23 de novembro de 2009

Arte, invasora de um tal espaço filosófico

Aprendi com Rômulo Quiroga (um pintor boliviano):
A expressão reta não sonha.
Não use o traço acostumado.
A força de um artista vem das suas derrotas.
Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.
Arte não tem pensa:
O olho vê, a lembrança revê, a imaginação transvê o mundo.
Isto seja:
Deus deu a forma. Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo.
(BARROS, 2010)

Eis o questionamento: O que é a Arte?

No diálogo Filosofia e Arte algumas considerações da História da Filosofia apresentam reflexões que contribuem para o entendimento desse questionamento. Nesse sentindo três filósofos amadurecem a questão: Albert Camus, Michael Foucault e Gilles Deleuze; assim como no primado pelo diálogo entre as áreas, dois escritores e um artista plástico, também contribuem discutindo a mesma questão que os filósofos, porém sob o prisma da criação artística, sendo: Manoel de Barros, Marcel Proust e Istvan Orosz.
Albert Camus em “O Homem Revoltado” responderá que a Arte é movimento que exalta e nega simultaneamente (CAMUS, 1996, p. 291). Essa simultaneidade é característica da revolta camusiana na recusa do mundo pelo indivíduo. A revolta não é tomada como fuga do mundo real, mas ainda, exige a unidade do estar no real e no para além do real.

Em toda revolta se descobrem a exigência metafísica da unidade, a impossibilidade de apoderar-se dela e a fabricação de um universo de substituição. A revolta, de tal ponto de vista, é fabricante de universos. (CAMUS, 1996, p. 293)

Na obra “O Mito de Sísifo” o filósofo apodera-se do mito e apresenta o personagem como o ‘herói absurdo’. Em Camus, Sísifo assume a vestimenta de homem revoltado, uma revolta consciente da sua condição existencial, posto que Sísifo fora condenado à eternidade rolar um rochedo no inferno. O personagem mitológico ousa o poderio dos deuses e encontra mesmo na condenação a unidade metafísica do seu existir, sendo que na eterna condenação, nos segundos entre o ‘parar’ do rochedo e a descida que retomaria desde o sempre ao esforço condenado, o herói absurdo toma consciência de que ainda há felicidade. Sísifo revolta-se contra os deuses e seu destino, revolta-se contra o seu real, mas não apenas, a busca do personagem é a superação do destino, e é nessa busca que o mesmo se faz herói. O heróico é compreender o absurdo da existência e revoltar-se, não apenas negando, ainda ampliando a realidade, sem fugir, num movimento de recriação do mundo.

Camus utilizando a herança de Nietzsche identifica no artista a intolerância ao real, assim como apresenta que “não há destino que não se transcenda pelo desprezo” (CAMUS, Lisboa, p. 149). Ora, o que o filósofo argelino aponta é que a criação artística não tolera a reprodução inútil do real, mas ao artista cabe refazer o real, apresentar na sua criação o que o mesmo não encontra no mundo. A reconfiguração do mundo é a compreensão da unidade tão necessária que Camus insisti. Para este não é suficiente negar o real, tampouco imaginar, ambos os caminhos são caracterizados por fuga vazia da realidade. O movimento revoltado da Arte é portanto, negar e reafirmar o mundo, colocar-se posto para “escrever um manual qualquer da felicidade” (CAMUS, Lisboa, p. 150), unindo o desprezado ao desejável.

Marcel Proust, escritor francês, no primeiro volume intitulado “No Caminho de Swann” que compõem a obra “Em Busca do Tempo Perdido”, parece endossar o problema da negação do real assim como Camus:

Como o público só conhece, do encanto, da graça, e das formas da natureza aquilo que pôde absorver nas imitações de uma arte lentamente assimilada, um artista original começa por rejeitar essas imitações. (PROUST, 2003, p. 211)

O apontamento de Camus provoca na compreensão de que a Arte é a anfitriã da revolta humana, responsável por abrigar a revolta e ainda apresentar-lhe condições de reinvenção do mundo, em um movimento de saída e retorno ao mundo, ensinando o quão, apesar de desprezível, o mundo contém em si mesmo a felicidade.

Ainda em “O Homem Revoltado” Camus nos fala de transcendência, fala em vibrações que nos escapam no silêncio pronunciado repetidamente do mundo. Essa constatação é a própria reafirmação do real, a contestação do aparente real, do aparente silêncio do mundo, mas simultaneamente a afirmação da tal transcendência viva, o falar repetido do mundo, a emissão das mesmas notas mundanas, a promessa da beleza que “pode fazer com que esse mundo moral e limitado seja amado e preferido a qualquer outro” (CAMUS, 1996, p. 296).

