5 de dezembro de 2009

Pouco para Tanto...



"O povo não abandona tão facilmente suas antigas formas como alguns estão prontos a sugerir. Ele dificilmente vai ser convencido a corrigir as falhas reconhecidas na estrutura a que está habituado (...) o conservadorismo e a inércia levarão o povo a suportar grandes erros por parte do governo, muitas leis erradas e inconvenientes, e todo o tipo de deslize da fragilidade humana (...) sem revolta ou queixas."

- John Locke em O Segundo Tratado do Governo Civil de 1690 / Parágrafos 223-225 -


A essas palavras de Locke, contendo qualquer comentário contemporâneo, apenas recordo de Proust em À Sombra das Raparigadas em Flor, que apresenta parecida provocação ao questionar o leitor se num momento ou outro os nativos que contemplavam, separados por um vidro, o salão de jantar do Hotel em Balbec ousariam ultrapassar a barreira num ato faminto de revolta... Ora, Proust passa dias e dias de férias nesse Hotel e pelo que me recordo, os famintos nem mesmo enconstam no vidro, apesar de ali retomarem frequentemente a apreciação do jantar requintado dos hóspedes.

Com esses recortes é que a Arte se mostra como 'verdadeira' reflexão sobre a vida...



Carol Gomes

30 de novembro de 2009

Breve diálogo sem precedentes

Moça: Bom dia!

Moço: Bom dia! Vamos começar mais uma semana.

Moça: É sim, abrir Dezembro.

Moço: Nessa segunda de chuva queria continuar na cama, não queria abrir Dezembro, queria fechar Novembro na cama.

Moça: Muito boa a sua. Pois eu queria encontrar o Peter Pan e pedir aquele pó mágico para eu voar e quem sabe chegar à Terra do Nunca.

Moço: Vejo que não falta inspiração para essa segunda.

Moça: Inspiração não, é que vi o Peter Pan virando a esquina, corri para alcançá-lo e não consegui, ele estava ocupado com algo.

Moço: Você está brincando comigo. Falemos dos relatórios de final de ano.

Moça: Falemos então. Só não te esqueças que ficar na cama para fechar Novembro ou estar no trabalho focado tão e somente nos relatórios talvez seja a mesma coisa.

Moço: Hum!

Moça: Toma aí esse pó mágico que consegui pegar quando o Peter Pan virava e não percebeu que caiu do bolso.

Moço: Esse pó vai agilizar meu trabalho?

Moça: Sabe-se lá, só desconfio que vai trabalhar muito bem, percebendo que é possível voar estando preso atrás da mesa. Nesse vôo podes encontrar pássaros perfeitos que nos levam a espaços cuja imaginação não alcança. Pode se pegar pisando nas nuvens. Pode ver a Terra do alto e ver como somos formigas. Pode ver que a Terra talvez não seja o Planeta Azul... pode ver tanta coisa sem se privar dos relatórios.

Moço: Tá certo, quero esse pó.

Moça: Agora sim. Pega a xícara porque nossa hortelã já vai fria. Além do quê o Peter Pan que virava a esquina depois se revelou como vulto nascido dos meus vôos, até porque Peter Pan ocupado longe da Terra do Nunca não poderia sê-lo.

Moço: Agora não dá, o pó já foi para xícara que muito acentuou o aroma.

Moça: Muito bom, o açúcar do chá realmente ficou ótimo.

Moço: (num movimento oferecendo um abraço à moça) Vamos minha colega, nossa viagem à Terra do Nunca termina quando o chá acaba e somos puxados para essa Terra que bem conhecemos, essa Terra de Sempre.

Moça: Eis que você talvez se engane, pois dentro dessa Terra há múltiplas outras Terras... entre as quais uma onde o nunca e o sempre traduzem significados outros. Voltemos porque o relógio gira.


Carol Gomes

25 de novembro de 2009

Adendos Mentirosos...





Queria ter a coragem artística de negar o real, no entanto me pego diariamente escrava dele.


O enigma da vida é saber da morte e não compreendê-la; disse o alemão. Será ele conhecedor de que tão ou mais enigmático é saber da vida e sequer entendê-la?


O silêncio como coisa por vezes é calmante, noutras é diabólico porque encontra o silêncio como sujeito.


Impotência presidiária não seja a constatação da inferioridade da ação em referência ao pensar?


Por vezes a ausência de magia do real impõe-se como obrigação para sua reinvenção diária.


Que doença é essa de querer arrancar sempre significados invisíveis de tudo e todos?


Nada mais lúcido revelar a igualdade da borboleta com a flor.


Nada mais lúdico revelar que um mais um são dois.


Atrás de uma porta há sempre o incerto, daí o sentido das fechaduras; assim elas não abrem sozinhas e apenas quando se necessita de abalos.

Carol Gomes

23 de novembro de 2009

Arte, invasora de um tal espaço filosófico

Aprendi com Rômulo Quiroga (um pintor boliviano):
A expressão reta não sonha.
Não use o traço acostumado.
A força de um artista vem das suas derrotas.
Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.
Arte não tem pensa:
O olho vê, a lembrança revê, a imaginação transvê o mundo.
Isto seja:
Deus deu a forma. Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo.
(BARROS, 2010)

Eis o questionamento: O que é a Arte?

No diálogo Filosofia e Arte algumas considerações da História da Filosofia apresentam reflexões que contribuem para o entendimento desse questionamento. Nesse sentindo três filósofos amadurecem a questão: Albert Camus, Michael Foucault e Gilles Deleuze; assim como no primado pelo diálogo entre as áreas, dois escritores e um artista plástico, também contribuem discutindo a mesma questão que os filósofos, porém sob o prisma da criação artística, sendo: Manoel de Barros, Marcel Proust e Istvan Orosz.
Albert Camus em “O Homem Revoltado” responderá que a Arte é movimento que exalta e nega simultaneamente (CAMUS, 1996, p. 291). Essa simultaneidade é característica da revolta camusiana na recusa do mundo pelo indivíduo. A revolta não é tomada como fuga do mundo real, mas ainda, exige a unidade do estar no real e no para além do real.

Em toda revolta se descobrem a exigência metafísica da unidade, a impossibilidade de apoderar-se dela e a fabricação de um universo de substituição. A revolta, de tal ponto de vista, é fabricante de universos. (CAMUS, 1996, p. 293)

Na obra “O Mito de Sísifo” o filósofo apodera-se do mito e apresenta o personagem como o ‘herói absurdo’. Em Camus, Sísifo assume a vestimenta de homem revoltado, uma revolta consciente da sua condição existencial, posto que Sísifo fora condenado à eternidade rolar um rochedo no inferno. O personagem mitológico ousa o poderio dos deuses e encontra mesmo na condenação a unidade metafísica do seu existir, sendo que na eterna condenação, nos segundos entre o ‘parar’ do rochedo e a descida que retomaria desde o sempre ao esforço condenado, o herói absurdo toma consciência de que ainda há felicidade. Sísifo revolta-se contra os deuses e seu destino, revolta-se contra o seu real, mas não apenas, a busca do personagem é a superação do destino, e é nessa busca que o mesmo se faz herói. O heróico é compreender o absurdo da existência e revoltar-se, não apenas negando, ainda ampliando a realidade, sem fugir, num movimento de recriação do mundo.

Camus utilizando a herança de Nietzsche identifica no artista a intolerância ao real, assim como apresenta que “não há destino que não se transcenda pelo desprezo” (CAMUS, Lisboa, p. 149). Ora, o que o filósofo argelino aponta é que a criação artística não tolera a reprodução inútil do real, mas ao artista cabe refazer o real, apresentar na sua criação o que o mesmo não encontra no mundo. A reconfiguração do mundo é a compreensão da unidade tão necessária que Camus insisti. Para este não é suficiente negar o real, tampouco imaginar, ambos os caminhos são caracterizados por fuga vazia da realidade. O movimento revoltado da Arte é portanto, negar e reafirmar o mundo, colocar-se posto para “escrever um manual qualquer da felicidade” (CAMUS, Lisboa, p. 150), unindo o desprezado ao desejável.

Marcel Proust, escritor francês, no primeiro volume intitulado “No Caminho de Swann” que compõem a obra “Em Busca do Tempo Perdido”, parece endossar o problema da negação do real assim como Camus:

Como o público só conhece, do encanto, da graça, e das formas da natureza aquilo que pôde absorver nas imitações de uma arte lentamente assimilada, um artista original começa por rejeitar essas imitações. (PROUST, 2003, p. 211)

O apontamento de Camus provoca na compreensão de que a Arte é a anfitriã da revolta humana, responsável por abrigar a revolta e ainda apresentar-lhe condições de reinvenção do mundo, em um movimento de saída e retorno ao mundo, ensinando o quão, apesar de desprezível, o mundo contém em si mesmo a felicidade.

