Sentir o Samba ao Res-sentí-lo
Um dia entrei por acidente num anfiteatro onde acontecia a palestra cujo tema era Ressentimento, atividade proposta por um projeto chamado Diálogos freudianos. Das palavras do convidado o que primeiro chegou aos meus ignorantes ouvidos foram: "O samba canta o ressentimento". Pronto! Isso se bem lembro na metade de 2007, num momento em que Cartola, Clara Nunes, Clementina de Jesus e Noel pairavam como autênticos intérpretes dos meus dias. Logo me lancei aos questionamentos ao conflitar o provável cantar ressentido do samba com versos singulares de tantos compositores das cuícas.
Fui consultar o Houaiss que me deu Ressentimento como mágoa que se guarda de uma ofensa ou de um mal que se recebeu; rancor; ofender-se, magoar-se, melindrar-se.
Ora, será que o samba canta o ressentimento? Não me soou muito bem essa sentença, no entanto até hoje paira na mente essas palavras... Titubiei na proposição de que o samba antes de ressentido seja desbravador de uma realidade não facilmente dada, tampouco de acesso automático.
Numa cortina singela faço meus recortes na tentativa de compreender o quão o samba revela realidade outra muito anterior ao ressentimento, para não dizer, indiferente.
A começar por Dona Inah elevando letra de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro, Olha Quem Chega:
Olha quem chega
Que grata surpresa
Aceite a minha mesa, a minha cama, o meu amor
Que seja aceito você que me abandonou
Entra que é tarde e fica à vontade
Meu samba de saudades veio dar as boas vindas
Perguntar pelas novidades
Guarde seus panos aqui e os desenganos em qualquer lugar
O perdão que você vai pedir
Não peça não que ele está onde eu sempre estou
Poeta não sabe guardar dissabor
A chamada Poeta não sabe guardar dissabor me aparece numa tamanha delicadeza que aos corações ressentidos seria uma gerra com derrota já declarada. Claro que a partida ‘talvez’ seja sim desilusões humanas, amores falidos ou não correspondidos, mas não poderia o samba além de remoer o sentimento, vivê-lo em abundância na expressão dos versos? Na batucada mole de cada palavra?
Lembro Rilke em Cartas a um Jovem Poeta na 1ª carta de 1903 atentar de que ao poeta ‘só existe um caminho: penetrar em si mesmo e procurar a necessidade que o faz escrever’ e ainda ‘aproximar-se então da natureza. Depois procurar, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde’. Ora, se o poeta do samba não guarda dissabor e abre as portas a quem não seria devido o perdão, certamente é porque retoma com diferença necessária, o começo, mostrando que do amor perdido retira-se um outro amor, e talvez, ouso, amadurecido, experimentado desde antes.