Maria Luiza Borralho na obra “Camus” de 1984 apresenta o histórico do filósofo-escritor Camus, e destaca que aos 23 anos esboçara no caderno um plano de criação, qual seja: “Obra filosófica: o absurdo; Obra literária: força amor e morte sob o signo da conquista. Nos dois, misturar os dois gêneros respeitando o tom particular” (BORRALHO, 1984, p. 190).

Com essa problematização Camus amplia o primeiro questionamento “O que é a Arte?” para “Como dialogar Arte e Filosofia?”. Logo nas primeiras páginas de “O Mito de Sísifo” o filósofo deixa a indicação que o absurdo é o divórcio entre o homem e a sua vida, entre o ator e o seu cenário. Nessas palavras é possível identificar o elemento filosófico do absurdo o transliterando para outro questionamento existencial camusiano: A vida tem sentido?

Se de um lado a Filosofia escancara o hiato entre homem e vida, por outro a Arte conduz à re-significação desse hiato. Segundo Camus a Arte conduz à origem da revolta, no entanto uma recondução que desvela o movimento harmonioso possível de amor e morte na conquista da felicidade no mundo real.

Camus surpreende euforicamente ao apresentar as noções de absurdo e revolta, no entanto, a presença de elementos existencialistas atenta, sobretudo para o espaço reservado tanto à Filosofia quanto à Arte como um momento segundo do indivíduo. Ainda em “O Mito de Sísifo” o autor sentencia: “Ganhamos o hábito de viver, antes de adquirirmos o de pensar” (CAMUS, Lisboa, p. 18). Também em “O Homem Revoltado”: “O romance é antes de tudo um exercício da inteligência a serviço de uma sensibilidade nostálgica ou revoltada” (CAMUS, 1996, p. 304). Essas passagens camusianas remetem às noções existencialistas traduzidas em ‘vivência’ e ‘reflexão’. Assim, Arte e Filosofia se nos aparecem não como atividades intrínsecas ao homem, necessárias, originárias, mas como resultantes do processo de revolta, sendo esta sim originária, imanente ao homem.

Dialogando com Camus interpõem-se o adendo: A Arte não provocaria essa revolta no homem ao invés de abrigar e reinterpretar a revolta?

Michel Foucault em entrevista de 1966 intitulada “Um Nadador entre Duas Palavras” deixa sua contribuição ao adendo. Ao falar sobre Breton e o Surrealismo destaca o ato de escrever não como um ato de comunicação, mas um ato de experiência que transforma; a escrita como um movimento de descoberta de si mesmo. Referindo-se ao escritor surrealista, ele aponta para uma crença na escrita em si mesma, a obra como caráter efetivo de intervenção no mundo, contrapondo a concepção da escrita como instrumento de refletir o mundo, de decomposição e recomposição. A sentença maior de Foucault à noção da escrita literária é que a obra por si só toma um caráter de antimatéria do mundo e pode compensar todo o universo, fundamentalmente porque ela não é apenas parte do mundo que reflete sobre este, mas porque o escrever é tido como ato bruto e nu, que encontra no escritor toda a liberdade de enfrentar o mundo nele mesmo (FOUCAULT, 2006, p. 245). Consoante, Manoel de Barros escreve:

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que
catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro
botando ponto final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os
vazios com as suas peraltagens
e algumas pessoas
vão te amar por seus despropósitos.
(BARROS, 2010)

Manoel de Barros, escritor brasileiro nascido em Cuiabá (MT) em 1916, durante entrevista em Agosto de 1996 diz que explora “os mistérios irracionais dentro de uma toca que chama lugar de ser inútil. Exploro há 60 anos esses mistérios. Descubro memórias fósseis. Osso de urubu, etc. Faço escavações”. Nessa fala o escritor remete a alguns filósofos que dialogaram com a Arte e que identificaram nesta um caráter invasivo, à força de negar e desvelar ao indivíduo universos outros. Com Manoel de Barros retoma-se o que Camus e Foucault apresentaram da relação com o mundo, a negação do real, o superar o real como que em um movimento ampliador, e vislumbra-se que esse seja um elemento considerável que possibilite à Filosofia dialogar com a Arte. O movimento desta de subjugar o mundo estando nele, sendo parte dele, assim como ousando mostrar possibilidades.

Retomando Proust, reconfigura-se a questão “O que é a Arte?” no diálogo com Camus, Foucault e Manoel de Barros. Sobre a força invasiva da Arte, Proust apresenta na sua obra essa força que invade; a obra artística se nos aparece como a abertura de outros mundos até então desconhecidos do indivíduo, como que “movimentos incessantes de dentro para fora, no sentido da descoberta da verdade” (PROUST, 2003, p. 85).

Em Proust o artista assume o viajante que alça vôo em busca de caminhos desconhecidos e que só ele penetra, de maneira que a obra é a materialização dessa viagem desmaterializada; assim, a Arte invade na medida que disponibiliza e violenta o indivíduo para perspectivas até então desconhecidas.