Ainda em “O Homem Revoltado” Camus nos fala de transcendência, fala em vibrações que nos escapam no silêncio pronunciado repetidamente do mundo. Essa constatação é a própria reafirmação do real, a contestação do aparente real, do aparente silêncio do mundo, mas simultaneamente a afirmação da tal transcendência viva, o falar repetido do mundo, a emissão das mesmas notas mundanas, a promessa da beleza que “pode fazer com que esse mundo moral e limitado seja amado e preferido a qualquer outro” (CAMUS, 1996, p. 296).

Maria Luiza Borralho na obra “Camus” de 1984 apresenta o histórico do filósofo-escritor Camus, e destaca que aos 23 anos esboçara no caderno um plano de criação, qual seja: “Obra filosófica: o absurdo; Obra literária: força amor e morte sob o signo da conquista. Nos dois, misturar os dois gêneros respeitando o tom particular” (BORRALHO, 1984, p. 190).

Com essa problematização Camus amplia o primeiro questionamento “O que é a Arte?” para “Como dialogar Arte e Filosofia?”. Logo nas primeiras páginas de “O Mito de Sísifo” o filósofo deixa a indicação que o absurdo é o divórcio entre o homem e a sua vida, entre o ator e o seu cenário. Nessas palavras é possível identificar o elemento filosófico do absurdo o transliterando para outro questionamento existencial camusiano: A vida tem sentido?

Se de um lado a Filosofia escancara o hiato entre homem e vida, por outro a Arte conduz à re-significação desse hiato. Segundo Camus a Arte conduz à origem da revolta, no entanto uma recondução que desvela o movimento harmonioso possível de amor e morte na conquista da felicidade no mundo real.

Camus surpreende euforicamente ao apresentar as noções de absurdo e revolta, no entanto, a presença de elementos existencialistas atenta, sobretudo para o espaço reservado tanto à Filosofia quanto à Arte como um momento segundo do indivíduo. Ainda em “O Mito de Sísifo” o autor sentencia: “Ganhamos o hábito de viver, antes de adquirirmos o de pensar” (CAMUS, Lisboa, p. 18). Também em “O Homem Revoltado”: “O romance é antes de tudo um exercício da inteligência a serviço de uma sensibilidade nostálgica ou revoltada” (CAMUS, 1996, p. 304). Essas passagens camusianas remetem às noções existencialistas traduzidas em ‘vivência’ e ‘reflexão’. Assim, Arte e Filosofia se nos aparecem não como atividades intrínsecas ao homem, necessárias, originárias, mas como resultantes do processo de revolta, sendo esta sim originária, imanente ao homem.

Dialogando com Camus interpõem-se o adendo: A Arte não provocaria essa revolta no homem ao invés de abrigar e reinterpretar a revolta?

Michel Foucault em entrevista de 1966 intitulada “Um Nadador entre Duas Palavras” deixa sua contribuição ao adendo. Ao falar sobre Breton e o Surrealismo destaca o ato de escrever não como um ato de comunicação, mas um ato de experiência que transforma; a escrita como um movimento de descoberta de si mesmo. Referindo-se ao escritor surrealista, ele aponta para uma crença na escrita em si mesma, a obra como caráter efetivo de intervenção no mundo, contrapondo a concepção da escrita como instrumento de refletir o mundo, de decomposição e recomposição. A sentença maior de Foucault à noção da escrita literária é que a obra por si só toma um caráter de antimatéria do mundo e pode compensar todo o universo, fundamentalmente porque ela não é apenas parte do mundo que reflete sobre este, mas porque o escrever é tido como ato bruto e nu, que encontra no escritor toda a liberdade de enfrentar o mundo nele mesmo (FOUCAULT, 2006, p. 245). Consoante, Manoel de Barros escreve:

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que
catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro
botando ponto final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os
vazios com as suas peraltagens
e algumas pessoas
vão te amar por seus despropósitos.
(BARROS, 2010)

Manoel de Barros, escritor brasileiro nascido em Cuiabá (MT) em 1916, durante entrevista em Agosto de 1996 diz que explora “os mistérios irracionais dentro de uma toca que chama lugar de ser inútil. Exploro há 60 anos esses mistérios. Descubro memórias fósseis. Osso de urubu, etc. Faço escavações”. Nessa fala o escritor remete a alguns filósofos que dialogaram com a Arte e que identificaram nesta um caráter invasivo, à força de negar e desvelar ao indivíduo universos outros. Com Manoel de Barros retoma-se o que Camus e Foucault apresentaram da relação com o mundo, a negação do real, o superar o real como que em um movimento ampliador, e vislumbra-se que esse seja um elemento considerável que possibilite à Filosofia dialogar com a Arte. O movimento desta de subjugar o mundo estando nele, sendo parte dele, assim como ousando mostrar possibilidades.

Retomando Proust, reconfigura-se a questão “O que é a Arte?” no diálogo com Camus, Foucault e Manoel de Barros. Sobre a força invasiva da Arte, Proust apresenta na sua obra essa força que invade; a obra artística se nos aparece como a abertura de outros mundos até então desconhecidos do indivíduo, como que “movimentos incessantes de dentro para fora, no sentido da descoberta da verdade” (PROUST, 2003, p. 85).

Em Proust o artista assume o viajante que alça vôo em busca de caminhos desconhecidos e que só ele penetra, de maneira que a obra é a materialização dessa viagem desmaterializada; assim, a Arte invade na medida que disponibiliza e violenta o indivíduo para perspectivas até então desconhecidas.

Nesse tipo de tela colorida de estados diversos que, enquanto eu lia, minha consciência ia desenrolando simultaneamente, e que iam desde as aspirações mais profundamente escondidas dentro de mim até a visão inteiramente exterior que eu tinha do horizonte diante dos olhos. (PROUST, 2003, p. 85)

Gilles Deleuze, filósofo leitor de Proust, no livro dedicado a este último “Proust e os Signos” a Arte assume a primazia de revelar a verdade. Deleuze identifica no escritor a existência de um mundo geral constituído por outros quatro mundos, sendo três materiais e um imaterial. Haveria portanto o mundo mundano, mundo do amor e o mundo sensível, todos no plano da materialidade, restando o mundo da Arte no plano da imaterialidade. A diferenciação entre o mundo material e o da imaterialidade é que o primeiro, ora se faz vazio quando mundano, ora se faz mentiroso quando amoroso, ou no mais avançado da materialidade se faz sensível, porém ainda insuficiente para a verdade. Já o mundo da imaterialidade encontra seu sentido na busca da verdade que é uma essência nada material.

Na leitura deleuzeana, Proust apresenta a busca da verdade apenas por intermédio da Arte, subjugando inclusive a Filosofia que tradicionalmente carrega consigo tal prerrogativa. Deleuze entrelaçado a Proust argumenta que a Arte invade o indivíduo, o mesmo desenvolve uma noção de idéia de violência necessária ao indivíduo para o exercício do pensamento. O pensamento não alcança a verdade por amor a esta, mas o pensamento se propõe a buscá-la quando violentado para tal, assim, a verdade é almejada segundo a configuração de uma necessidade, quando o indivíduo é forçado a buscá-la.

A noção de necessidade, violência, invasão, se justifica no próprio estatuto da imaterialidade da verdade, pois esta não é material, não é visível, ao contrário, é preciso que a decifre, a verdade exige interpretação, revelação, o trilhar de um caminho obscuro.

A Filosofia atinge apenas verdades abstratas que não comprometem, nem pertubam […] Elas são gratuitas porque nascidas da inteligência, que somente lhes confere uma possibilidade, e não de um encontro ou de uma violência, que lhes garantiria a autenticidade. (DELEUZE, 1987, p. 16)

Para Deleuze, em Arte, a inteligência é apresentada nunca antes, apenas depois, porém diferentemente de Camus, a Arte não é reflexão que assume a responsabilidade de recondução ao mundo pós revolta, ao contrário, a Arte é que força a inteligência para buscar a verdade que é obscura. Nesse sentido, Deleuze e Proust se aproximam de Foucault quanto à compreensão do ato artístico como momento puro de experimentação, como força que pressiona o indivíduo ao pensamento.

Ainda na obra de Proust, a Arte com o seu caráter invasivo de acesso à verdade, faz-se o veículo de acesso a Outrem. Deleuze evoca o problema filosófico leibniziano da comunicação entre as mônadas, que são fechadas em si mesmas, sendo que em Proust a Arte vai de encontro a esse fechamento e abre janelas de comunicação. Nesse sentido, recorrendo ao diálogo entre Arte e Filosofia.