Rilke na mesma carta adverte o poeta de que ‘se o quotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser muito poeta para extrair as suas riquezas’, e assim se vê novamente nas palavras lacrimejadas do sambista ao arrancar da rotina paulistana a certeza de ser um diferente entre milhões de iguais da grande capital. Vai mais um recorte na costura da cortina novamente com Dona Inah cantando Eduardo Gudin e Paulo Vanzolini, Longe de Casa:
Longe de casa eu choro e não quero nada
Pois fora do chão ninguém quer e não pode nada
Sinto falta de São Paulo
De escutar na madrugada
Uns bordões de violões
E uma flauta a chorar prata
Dor de amor não me magoa
A saudade da garoa é que me mata
E eu saio pra rua
Assobiando comprido
Um samba comovido
Que Sivio Caldas cantasse
E me iludo que a garoa
Vem molhar a minha face
Será o choro do poeta só dele? Ah, como me lembro ao sair da terra aos pulos de alegria por me permitir voar pela abertura do mundo, no entanto ‘passados tempos’ uma voz interna começava a gritar e pedir os nossos, o calor do chão já conhecido. É assim que a voz do poeta acessa um espaço que só a ele é possível, só ele visualiza e sintetiza múltiplas individualidades, aqui ilustrado no samba. E como não poderia deixar de fora, o recorte brilhante dos versos de Vicente Barreto e Paulo César Pinheiro em Na Volta que o Mundo Dá, que por sinal faz-se vibrante na voz de Mônica Salmaso:
Um dia eu senti um desejo profundo
De me aventurar nesse mundo
Pra ver onde o mundo vai dar
Saí do meu canto na beira do rio
E fui prum convés de navio
Seguindo pros rumos do mar
Pisei muito porto de língua estrangeira
Amei muita moça solteira
Fiz muita cantiga por lá
Varei cordilheira, geleira e deserto
O mundo pra mim ficou perto
E a terra parou de rodar
Com o tempo foi dando uma coisa em meu peito
Um aperto difícil da gente explicar
Saudade, não sei bem de quê
Tristeza, não sei bem por que
Vontade até sem querer de chorar
Angústia de não se entender
Um tédio que a gente nem crê
Anseio de tudo esquecer e voltar
Juntei os meus troços num saco de pano
Telegrafei pro meu mano
Dizendo que ia chegar
Agora aprendi por que o mundo dá volta
Quanto mais a gente se solta
Mais fica no mesmo lugar
Para manter o bloco de recortes em Eduardo Gudin retomo na voz da Dona Inah o samba do Velho Ateu. Vejamos como o poeta sintetiza a caduca discussão da superioridade divina e as maleficências mundanas, principalmente as atrocidades sociais e a pretensa igualdade iluminista. Se tantos filósofos propuseram tratados da superioridade divina, o poeta sambista coloca na pessoa de um bêbado o mesmo questionamento, por ironia ou não, caiu maravilhosamente na expressão familiar a tantas pessoas que se fazem igual questão:
Um velho ateu
Um bêbado, cantor, poeta
Na madrugada cantava essa canção-seresta
Se eu fosse deus
A vida bem que melhorava
Se eu fosse deus
Daria aos que não têm nada
E toda janela fechava
Pros versos que aquele poeta cantava
Talvez por medo das palavras
De um velho de mãos desarmadas
Pois bem, o ressentimento parece tomar um lado particularizado, talvez um movimento interno do indivíduo, e assim sendo não compreendo que o samba seja ressentido ou cante o ressentimento. Ora, o samba mostra-se anterior e simultaneamente além do ressentimento, pois das desilusões, das angústias, o samba abre frestas no escuro. Que essa abertura seja exaurir o sentimento, repetí-lo no batuque inúmeras vezes, de modo que a repetição proporcione um novo, um novo a partir da vibração de que o batuque se faz... aquela vibração da cuíca que levanta qualquer alma, que eleva a vôos sem possível mensuração de prazer.
Clara Nunes, claridade total e sem igual ao evocar Tristeza Pé no Chão de Armando Fernandes:
Dei um aperto de saudade
No meu tamborim
Molhei o pano da cuíca
Com as minhas lágrimas
Dei meu tempo de espera
Para a marcação e cantei
A minha vida na avenida sem empolgação
...
Fiz o estandarte com as minhas mágoas
Usei como destaque a tua falsidade
Do nosso desacerto fiz meu samba enredo
Do velho som do minha surda dividi meus versos
...
