiz a cama na encruzilhada
Chamei casa a esse lugar
E anda sempre alguém por lá
Junto à tempestade
Onde os pés não tem chão
E as mãos perdem a razão
Só por enfrentar
Só por destruir
Tenho as chaves do céu e do inferno
Deixo o tempo decidir
[PALMA, J. Só]

É essa vivacidade que logo me remeteu a Deleuze com o seu rigor no teatro explosivo do pensamento.

Trata-se de produzir, na obra, um movimento capaz de comover o espírito fora de toda representação; trata-se de fazer do próprio movimento uma obra sem interposição; de substituir representações mediadas por signos diretos; de inventar vibrações, rotações, giros, gravitações, danças ou saltos que atinjam diretamente o espírito. [DELEUZE, 2006, p. 29]

Por vezes vi Deleuze e Jorge Palma num diálogo (excitante). O filósofo lança a questão: Como ler... sem encenar o funâmbulo que abre toda a história? (p. 30). A resposta do músico surge: Sou o amigo mais funesto da poesia... tu não sabes de onde venho (Espécie de Vampiro). E seguia-se o diálogo silencioso e não menos enigmático, que eu já nem sabia se essencialmente filosófico, ou no próprio olhar de Deleuze, a filosofia na intercessão com outro não filosófico.

O ocorrido foi simples, casual, resultante de uma noite insossa de domingo, aquelas mesmas em que nos colocamos às leituras ou músicas para perceber o girar dos ponteiros. A grandeza deveu-se à imponência do Sr. Jorge Palma com frases: “meu olhar tem razões que o coração não freqüenta” (Quem és tu de novo)...

Interessante, para além do diálogo entre os personagens foi ver o piano se emaranhando nas palavras, ora as de Deleuze ora as do próprio Palma. Imediatamente recordei-me da bela passagem de Proust.

Primeiro o piano solitário se queixou, como um pássaro abandonado da sua companheira; o violino escutou-o, respondeu-lhe como de uma árvore vizinha. Era como no princípio do mundo, ou antes, era naquele mundo fechado a tudo o mais, construído pela lógica de um criador e onde para todo o sempre só os dois existiriam: aquela sonata. Era um pássaro? Era a alma ainda incompleta da pequena frase, era uma fada, invisível e chorosa, cuja queixa o piano em seguida ternamente redizia? Seus gritos eram tão súbitos que o violino devia precipitar-se sobre o seu arco para os recolher. Maravilhoso pássaro! O violinista parecia querer encantá-lo, amansá-lo, capturá-lo. Já havia passado para a sua alma, já a pequena frase evocada agitava, como ao de um médium, o corpo verdadeiramente possesso do violinista. [PROUST, 1948, p. 290]



É isso... um adendo limitado ao diálogo...



DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Trad. Luiz B. L. Orlandi, Roberto Machado – Rio de Janeiro: Graal, 2ª ed., 2006. 437 p.

PALMA, Jorge. No Tempo dos Assassinos. CD 1 e 2. Gravado no Teatro Villaret em Junho/2002.

PROUST. Marcel. No Caminho de Swann. Trad. Mário Quintana. 1ª edição. Editora Globo. RJ/POA/SP. 1948.


Carol Gomes