Nossas únicas janelas, nossas únicas portas são espirituais: só há intersubjetividade artística ... Só pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que vê outrem de seu universo que não é o nosso, cujas paisagens nos seriam tão estranhas como as que porventura existem na Lua. Graças à arte, em vez de contemplar um só mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se. (DELEUZE, 1987, p. 42)

Na obra Universe do artista húngaro Istvan Orosz é possível mais um diálogo da Arte com a Filosofia, um diálogo revelador, provocador, invasivo por intermédio de questionamentos aparentemente filosóficos. Na obra encontra-se a discussão de Proust cuja Arte revela mundos outros desconhecidos do indivíduo.

Istvan Orosz – Universe

O presente trabalho é uma tentativa de refletir sobre uma provável problematização do diálogo entre Filosofia e Arte, expondo aspectos convergentes de ambas no trato de problemas comuns, assim como demonstrar que por constituírem áreas diferentes do conhecimento, apresentam perspectivas peculiares, e que ainda sim, seja possível a integração quando dispostas às questões pertinentes ao homem.

A proposta se fez no destaque de três filósofos cuja ressonância encontra-se em três artistas, tendo evidenciado que tanto as Artes quanto a Filosofia, se veem envoltas de questionamentos humanos, porém, o elemento diferenciador faz-se justamente na perspectiva diferente de resposta ao problema, assim como na possibilidade de entrelaçamento de uma área à outra diante da proposição de determinado problema.

Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei em escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. (BARROS, 2003)

Nas palavras de Manoel de Barros evidenciamos a perspectiva de que o filósofo não se faz mais ou menos que o artista, e sim que buscam possibilidades que ampliam o conhecimento do homem de si e do mundo.

Carol Gomes

18 de novembro de 2009

Vida, o enigma da...

Uma sentença que com tamanha frequência li e ouvi é a que um célebre pensador se faz não pelas respostas que lança, mas pelos problemas que formula. Engraçado como diferente de tantas frases 'chavões' essa sempre me tomou por aceitá-la passivamente enquanto inferência verdadeira. Parece-me que alguns problemas assumem caráter universal, posto que permeiam, julgo inocentemente, o pensamento de todo e qualquer indivíduo, entre os quais o problema formulado na pergunta: O que é a vida?

Como de costume prostrei silenciosamente noutros questionamentos, talvez de menos rigor filosófico, sobre uma classificação dos problematizadores, ou seja, a pergunta O que é a vida? lançada pelo artista é a mesma pergunta feita pelo filósofo? Além, a pergunta filosófica equivale-se à pergunta artística e até a pergunta científica? Ora, a provocação é essa mesma, linguisticamente estaríamos diante de uma pergunta universal, no entanto não teríamos emaranhado à própria pergunta os desdobramentos da resposta?

Um tal Sr. Dilthey nos últimos meses me aparece colocando novamente a conhecida questão do que seja a vida, ainda, o que seja a própria filosofia. Ora, Dilthey realmente assume um certo ‘ar’ romântico alemão, que a princípio gosto muito inclusive pelo uso sutil das palavras, no entanto, não foram suas considerações sobre as ciências do espírito que me prenderam, tão pouco a compreensão de que a filosofia seja um pensamento profundo sobre a vida. O que de fato sobressaiu dos escritos do rapaz foi justamente a base para o título deste esboço que me arrisco, qual seja O enigma da vida, subitem na obra Os Tipos de Concepção de Mundo. Transcrevo o trecho que Dilthey aponta, sabe-se lá um problema ou mera constatação:

O centro de todas as incompreensões situa-se na geração, no nascimento, no desenvolvimento
e na morte. O vivente sabe da morte e, no entanto, não pode compreendê-la.

Saber da morte e não compreendê-la estaria a garantir justamente o status da pergunta o que seja a vida? Dilthey partilha da noção historicista que fundamenta o pensamento no movimento próprio da vida, assim, compreender a vida seria sobretudo decompor a vivência humana, considerando como elemento central o que ele chama de experiência interna, aquilo que ao meu primitivo entendimento tomo por experimentação singular da vida. Nesse sentido retomaria a cândida crença de que todos num momento da vida se colocam a perguntar o que ela seja, e talvez seja nesse aspecto que se possa argumentar sobre a grandiosidade de um pensador a partir dos problemas formulados.

Todos perguntamos O que é a vida?, pressupõe-se. Ampliemos a crença. A mesma pergunta feita por um economista assume igual tonalidade que a pergunta feita por um sociólogo? Questão interessante, inclusive porque para Dilthey ambas ciências estariam classificadas nas ciências do espírito; para além a provocação remete à universalidade da pergunta, ousando de quê a grandiosidade não seja somente a formulação dos problemas, já que a própria formulação estaria a prever um acervo referencial para compreensão dos limites do problema. Ou seja, formular um problema não se restringe apenas a lançar perguntas, ainda, compreender a natureza do problema. Desse modo, imagino o quão interessante não seria reunir num espaço campestre, economista, pastor, sociólogo, dentista, engenheiro, oceanógrafo, historiador, físico, sertanejo, administrador, músico, filólogo, cozinheira, político profissional, andarilho e tantas outras ‘figuras’ com a mesma tarefa de rascunhar no céu o que seria (ou é) a vida. Nesse dia a vida deixaria de ser problema universal em questão ao dar lugar para o deslocamento da referência que teríamos até então do céu. A natureza do problema, hipoteticamente, diferiria conforme o ‘olhar do olheiro’, pois como diz um dos mestres 'o biólogo certamente toma ser vivo como algo bem distinto do que tomaria um artista'.

Na certa a grandiosidade do problema não se defronta somente pela formatação da área, no entanto o esforço para tentar demarcar certas diferenças ocorre justamente porque permanece a clareza de que postular o problema é manipular um certo acervo de experimentação singular. Assim, a pergunta O que é a vida? pode ser questão central de toda uma existência para um filósofo, no entanto pode ser etapa evolutiva dos dias de um executivo, por exemplo. Essa diferença não ocorreria, postula-se, apenas pela formatação das áreas, ainda, pela maneira como cada qual organiza o mundo em si e para si.

Aqui penso chegar num apontamento interessante. Uma pergunta universal com diferentes respostas, diferença não só de forma (físico responde pelo movimento, estatístico pelos números), sobertudo de conteúdo. Sendo assim, a equivalência da pergunta não ultrapassa os limites da linguagem, desse modo O que é a vida? seria sim um problema universal indiferente ao perguntador, no entanto, a resposta emaranhada desde o sempre no problema é quem nos revela a grandiosidade da questão, já que tendo aprendido com Dilthey, ao decompor pergunta e resposta, verificar-se-á que essas não passam de uma visão singular do mundo, um modo pelo qual o indivíduo enxerga e se coloca para vida.

Utilizando Dilthey parece que mais uma vez instrumentalizei minha crença na grandiosidade da pergunta e não da resposta, pois com a noção do enigma da vida permite-se compreender que a natureza da pergunta é justamente o prisma pelo qual o indivíduo vive, o foco pelo qual o indivíduo capta sua existência e inclusive a organiza, postulando certezas e simultaneamente as desfazendo.

No diálogo com Dilthey evoco, como não poderia depois de tamanha experiência estética, Henri Cartier Bresson, fotógrafo que parece não apenas escancarar nas suas obras a grandeza dos problemas, ainda nos revela que a resposta pode por vezes ser mais atormentadora que o precedente questionar.

Downtown, New York – 1947

Eis que a Dilthey o gato preto perguntaria: O que é a vida?. Julgo que provavelmente nenhuma resposta do filósofo atingiria minimamente qualquer resposta felina; doutro, o gato preto seria para Dilthey, postula-se, o próprio enigma da vida, visto e ouvido, no entanto não compreendido... pois se sabe perfeitamente o quão um olhar felino desmorona sem igual toda e qualquer certeza, ainda quando lançada na imensidão da solidão povoada de concreto.

Carol Gomes

8 de novembro de 2009

Sentir o Samba ao Res-sentí-lo

Um dia entrei por acidente num anfiteatro onde acontecia a palestra cujo tema era Ressentimento, atividade proposta por um projeto chamado Diálogos freudianos. Das palavras do convidado o que primeiro chegou aos meus ignorantes ouvidos foram: "O samba canta o ressentimento". Pronto! Isso se bem lembro na metade de 2007, num momento em que Cartola, Clara Nunes, Clementina de Jesus e Noel pairavam como autênticos intérpretes dos meus dias. Logo me lancei aos questionamentos ao conflitar o provável cantar ressentido do samba com versos singulares de tantos compositores das cuícas.

Fui consultar o Houaiss que me deu Ressentimento como mágoa que se guarda de uma ofensa ou de um mal que se recebeu; rancor; ofender-se, magoar-se, melindrar-se.