Nas platinelas do pandeiro coloquei surdina
Marquei o último ensaio em qualquer esquina
Manchei o verde esperança da nossa bandeira
Marquei o dia do desfile para quarta-feira
Vai manter a tradição
Vai meu bloco tristeza e pé no chão
Como linha para costurar os recortes e ampliar a perspectiva do samba como cantador de ressentimento, retomo além de Rilke, o filósofo Gilles Deleuze ao falar de estética da existência presente no pensamento de Foucault. Para Deleuze a noção de estética da existência implica noções éticas e estéticas já que ‘o estilo, num grande escritor, é sempre também um estilo de vida, de nenhum modo algo pessoal, mas a invenção de uma possibilidade de vida, de um modo de existência’, assim, tomando o que o filósofo chama de grande escritor por poeta/sambista, o samba se configura não apenas como expressão de angústia, ressentimento, além, a disponibilização de uma nova vida, estando essa no espaço da possibilidade ou não. Ora, o que se tenta ampliar é a noção de que o samba se faz grande obra, justamente, por mergulhar num âmago, num espaço que o eleva sobretudo dos aspectos pessoais da criação artística, nesse sentido do próprio ressentimento.
Novamente Dona Inah fissura numa canção cujo nome é familiar, Ressentimento. Composição de José Eduardo Rennó e Heron Coelho:
Cansei de falar desse jeito enroscado
E num samba canção dolorido
Vou dizer o que tenho vivido
Por pensar tanto assim em você
Eu sei perdoar mesmo quando traído
Ninguém samba estou decidido
A dizer o que tenho passado
Por pensar tanto assim em você
É sempre nosso parente que sai pela porta
Nossa semente de mangueira morta
E os indigentes que sem coração
Ressentem e dizem frases de beleza torta
De parceria com quem pela porta
Tráz melodia de samba canção
Pronto, aí está um samba que canta o ressentimento. Pergunta: esse samba canta o ressentimento ou exaure o ressentimento? O que me parece é que no casamento com as notas sentidas na audição, a dor transborda letra a letra a originar uma percepção nova, novidade esta que implica a compreensão do que seja beleza torta. Eis que aí parece que estaria o poeta lançando vida nova, trazendo na pressão do ritmo, uma imagem de beleza torta, talvez beleza que escorra da dor como pureza de sentimento.
O que seja a palavra Ressentimento que não a repetição do sentimento. Re- prefixo do latim cujo significado expressa retorno. Nesse sentido, com auxilio do samba cantado por Dona Inah podemos sim compreender o samba como cantador de ressentimento, pois o samba assim estaria repetindo o sentimento de modo a encontrar o novo, repetir noutro tom.
É com Dona Inah que fecho o conjunto de recortes na cantoria do Samba de Mágoas de Eduardo Gudin:
Depois eu vi que não podia mais ficar assim
Feliz demais
Sem perceber que era enganador
Crescia dores por detrás do amor
Quebrando o vaso de jasmin
Anunciando a toque de clarim
Tempo ruim e isolador
Depois eu vi
Não era tanto para desesperar
Depois senti
Ao coração de novo apaixonar
Mesmo que seja para depois sofrer
Agora é hora de cantar
O samba novo jeito popular
De desaguar ou padecer
Sem se arrepender
Olhando a vida sem olhar para trás
Dizendo tudo o que a gente quer dizer
No samba de mágoa que a mágoa se desfaz
Eis que me parece uma das grandiosidades do samba, re-sentir para novo sentir, nas palavras do poeta/sambista de No samba de mágoa que a mágoa se desfaz. Aqui parece que a cortina se harmoniza ao tomar o ressentimento não como fim do samba, mas como meio para uma tal missão que talvez nem mesmo os maiores poetas do samba saibam qual seja, pois tanto em Rilke como em Deleuze a arte parece, aqui no toque do samba (canção), esse movimento necessário e tão desconhecido que revela realidades inacessíveis aos olhares desantentos.
Assim, um desconhecido possuidor, presente no ecoar do samba, seja para além de ressentir a disponibilização de uma nova vida, uma rasgadura no sentir...
Para tanto continuemos a ressentir tantos sambas maravilhosos... sambas que nos lançam em centésimos de segundos a tantos outros mundos desconhecidos, reveladores não apenas os que sejam porventura exteriores, mas ainda, por se fazerem desconhecidos de nós mesmos alocados em espaços interiores.
Carol Gomes