Nesse tipo de tela colorida de estados diversos que, enquanto eu lia, minha consciência ia desenrolando simultaneamente, e que iam desde as aspirações mais profundamente escondidas dentro de mim até a visão inteiramente exterior que eu tinha do horizonte diante dos olhos. (PROUST, 2003, p. 85)

Gilles Deleuze, filósofo leitor de Proust, no livro dedicado a este último “Proust e os Signos” a Arte assume a primazia de revelar a verdade. Deleuze identifica no escritor a existência de um mundo geral constituído por outros quatro mundos, sendo três materiais e um imaterial. Haveria portanto o mundo mundano, mundo do amor e o mundo sensível, todos no plano da materialidade, restando o mundo da Arte no plano da imaterialidade. A diferenciação entre o mundo material e o da imaterialidade é que o primeiro, ora se faz vazio quando mundano, ora se faz mentiroso quando amoroso, ou no mais avançado da materialidade se faz sensível, porém ainda insuficiente para a verdade. Já o mundo da imaterialidade encontra seu sentido na busca da verdade que é uma essência nada material.

Na leitura deleuzeana, Proust apresenta a busca da verdade apenas por intermédio da Arte, subjugando inclusive a Filosofia que tradicionalmente carrega consigo tal prerrogativa. Deleuze entrelaçado a Proust argumenta que a Arte invade o indivíduo, o mesmo desenvolve uma noção de idéia de violência necessária ao indivíduo para o exercício do pensamento. O pensamento não alcança a verdade por amor a esta, mas o pensamento se propõe a buscá-la quando violentado para tal, assim, a verdade é almejada segundo a configuração de uma necessidade, quando o indivíduo é forçado a buscá-la.

A noção de necessidade, violência, invasão, se justifica no próprio estatuto da imaterialidade da verdade, pois esta não é material, não é visível, ao contrário, é preciso que a decifre, a verdade exige interpretação, revelação, o trilhar de um caminho obscuro.

A Filosofia atinge apenas verdades abstratas que não comprometem, nem pertubam […] Elas são gratuitas porque nascidas da inteligência, que somente lhes confere uma possibilidade, e não de um encontro ou de uma violência, que lhes garantiria a autenticidade. (DELEUZE, 1987, p. 16)

Para Deleuze, em Arte, a inteligência é apresentada nunca antes, apenas depois, porém diferentemente de Camus, a Arte não é reflexão que assume a responsabilidade de recondução ao mundo pós revolta, ao contrário, a Arte é que força a inteligência para buscar a verdade que é obscura. Nesse sentido, Deleuze e Proust se aproximam de Foucault quanto à compreensão do ato artístico como momento puro de experimentação, como força que pressiona o indivíduo ao pensamento.

Ainda na obra de Proust, a Arte com o seu caráter invasivo de acesso à verdade, faz-se o veículo de acesso a Outrem. Deleuze evoca o problema filosófico leibniziano da comunicação entre as mônadas, que são fechadas em si mesmas, sendo que em Proust a Arte vai de encontro a esse fechamento e abre janelas de comunicação. Nesse sentido, recorrendo ao diálogo entre Arte e Filosofia.

Nossas únicas janelas, nossas únicas portas são espirituais: só há intersubjetividade artística ... Só pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que vê outrem de seu universo que não é o nosso, cujas paisagens nos seriam tão estranhas como as que porventura existem na Lua. Graças à arte, em vez de contemplar um só mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se. (DELEUZE, 1987, p. 42)

Na obra Universe do artista húngaro Istvan Orosz é possível mais um diálogo da Arte com a Filosofia, um diálogo revelador, provocador, invasivo por intermédio de questionamentos aparentemente filosóficos. Na obra encontra-se a discussão de Proust cuja Arte revela mundos outros desconhecidos do indivíduo.

Istvan Orosz – Universe

O presente trabalho é uma tentativa de refletir sobre uma provável problematização do diálogo entre Filosofia e Arte, expondo aspectos convergentes de ambas no trato de problemas comuns, assim como demonstrar que por constituírem áreas diferentes do conhecimento, apresentam perspectivas peculiares, e que ainda sim, seja possível a integração quando dispostas às questões pertinentes ao homem.

A proposta se fez no destaque de três filósofos cuja ressonância encontra-se em três artistas, tendo evidenciado que tanto as Artes quanto a Filosofia, se veem envoltas de questionamentos humanos, porém, o elemento diferenciador faz-se justamente na perspectiva diferente de resposta ao problema, assim como na possibilidade de entrelaçamento de uma área à outra diante da proposição de determinado problema.

Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei em escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. (BARROS, 2003)

Nas palavras de Manoel de Barros evidenciamos a perspectiva de que o filósofo não se faz mais ou menos que o artista, e sim que buscam possibilidades que ampliam o conhecimento do homem de si e do mundo.

Carol Gomes

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