Ora, será que o samba canta o ressentimento? Não me soou muito bem essa sentença, no entanto até hoje paira na mente essas palavras... Titubiei na proposição de que o samba antes de ressentido seja desbravador de uma realidade não facilmente dada, tampouco de acesso automático.

Numa cortina singela faço meus recortes na tentativa de compreender o quão o samba revela realidade outra muito anterior ao ressentimento, para não dizer, indiferente.

A começar por Dona Inah elevando letra de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro, Olha Quem Chega:

Olha quem chega
Que grata surpresa
Aceite a minha mesa, a minha cama, o meu amor
Que seja aceito você que me abandonou
Entra que é tarde e fica à vontade
Meu samba de saudades veio dar as boas vindas
Perguntar pelas novidades
Guarde seus panos aqui e os desenganos em qualquer lugar
O perdão que você vai pedir
Não peça não que ele está onde eu sempre estou
Poeta não sabe guardar dissabor


A chamada Poeta não sabe guardar dissabor me aparece numa tamanha delicadeza que aos corações ressentidos seria uma gerra com derrota já declarada. Claro que a partida ‘talvez’ seja sim desilusões humanas, amores falidos ou não correspondidos, mas não poderia o samba além de remoer o sentimento, vivê-lo em abundância na expressão dos versos? Na batucada mole de cada palavra?

Lembro Rilke em Cartas a um Jovem Poeta na 1ª carta de 1903 atentar de que ao poeta ‘só existe um caminho: penetrar em si mesmo e procurar a necessidade que o faz escrever’ e ainda ‘aproximar-se então da natureza. Depois procurar, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde’. Ora, se o poeta do samba não guarda dissabor e abre as portas a quem não seria devido o perdão, certamente é porque retoma com diferença necessária, o começo, mostrando que do amor perdido retira-se um outro amor, e talvez, ouso, amadurecido, experimentado desde antes.

Rilke na mesma carta adverte o poeta de que ‘se o quotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser muito poeta para extrair as suas riquezas’, e assim se vê novamente nas palavras lacrimejadas do sambista ao arrancar da rotina paulistana a certeza de ser um diferente entre milhões de iguais da grande capital. Vai mais um recorte na costura da cortina novamente com Dona Inah cantando Eduardo Gudin e Paulo Vanzolini, Longe de Casa:

Longe de casa eu choro e não quero nada
Pois fora do chão ninguém quer e não pode nada
Sinto falta de São Paulo
De escutar na madrugada
Uns bordões de violões
E uma flauta a chorar prata
Dor de amor não me magoa
A saudade da garoa é que me mata
E eu saio pra rua
Assobiando comprido
Um samba comovido
Que Sivio Caldas cantasse
E me iludo que a garoa
Vem molhar a minha face

Será o choro do poeta só dele? Ah, como me lembro ao sair da terra aos pulos de alegria por me permitir voar pela abertura do mundo, no entanto ‘passados tempos’ uma voz interna começava a gritar e pedir os nossos, o calor do chão já conhecido. É assim que a voz do poeta acessa um espaço que só a ele é possível, só ele visualiza e sintetiza múltiplas individualidades, aqui ilustrado no samba. E como não poderia deixar de  fora, o recorte brilhante dos versos de Vicente Barreto e Paulo César Pinheiro em Na Volta que o Mundo Dá, que por sinal faz-se vibrante na voz de Mônica Salmaso:

Um dia eu senti um desejo profundo
De me aventurar nesse mundo
Pra ver onde o mundo vai dar
Saí do meu canto na beira do rio
E fui prum convés de navio
Seguindo pros rumos do mar
Pisei muito porto de língua estrangeira
Amei muita moça solteira
Fiz muita cantiga por lá
Varei cordilheira, geleira e deserto
O mundo pra mim ficou perto
E a terra parou de rodar

Com o tempo f
oi dando uma coisa em meu peito
Um aperto difícil da gente explicar
Saudade, não sei bem de quê
Tristeza, não sei bem por que
Vontade até sem querer de chorar
Angústia de não se entender
Um tédio que a gente nem crê
Anseio de tudo esquecer e voltar
Juntei os meus troços num saco de pano
Telegrafei pro meu mano
Dizendo que ia chegar
Agora aprendi por que o mundo dá volta
Quanto mais a gente se solta
Mais fica no mesmo lugar

Para manter o bloco de recortes em Eduardo Gudin retomo na voz da Dona Inah o samba do Velho Ateu. Vejamos como o poeta sintetiza a caduca discussão da superioridade divina e as maleficências mundanas, principalmente as atrocidades sociais e a pretensa igualdade iluminista. Se tantos filósofos propuseram tratados da superioridade divina, o poeta sambista coloca na pessoa de um bêbado o mesmo questionamento, por ironia ou não, caiu maravilhosamente na expressão familiar a tantas pessoas que se fazem igual questão:

Um velho ateu
Um bêbado, cantor, poeta
Na madrugada cantava essa canção-seresta
Se eu fosse deus
A vida bem que melhorava
Se eu fosse deus
Daria aos que não têm nada
E toda janela fechava
Pros versos que aquele poeta cantava
Talvez por medo das palavras
De um velho de mãos desarmadas

Pois bem, o ressentimento parece tomar um lado particularizado, talvez um movimento interno do indivíduo, e assim sendo não compreendo que o samba seja ressentido ou cante o ressentimento. Ora, o samba mostra-se anterior e simultaneamente além do ressentimento, pois das desilusões, das angústias, o samba abre frestas no escuro. Que essa abertura seja exaurir o sentimento, repetí-lo no batuque inúmeras vezes, de modo que a repetição proporcione um novo, um novo a partir da vibração de que o batuque se faz... aquela vibração da cuíca que levanta qualquer alma, que eleva a vôos sem possível mensuração de prazer. 


Clara Nunes, claridade total e sem igual ao evocar Tristeza Pé no Chão de Armando Fernandes:

Dei um aperto de saudade
No meu tamborim
Molhei o pano da cuíca
Com as minhas lágrimas
Dei meu tempo de espera
Para a marcação e cantei
A minha vida na avenida sem empolgação
...
Fiz o estandarte com as minhas mágoas
Usei como destaque a tua falsidade
Do nosso desacerto fiz meu samba enredo
Do velho som do minha surda dividi meus versos
...
Nas platinelas do pandeiro coloquei surdina
Marquei o último ensaio em qualquer esquina
Manchei o verde esperança da nossa bandeira
Marquei o dia do desfile para quarta-feira
Vai manter a tradição

Vai meu bloco tristeza e pé no chão

Como linha para costurar os recortes e ampliar a perspectiva do samba como cantador de ressentimento, retomo além de Rilke, o filósofo Gilles Deleuze ao falar de estética da existência presente no pensamento de Foucault. Para Deleuze a noção de estética da existência implica noções éticas e estéticas já que ‘o estilo, num grande escritor, é sempre também um estilo de vida, de nenhum modo algo pessoal, mas a invenção de uma possibilidade de vida, de um modo de existência’, assim, tomando o que o filósofo chama de grande escritor por poeta/sambista, o samba se configura não apenas como expressão de angústia, ressentimento, além, a disponibilização de uma nova vida, estando essa no espaço da possibilidade ou não. Ora, o que se tenta ampliar é a noção de que o samba se faz grande obra, justamente, por mergulhar num âmago, num espaço que o eleva sobretudo dos aspectos pessoais da criação artística, nesse sentido do próprio ressentimento.

Novamente Dona Inah fissura numa canção cujo nome é familiar, Ressentimento. Composição de José Eduardo Rennó e Heron Coelho:

Cansei de falar desse jeito enroscado
E num samba canção dolorido
Vou dizer o que tenho vivido
Por pensar tanto assim em você
Eu sei perdoar mesmo quando traído
Ninguém samba estou decidido
A dizer o que tenho passado
Por pensar tanto assim em você
É sempre nosso parente que sai pela porta
Nossa semente de mangueira morta
E os indigentes que sem coração
Ressentem e dizem frases de beleza torta
De parceria com quem pela porta
Tráz melodia de samba canção

Pronto, aí está um samba que canta o ressentimento. Pergunta: esse samba canta o ressentimento ou exaure o ressentimento? O que me parece é que no casamento com as notas sentidas na audição, a dor transborda letra a letra a originar uma percepção nova, novidade esta que implica a compreensão do que seja beleza torta. Eis que aí parece que estaria o poeta lançando vida nova, trazendo na pressão do ritmo, uma imagem de beleza torta, talvez beleza que escorra da dor como pureza de sentimento.

O que seja a palavra Ressentimento que não a repetição do sentimento. Re- prefixo do latim cujo significado expressa retorno. Nesse sentido, com auxilio do samba cantado por Dona Inah podemos sim compreender o samba como cantador de ressentimento, pois o samba assim estaria repetindo o sentimento de modo a encontrar o novo, repetir noutro tom.

É com Dona Inah que fecho o conjunto de recortes na cantoria do Samba de Mágoas de Eduardo Gudin:

Depois eu vi q
ue não podia mais ficar assim
Feliz demais
Sem perceber que era enganador
Crescia dores por detrás do amor
Quebrando o vaso de jasmin
Anunciando a toque de clarim
Tempo ruim e isolador
Depois eu vi
Não era tanto para desesperar
Depois senti
Ao coração de novo apaixonar
Mesmo que seja para depois sofrer
Agora é hora de cantar
O samba novo jeito popular
De desaguar ou padecer
Sem se arrepender
Olhando a vida sem olhar para trás
Dizendo tudo o que a gente quer dizer
No samba de mágoa que a mágoa se desfaz

Eis que me parece uma das grandiosidades do samba, re-sentir para novo sentir, nas palavras do poeta/sambista de No samba de mágoa que a mágoa se desfaz. Aqui parece que a cortina se harmoniza ao tomar o ressentimento não como fim do samba, mas como meio para uma tal missão que talvez nem mesmo os maiores poetas do samba saibam qual seja, pois tanto em Rilke como em Deleuze a arte parece, aqui no toque do samba (canção), esse movimento necessário e tão desconhecido que revela realidades inacessíveis aos olhares desantentos.

Assim, um desconhecido possuidor, presente no ecoar do samba, seja para além de ressentir a disponibilização de uma nova vida, uma rasgadura no sentir...

Para tanto continuemos a ressentir tantos sambas maravilhosos... sambas que nos lançam em centésimos de segundos a tantos outros mundos desconhecidos, reveladores não apenas os que sejam porventura exteriores, mas ainda, por se fazerem desconhecidos de nós mesmos alocados em espaços interiores.
Carol Gomes

4 de outubro de 2009

Repetição... disseram: Infernal!



Repetir. Aavançar. Repetir...


Olhar. Animar. Voltar. Repetir...


Disseram que repetição infernal talvez estivesse no trilhar, trilhar e retornar ao vazio. Pois assim me parece mais ao modo de Baudelaire descobrir a profundidade da existência ... 'no lugar da vida, o que resta é o local vazio por ela deixado ao afastar-se'


Repetir na exaustão...

Entre a Serprente e a Estrela
Paul Fraser / Terry Stafford - (versão Aldir Blanc)


Há um brilho de faca
Onde o amor vier
E ninguém tem o mapa
Da alma da mulher...


Ninguém sai
Com o coração sem sangrar
Ao tentar revelar
Um ser maravilhoso
Entre a Serpente
E a Estrela...


Um grande amor do passado
Se transforma em aversão
E os dois lado a lado
Corroem o coração...


Não existe saudade
Mais cortante
Que a de um
Grande amor ausente
Dura feito um diamante
Corta a ilusão da gente...


Toco a vida prá frente
Fingindo não sofrer
Mas o peito dormente
Espera um bem querer
E sei que não será surpresa
Se o futuro me trouxer
O passado de volta
Num semblante de mulher...


Enfim...


Dormir de Novo
Por Eduardo Arantes


Eu quero ver uma gota de chuva gigante cair do céu...
Eu quero romper o som da barreira
Eu quero ver um casamento... Saturno vestido com o terno de Urano
E a Terra oferecendo o dedo pra colocar seu anel


Eu quero que o mar olhe pra baixo e veja o céu...
quero que veja aquilo a que contempla no vertizonte
É o que mais tarde tornará profundo...


O céu de ponta cabeça pro mar
escurece um espelho moribundo
O viço é da lua vespertina


A noite é a mulher do mundo
As cobertas ao final da manhã
São só o abraço de quem me deixou dormindo sozinho...


Amanhã eu quero ir pra cama mais cedo...



Carol Gomes

2 de outubro de 2009

Tenho um senso apurado de irresponsabilidades
Não sei de tudo quase sempre quanto nunca

Manoel de Barros (Retrato do Artista quando Coisa – 1998)



Como eu poderia prever que toparia com uma criatura assim? Claro que não, tanto por não ser dada às previsões, ainda pela doçura do encontro com as palavras ‘manoelitas’...


Como ‘um passarinho me árvore’? Esse ‘passarinho me transgrediu para árvore ... ele mesmo me bosteia de dia e me desperta nas manhãs’. Depois dessa jamais um passarinho continuou a ser o que era, tanto mais as árvores que tomam forma de mim, assim não ridículo amar a árvore, ridículo sim ter na árvore ‘manoelita’ aquela habitual árvore. Não creio que esse poeta-pedra despreze a árvore do hábito, abismada fico na percepção de que ele tira outra árvore da própria árvore, sendo que uma nova e diferente, talvez tal como se tirou o fogo da árvore no atrito do aparente semelhante...


Como ser a 'irresponsabilidade'? Ah, não sentar no banquinho de madeira sem o ‘insossego’ de sentar em si mesmo. Puxa Manoel, fizeste do meu mundo o eterno movimento dos eus-outros, tanto para além do só humano, ou melhor, tanto por entre os não-humanos...


Como ‘vou deixando pedaços de mim no cisco’? Se assim, todos os ciscos me são e sou todo cisco, de modo que sou o todo e o todo me é. Loucura, o mundo me é. Por essa ficou devedor ao me enlouquecer. Vesti-me de árvore para chegar em você...


Como ‘Ilha Linguística’? Se não fosse a Rosa, que por instinto revestiu gravanha de espinhos, me dissesse que ‘sabedoria se tira das coisas que não existem’, na certa estaria eu ainda a ler suas páginas sem olhar para o mundo com olhos de quem busca ouvir o silêncio fotografado – o que não existe... será?
Carol Gomes

1 de outubro de 2009

A Sétima Cachoeira
por Eduardo Arantes
.
Imagine as nuvens do fim de tarde escorrendo como aguadascachooeiras semanais...
No leito do riocéu inclinado, a chuva torrencial de fotopedaços do invisível cromolunar...

Ao cre-pús-culo, oorvalho suave
fluxo seu inverter cachoeiraafaria
E as gotas Drop Drop
partiriam-se em duas...
Neusa e Dina apenasdizem:
somos frag-men-tos...
Tusabes qual omelhorremédio...
vai-te em buscaagora...

Não precisarei mais enxugar minha face...
Pois os cabelos, corrediços da montanha, cingem os olhos da água-coresmeralda e limpam teu semblante na sétima cachoeira do ano...
Como nem mil guardanapos fariam...

25 de setembro de 2009

Não sei o que aconteceu.’ Pensei.

Impacto da capa: “Como pensa e vive um assassino”. Nessa chamada nada sensacional que me prendesse. Abaixo a provocação: “Acompanhamos um mês da nova vida de xxxxxxxxx, o (profissão) que matou e esquartejou a amante - e hoje estuda direito e filosofia”.

Pronto! Peguei a isca. Ainda titubeei entre comprar a revista ou contentar-me com a leitura do material digital que a editora disponibiliza. Acabei por ficar com a segunda opção pensando que mais uma revista ocuparia espaço no pouco que já disponho para guardar meus acúmulos, além do quê bate aquela medíocre mania de que seria mais uma contribuição legitimadora desses periódicos semanais que talvez deixem a desejar.

No conjunto da capa a isca me seduziu por quatro inserções: ‘pensa’, ‘vive’, ‘assassino’ e ‘filosofia’. O que se poderia postular a partir da relação destas? Foi nesse sentido que dispus à leitura da matéria. Ah, como parte do conteúdo havia uma foto cujo assassino remetia às tantas outras imagens de filósofos europeus solitários caminhando por ruas e praças vazias.

O texto começa num apelo emocional interessante, descrição suave das características físicas associadas aos trejeitos do ‘assassino’. Diga se não é uma grande sacada começar a matéria dessa maneira?

De cabeça baixa, calva à mostra, ele vasculha uma imensa bolsa preta de alças compridas. Estende a mão direita, olha nos meus olhos e faz um desafio:
– Me acha nesta foto.

Aqui meus parabéns antecipado à jornalista que ao menos de mim tirou ‘luzsegundos’ de comoção pelo indivíduo.

Depois da mestra abertura o entrevistado ao tentar desfazer-se da roupagem de assassino invoca Sócrates como figura injustiçada pela sociedade grega. Oh meu caro, fiquei no questionamento de que Sócrates não fora condenado tão e somente pelo que apresentastes na entrevista, o grego barbudo além de figura mitológica (a que foi transformado), colocara para os homens a questão crucial do que seja Vida e Morte. Nesse sentido creio que Sócrates seria bem mais útil ao contexto. Então, não perguntaria à jornalista se já teria ela lido sobre o julgamento de Sócrates, diferentemente seqüestraria Sócrates na invocação da perturbação: “Que valor você atribui à vida e à morte?” Desse modo estaria tu vestindo-se de Sócrates e aí sim se legitimando a valer do que chamastes de condenação injusta.

Não contente remenda Sócrates com Descartes. Muito boa! Gostei de fato. Eis que aparece o problema. Descartes condenou os sentidos e valorizou a razão, assim fiquei na pergunta do que adiantaria a argumentação de quê surtou ao ser pressionado pela vítima e tendo amnésia temporária retomou a consciência já com o corpo esquartejado em sacos de lixo. Assim meu caro, vejo que tu se condena ao utilizar Descartes, pois Descartes talvez lhe diria num linguajar bem próximo: Quem mandou tu entregar-se às intempéries da vida. Além, lembro-te que Descartes é fonte da ciência que hoje direciona o processo, tanto a jurídica quanto a médica.

A matéria continuou a me prender ao apresentar a discussão da agenda atual com o tema da mente humana. O assassino diz que surtou. Um indivíduo que apresenta condições aparentes de condução satisfatória da vida, tanto que se dedicou aos estudos da própria medicina, julgando eu minimamente ter estudado algo da mente humana e assim conhecedor do seu provável diagnóstico (aparente anormalidade quando exposto às pressões afetivas), assim como depois do assassinato continua a estudar. Voltando à pergunta socrática que creio caber-lhe melhor, diante dos valores da vida e da morte, o que a sociedade hoje remete ao ‘surtei’. Parece-me que tanto Sócrates quanto tu trilharam caminhos diferentes do questionamento. Talvez Sócrates não estivesse surtado tomando as referências gregas ao questionar o jurado o que se tomaria por justiça, tanto menos ao aguardar a cicuta anunciar aos seus admiradores que a morte pudesse ser uma oportunidade de conhecer o desconhecido. Não seria recomendado o destaque de que a figura socrática do qual se utiliza não seja mais platônica do que realmente um homem injustiçado por sua época?

Veja meu caro entrevistado, não estou a julgar-te, estou apenas a divagar com suas falas... forçando meu pensamento a conflitar a inferência que fizestes de ladear um tal injustiçado anterior ao mundo cristão e um tal injustiçado do mundo cristão, posto que lançar a sabedoria como luz às noções de vida e morte, requer bem mais do que um mero recorte histórico. Aconselho-te ousadamente: deixe esses recortes aos teus advogados que na certa eles se dão bem melhor com a retórica.

Desculpa a intromissão, não poderia eu passar indiferente à chamada da capa.
Carol Gomes

22 de setembro de 2009

Então é Primavera...



Hoje não queria eu ter acordado para falar da relação primata do amor e sexo. Muito menos queria eu escrever sobre a posição quadrúpede ou ventral como conseqüência do poderio de um sobre outro. Ah, e como foi cansativo obrigar-me a discorrer sobre uma disfarçada exaltação da individualidade que na real das pretensões deseja a anulação do diferente... enfim, aborrecidamente concluí minha tarefa para logo entregar-me ao que para mim far-se-ia digno ao que o dia exige.


Eis que nos chega a Primavera, na suavidade relembrando o primeiro dia do Inverno que hoje se despede num dia maravilhoso e tímido de Sol, respeitoso com vento e chuva delicada. Naquele 21 de Junho dançante no espaço me chega como que por mágica um galho seco, a magia se fazia tanto pelo inesperado como que pelas contorções da folha no ‘galhinho’, parecia um encontro em si mesmo, as folhas abraçadas ao caule. Recordo bem ter me disposto à contemplação do galho seco durante dias, os minutos que se seguiam eram na certa como acompanhar um espetáculo de dança, ou ainda, a própria dança invisível da natureza... Eis que o Inverno não seria indiferente depois daquela recepção.


Crente que me assumo na linguagem invisível da natureza, tanto pela magia quanto pela sedução, recebo a Primavera não apenas pelo brilho com que as plantas nos saudarão nos próximos meses, ainda pela peculiaridade do colorido palpável da festividade natural e claro pelo colorido com que tantas pessoas se permitem disfarçadamente nessa estação.


O bom Manoel de Barros a traduzir num discurso de recepção as palavras enigmáticas dos que se entregam aos mínimos na busca de uma tal grandiosidade dos dias...


Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas
mais que a dos mísseis.
Tenho em mim
esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância
de ser feliz por isso.
Meu quintal
É maior do que o mundo.



‘Para não dizer que não falei das flores’ fico com o presente da Primavera que ao acaso numa busca desinteressada lança aos meus olhos um novo-velho nome da poesia... Sophia de Mello Breyner


FLORES
Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
Duma manhã futura.

COMO O RUMOR
Como o rumor do mar dentro dum búzio
O divino sussurra no universo
Algo emerge: primordial projecto.



Sejam bem vindos... dias de Primavera!
Carol Gomes

15 de setembro de 2009

Expressiva imaginação perigosa

Uma questão: Qual a medição do inatingível no ser humano?
Dessa ponta lançam-se tantos comentários que ‘volta e meia’ se vêem impelidos pela estranheza da obra de arte.
Diante de uma obra, que por algum traço me inquieta, assumo que fica a borbulhar nessa mente medíocre a envelhecida questão: O que é a Arte?
De tantas inferências excitantes, há uma que muito me toma que fora lançada pelo inglês Sr. Aldous Huxley: “Depois do silêncio, aquilo que mais se aproxima do inexpressível é a música.” Ora, certo que já se coloca outras questões como p. e. a hierarquização das artes, no entanto desfazendo-me dessas questões me prendo na noção de ‘inexpressível’.
Poder-se-ia aproximar inatingível a inexpressível, ou vice-versa? Especulemos... enfim, o que nos resta.

Edward Hopper, Nighthawks, 1942. Art Institute of Chicago

Puxa, utilizando a ferramenta virtual na busca dos comentários que se seguem a essa pintura de Hopper, logo aparece: “Realista imaginativo, esse artista retratou com subjetividade a solidão urbana e a estagnação do homem causando ao observador um impacto psicológico”. Vixe maria! Espanto-me. O que há de real e o que há de imaginário na obra?
Uma cafeteria assegura o status do realismo? Hum, desconfio. A noite faz-se prova cabal do que se apresenta por real? Pode ser. Já sei, o garçom é a prova viva da realidade onde um serve o outro... não, não, muito pobre esse olhar, limitadamente marxista. Na verdade, creio nesse meu olhar ‘esquizo’ que a tonalidade da formatação ‘realista’ dê-se não e somente à uma provável tematização colocada pelo artista, mas ainda aos aparentes traços precisos do pincel. Pronto, acho que por aqui fico contente com o enquadramento do que seja real para a questão. Continuemos... E quanto ao ‘imaginativo’? Eis para mim o doce-amargo da sentença. Imaginado supor um tal ar solitário que envolve meu caro colega sentado no balcão e que descuidadamente nos dá as costas? Imagético construir que entre a donzela de vermelho e seu moço acompanhante, o diálogo seja tal como em David Lynch em que um coelho diz ‘A’ e a outra coelha responde ‘K’. Que nada, imaginário mesmo é crer piamente que o garçom acaba por ser um providencial terapeuta nas longas noites de solidão. Para mim, e aqui gozando com autoridade da autonomia da obra, a realidade não ultrapassa a constatação de que há outras tantas realidades emaranhadas ao aparente gritante silêncio da cena noturna. Ao imaginário coloco o discurso que produzimos pelo olhar pretensioso do espectador que se veste de público. Na verdade, sentencio: o real talvez se expresse no aparente menos real, e o imaginário molda-se na expressão do que não se vê mas que sobressai por uma tal intuição do olhar alheio.
Sim, e a dupla inatingível-inexpressível? Ora, Hopper é legitimado por balbuciar baixinho ao ouvido do seu público que fixa um olhar curioso palavras silenciosas, posto que como Aldous Huxley é na sola do silêncio que se ouve o inexpressível. Quem ousaria dizer que de fato não há expressividade do inexpressível no silêncio de Hopper? Opa, nem tanto, desculpa o exagero. Retomo: Como não se tontear com o sufocante inexpressivo que insiste entrar no ambiente pincelado?
Como poderia eu não evocar meu amado Manoel de Barros e sua fotografia do silêncio. Hopper talvez não tenha pintado o real e nem o imaginário, ouso de que tenha nada mais que pintado o silêncio ora inexpressível, ora inatingível. Tantas outras provocações Hopper escancara na sua obra, porém creio que por aqui me contento.
Depois desse vôo noturno como ave enlouquecida pelo Sr. Hopper, topo com o canadense Rob Gonsales.

Rob Gonsales, Toronto - Canadá

Lá vem novo comentário à autoria como sendo um realista mágico influenciado por Dalí. Estupefatos os srs. críticos de arte. Como ousar sem referencial e aparato teórico para questionada disposição de ‘ladiar’ Hopper e Gonsales? Sei lá... na rebeldia ignorante me vou.
Veja que maravilha, na certa a magia dessa realidade é o tagarelar dos relógios. O real novamente aos meus intimados olhos medíocres é a profundidade que se expressa na base do que temos por solidez. Cadê a solidão de Hopper em Gonsales? Ora, veja ela ali, no movimento do indivíduo que abre a gaveta. Quão inexpressível abrir uma certa gaveta escorada por multiplicidades outras de construções que ao menos não se sabe se reais ou fictícias. Serão as construções imaginações fictícias? Não será um relógio nada mais que dois ponteiros desocupados que rejeitam o árduo trabalho diário e por isso ficam a fixar uma medição que é por natureza mágica?
Sr. Rob Gonsales, pessoa de quem nada sei, a profundidade está no céu ou no chão? A profundidade está na realidade que vejo ou na realidade que imagino?
Certamente eu nada tenho feito mais que apropriar das obras para satisfazer-me por ora na questão inicial do humano inatingível. Objetivamente pode ser que nenhum dos ambos artistas tenham tomado a questão como central, no entanto, a permissão lançada à mente humana elucida que o inatingível talvez seja aceito como um limite tênue entre o real e o imaginado, posto que na verdade a própria realidade seja uma entre tantas construções da imaginação que em alguns momentos veste-se do concreto e noutros veste-se do mágico.
Nessa miscelânea cansativa de divagações a tentativa nada mais era que passear pela frase excitadamente aceita: “A imaginação pode ser tão perigosa que ao querer se tornar realidade, passa a ser uma realidade em si mesma.”

Carol Gomes

28 de agosto de 2009

Certos olhares para lua



Numa dessas noites estavam meus pensamentos, felizes, fingidamente...

"... as nuvens, super enciumadas armaram-se e impediram um quase 'chamego'/'paquera' da sedutora lua. Às 23h consegui avistá-la meio encoberta, lançando-se repleta de artifícios eróticos, aproveitando-se do seu brilho inigualável à expectativa dos seus apreciadores. Um pouco distante, porém visível, estava a 'outra' lua, talvez numa roupagem diversa que não a verdadeira, que aliás me pareceu incremento fundamental para o momento tão aguardado por elas (as luas) e por 'curiosos' de olho no 'namorico' alheio. A outra lua, aparecida só para esse momento, mostrava-se pequenina, no entanto apontava que em alguns minutos estaria pronta para uma dança romântica, fosse ela tomar a outra nos braços ou ser tomada, o interessante talvez estivesse na troca de energias (ultra) naturais de ambas. Depois de certos minutos as nuvens haviam coberto todo o cenário, faziam-se senhoras guardadoras de uma pretensa inocência da sedutora lua. Não consegui mais nem localizar a pequenina que nessa noite chegara ao recinto da fêmea sedutora para uma noite de breve amor. Dei mais um tempo... e nada, as nuvens decididamente não cederiam. Assim me fui, fiquei ainda a aguardar mais um pouco, porém o sono e o cansaço do dia aos poucos me encaminharam. Na verdade me entreguei ao sono na conclusão de que o romance naqueles instantes atingisse o auge, preservado dos olhares de outrem, pois no momento da troca talvez se efetivasse a anunciação de tantos poetas, da entrega como acontecimento de união, onde a matemática não se faz nobre no entendimento de um + um equivaler a um. Fiquei alguns minutos a pensar nesse processo do encontro, da conquista, do romance, da sedução, do requinte ora despretensioso, ainda lembrei das palavras do oficial russo Pietchórin ao lembrar de Vera, lembrei ainda as palavras do Sr. Proust e dos amores que construímos e que por momentos nos perdemos neles e deles... enfim, vaguei pelo universo minutos antes de liberar a alma pelas andanças noturnas, destaque, noites esta em que a lua amava..."

Noutra noite...

"Hoje os deuses comemoram Maio num baile nobre cuja música é maestrada pelos trovões, a iluminação profética conduzida pelos relâmpagos, o vento responsável por embalar os convidados, a chuva, ah essa chuva, tal como a singularidade do erotismo feminino ela baila pelo salão encantando loucamente sua amante, a lua..."

Carol Gomes

18 de agosto de 2009

É meu caro Proust, e quantas cidades erguemos no íntimo do nosso ser, ou melhor, dos nossos seres. Cidades estas que ao passo dos dias ampliam-se, multiplicam-se as esquinas, elevam-se potencialmente as ruas, surgem-nos arranha-céus, erguem-nos monumentos, além do quê, tantas outras edificações, tantas outras construções anunciam-se em ruinas... Eis que nos fica o movimento vivo da vida.
(...)
"E ainda hoje, se numa grande cidade provinciana ou em um bairro parisiense que eu mal conheça, um transeunte que "me mostra o caminho" me aponta ao longe, como ponto de referência, uma torre de hospital, um campanário de convento que ergue a ponta de sua torre eclesiástica na esquina de uma rua pela qual devo seguir, por pouco que minha memória possa, de modo obscuro, achar nele algum traço semelhante à figura amada e desaparecida, o transeunte, se se vira para se assegurar que não vou me perder, pode, para seu espanto, dar comigo, esquecido do passeio projetado ou do caminho a trilhar, ali parado, dante do campanário, durante horas, imóvel, tentando lembrar-me, sentindo, no fundo de mim, terras reconquistadas ao esquecimento, que vão secando e se delineando; e nesse momento, sem dúvida, e com mais ansiedade que há pouco, quando lhe pedia que me orientasse, procuro ainda o meu caminho, dobro uma rua... mas... do meu coração."
(Marcel Proust em No Caminho de Swann)
(...)
Proust, Sr. Proust, observo-te esses três pontinhos que antecede e que logo retornam a suceder o 'mas' e que no complemento encontram o coração.
Carol Gomes

28 de julho de 2009

"E se os pensamentos não brotassem mente a mente? E o que são asas filosóficas, que não recurso real para se chegar além do óbvio? O homem é projeto finito? Será a condição humana o próprio cárcere? E o que não nos vem? E o que não nos vai? Sua vez, diz aí?"

Aceita euforicamente a provocação, opto pela reprodução, ao meu ingênuo olhar, não espantosamente menos digna de consideração...


“Eu imagino sempre que a natureza é um grande espetáculo que parece àquele da ópera. Do lugar onde a Sra. está na ópera, a Sra. não vê o teatro totalmente como ele é; a decoração e as máquinas foram dispostas para dar de longe um efeito agradável, e esconde-se da sua vista essas rodas e contrapesos que fazem todos os movimentos. Também a Sra. quase não se incomoda em adivinhar como tudo isso funciona. Não há talvez senão algum maquinista escondido no parterre, que se incomoda com um vôo que lhe terá parecido extraordinário e que quer muito desvendar como este vôo foi executado. A Sra. bem vê que aquele maquinista é feito os filósofos. Mas o que, com relação aos filósofos, aumenta a dificuldade, é que nas máquinas que a natureza apresenta a nossos olhos, as cordas são perfeitamente bem escondidas, e o são tão bem que se ficou muito tempo a [tentar] adivinhar o que causava os movimentos do universo [...]. Não se acredita mais que um corpo se mexa, se ele não é puxado, ou, antes, empurrado por um outro corpo; não se acredita mais que ele suba ou que desça, a não ser pelo efeito de um contrapeso ou de um motor; e quem visse a natureza tal como ela é, não veria senão os bastidores do teatro da ópera. Por conta disso, diz a Marques, a filosofia tornou-se mecânica? Tão mecânica, respondi, que temo que dela logo tenhamos vergonha. Quer-se que o universo não seja em grandeza senão o que um relógio é em pequenez, e que tudo se conduza por movimentos regulados que dependem do arranjo das partes”
(Leibniz em Carta à Princesa Sofia de 04 de Novembro de 1696)

Retomando a questão da reprodução e ainda da provocação ‘se os pensamentos não brotassem mente a mente’, satisfaço-me mais uma vez com Proust:


“... há menos força numa inovação artificial que numa repetição destinada a sugerir uma verdade nova.”
(Marcel Proust em À Sombra das Raparigas em Flor)

Assim eis a vida, como fortemente já dito, aos condenados que não se aquietam humildemente na aceitação de uma provável simplicidade da existência...
Carol Gomes

17 de julho de 2009

Outrem nas linguagens artísticas



Música, Cênicas e Literatura. Adriana Calcanhoto, Selton Mello e Fernando Pessoa. Aos meus olhos, em comum tão só o faro artístico, ainda o tema, um tema: os Outros, ou melhor, os Eus.


Calcanhoto na suavidade da voz contraposta à intensidade do olhar nos surpreende com o poema musicado de Mário de Sá-Carneiro O Outro:


Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro.



Julgo que de conhecimento da problemática em torno d’Outro, Adriana parece permanecer seduzida e reafirma os Outros-Eus no diálogo das Adrianas, Calcanhoto e Partimpim. Nada mais prazeroso que o mesmo corpo dialogar, entrevistar a si mesmo encarnado, possuído por um Outro originado de um mesmo. Assim fez Calcanhoto ao entrevistar Partimpim. Trechos da entrevista nos revelam o bailar de Um ao Outro, e não menos a denúncia de algumas influências. Desconstruindo a noção de que seu disco fora realizado para o público infantil, Partimpim nos revela:


Sempre esteve bem claro pra mim que o disco não abrigava qualquer desejo de "resgatar" minha infância de uma maneira "proustiana". Mas, quem sabe, eu conseguisse, em um refrão, em meio compasso, por uma semifusa, por um femtosegundo... como uma madeleine que soasse ao invés de cheirar, proporcionar a algum ouvinte de qualquer idade, o tipo de prazer que experimentei ao ouvir música com os adultos, e não só com as outras criancinhas [...] o disco foi feito para eu ser a criança que sou hoje e não a que já fui.


Adriana ainda invoca no quebra-cabeça do seu site, versão Partimpim, o feito dos artistas japoneses que segundo a mesma “mudavam de nomes várias vezes na vida”. Ora, a cantora, num ato artístico lança aos interlocutores o convite para reflexão de Outrem: Este está fora ou dentro do Eu? Outrem seria um Eu? Quantos Eus-Outros carregamos em nós? Quantos e quais Outros seriam meus Eus? E os tantos Outros que carreguei e foram ficando para trás? E assim tantos e mais questionamentos...


Trazendo para o diálogo com Adriana retomo Selton Mello em entrevista publicada na Revista Bravo (edição 143 – jul/09), cuja chamada de capa escancara “Cuidei melhor dos personagens que de mim”. Ora, como passar os olhos e não estatizar por instantes nessa provocação audaciosa? Logo pensei: Quantos personagens dou vida, se na existência de havê-los?


Lá pelas tantas da entrevista o autor após falar da opção pelo cinema e distanciamento da TV nos engasga:


Velho, caí em contradição! Pretendo me contradizer mais 15 vezes ao longo da entrevista. Na realidade, meu sonho é conversar com você novamente daqui a cinco anos e desdizer cada frase que disse até agora.

Na verdade a fala do ator me faz voltar na Adriana e me perguntar tanto mais: O Outro habita no Eu numa simultaneidade ou se faz em ciclos correspondentes? Selton continua: “vários aspectos de minha trajetória devem dialogar com o moleque rejeitado de antigamente”. Talvez aqui possamos alçar vôos ousados...


Será muito irracional discorrer sobre a aceitação de Outrem contido no Eu?, aliás, vários Outros num suposto Eu.


Talvez não desinteressadamente essa problemática seja tão bem ilustrada pela Arte; percebe-se a facilidade da compositora no desenvolvimento do tema, percebe-se a naturalidade do ator ao tratar a contradição como movimento dos seus Outros-Eus, é nesse aspecto que a criação artística mostra sua prazerosa dança pelo pensamento humano. Liberta das amarras dos conceitos, que por hora de primazia da Filosofia, invade os interlocutores, que desinteressadamente se envolvem, se deixam refém das provocações e se elevam sutilmente ao êxtase reflexivo. Quem sabe essa liberdade invasiva seja parte constituinte do “movimento, do devir, sempre inacabado que não se faz na mera reflexão do vivido, mas além como extrapolação da matéria vivível ou vivida” nas palavras do filósofo Gilles Deleuze.


A questão parece tomar formato, o problema de Outrem como não sendo apenas de domínio da Arte, é no entanto explorado por ela num movimento de aparente suavidade que desveste os Outros e os lança como puros, ou talvez, crus ao olhos do Eu.


Como atingir a outra Adriana, a Partimpim, se a Calcanhoto não houvesse na criação artística extrapolado o seu vivido para revelar-se como criança-adulta (ou adulta-criança). Ou então, como identificar o movimento velado dos Outros Selton Mello se o conflito não houvesse se dado na contradição dos seus personagens, subjugar o Selton e cuidar melhor dos personagens.


Mais uma vez interpomos a questão da Arte ... o que é?


Continuemos sem resposta, na busca desta, e para não cair no vazio textual, já que fora citado no início desse esboço, aqui arrolamos Pessoa, na sua maestria, que certamente pairava nos pensamentos de Adriana, ou que como sombra passeava pela sala no desenrolar da entrevista de Selton.


De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade
De eu ter passos comigo?
Carol Gomes

13 de junho de 2009

Adendo... Amor e Tempo



“As palavras são como fazer amor”; assim foi apresentado D. H. Lawrence, pela voz daquela louca-sedutora bailarina que na juventude incompreendera o amor do velho-jovem. Como a memória me ajuda vivificar aquela dança do vestido vermelho, o olhar voluptuoso a envolver e simultaneamente expulsar o outro que a sua frente insistia em contemplá-la. Depois de algumas cenas o olhar desconfiado, bem à mineira, se fez inevitável quando da figura um tanto promíscua e pobremente mundana que o artista-diretor insistiu (inconvenientemente) nas cenas cuja bailarina não menos sedutora assumia a vestimenta de ‘beberrona’. Na busca da figura artística tudo começa com o relógio dando lentos passos no sentido contrário ao que habitualmente nos acostumamos acompanhar. Um imenso relógio, que quando retirado o pano que cobria tão inigualável provocação, boquiabertos ficaram os medíocres que esperavam uma super-industrial-tecnológica descoberta. Magnífico! Tudo surpreendente naquele instante. O relógio forçando que as pupilas se lançassem a um movimento desconhecido, qual seja, o anti-horário. Nesse contexto é que Lawrence, pornográfico, depravado, me surge na boca da bailarina, que ouso, tentou ao seu modo dançar sintonizada ao ritmo contrário dos ponteiros. Ora, se bailou no coração do velho-jovem, ao menos pisou delicadamente na força contrária de quem também almejou ganhar, amar, além das regras do Tempo, vencida pela condição herdada da mortalidade.



Invocar Lawrence na proposta de diálogo do Amor e Tempo, como fazê-lo? Não sei, sinceramente. As palavras do comentador é que me suscitam, deleuzeanamente me violentam as idéias, sim: “Lawrence glorifica a alegria dos corpos durante o sexo, o que para ele é uma das leis eternas da natureza.”


Leis eternas... esse tal sr. me provoca aderir ao movimento contrário dos ponteiros, ou mais ainda (assim julgo) forçar uma parada temporal, sem recriminações reais, sem prisões psicológicas. A alegria dos corpos durante o sexo, ainda, a alegria dos olhos quando do encontro um no outro, a alegria da sedução quando do duplo querer, toma artisticamente o caráter atemporal, sendo portanto eterno na aparente não eternidade.


Um outro tal sr. Paul Ricoeur me aparece transliterato dizendo alto e em bom som: “o tempo só se torna tempo humano na medida em que é articulado de um modo narrativo”. E agora José? Ensurdecedor continua violentando meus ouvidos, martelando meus pensamentos: “haveria uma certa continuidade entre os acontecimentos esparsos em que as vidas humanas se vêem envolvidas e a narração de histórias constituídas pela tessitura de um encadeamento entre episódios em tudo semelhantes aos acontecimentos de uma vida singular”. Ao que me parece, Paul Ricoeur encontra a bailarina sedutora, dá-lhe as mãos, convida Lawrence para um brinde, e não satisfeito toma o gigante relógio anti-tempo e ergue, como ensinou um anônimo, no marco zero de uma entre tantas cidades imagéticas. E ali regam goles a goles o diálogo Amor e Tempo.


Eu, como mosca invisível, não aquela que pousou na sopa, mas aquela curiosa que todos num momento ou outro desejamos travestir, fiquei a ouvir o diálogo. Eis que o Amor desenvolvido como espaço liberto de temporalidade. Eis que o Tempo força rígida que impõe veladamente seus limites. O Amor enlouquecedor dos sujeitos que o ousam, o Tempo torturador dos sujeitos que também o ousam. Então, mortais os sujeitos que ousam duplamente Amor e Tempo, pois assim iniciam sábios da loucura e da tortura que os aguardam. Eis uma questão: a loucura do Amor e a tortura do Tempo não é justamente a garantia de se colocar além do espaço dissimulador da realidade?

Que venham mais... artistas, artistas... que me venha a Arte mostrar o que a realidade por si não se propõe, não por indesejável bondade, tanto por condicionalidade...

Carol Gomes