31 de dezembro de 2011

Um sabor Cordeiro para uma lembrança que chega atravessando...

Em pontos segue um relato pouco fidedigno aos fatos, embora real.

Pontuação primeira
Já final de tarde, inesperadamente foi chegando um bronzeado pelo Sol, barba branca, esguio, timidez sobressalente. Para a criança que apontava suas 13 unidades viventes em marcações de cronos, tratava-se de um fato; de há muito esperado. Em certo, um universo novo chegava junto da mochila de coro surrada, suja das andanças roceiras.

Duas gerações separadas por estradas sinistras da Vida. Um breve e baixo ‘Olá’ marcava o encontro. Claro que para ambas (gerações) estava posto, era aquilo e tudo o mais que haveria de vir, a admiração recíproca que anos depois se manteria em silêncio brilhante.

A convivência de dias breves contados na folhinha não filtrou como barragem o encontro, entre 1917 e 1983. Desde então, seguiu-se uma parceria, de longas conversas, histórias e estórias fiadas, tal qual mestres fiandeiros. Sim, a criança havia muito de aprender, caminhar pela roça e usar o famoso estilingue, compreender a utilidade da espingarda, o significado predador na caça ao veado, ao bandeira (isso, o tamanduá). Dos tantos aprendizados, como o caminhar da cidade para a roça, no Sol, carregando a moringa de água e a mochila de couro surrada, seguiu-se o inesquecível prazer do cultivo de melancias. Muito mais que um hábito de plantador, para a criança, tratou-se de magia. Adentrar a cerca que marcava o limite da terra e de imediato iniciar um dos tantos rituais do roceiro, aquele de dar-se à sua roça, ao plantio do sustento.

Como fotografia, certamente se teria a bela imagem em cores reveladas num verde na parte inferior da fotografia, uma luz intensa de três horas da tarde, dois ─ um velho e uma criança, agachados no meio da plantação.

Como foto, indiscutivelmente, haveria de passar o ensinamento dos que vivem, uma Vida vibrando tempos reencontrados.

Como cinema, talvez, páginas da literatura esvoaçantes. A criança como mágica invadida pelo aprendizado de receber da natureza o momento certo de colher a fruta; duas batidas na melancia, que soando oco, expressa: ‘Sim, posso ser colhida’.

Bem que do outro, do velho, quiçá havia o rodeio de conjecturas sobre a criança vinda da cidade. Hábitos diferentes, noções ausentes sobre a terra, sobre os animais, sobre a cantoria dos pássaros, sobre a dureza do sertanejo do ‘interior-do interior’ das Minas... das beiras de rio entre João Pinheiro e Pirapora; mas em certo, ele sabia que ali estava a origem daquela criança, estranhada com tanta novidade.

Do terreiro em frente à casinha de chão batido, o velho re-via, outras crianças correndo, brincando, fartando-se com a diversidade frutífera. Naqueles dias, ele via em outras cores, crianças das suas crianças de 60 e 70. Ele via, duas gerações, de certo teve dias de costuras temporais, como que vendo o tempo caminhando em matéria... e da criança que tivera sido na beira dos rios, íntimo à vida indígena, agora ensinava à continuidade tão diferente, o convívio com as galinhas de angola. Ensinava, entre muitas brincadeiras, a de jogar cartas para que o tempo passasse em partilha, em coletivo, afinal, na roça, não se joga cartas sozinho, há sempre um parceiro. E entre as gerações, ficaria a pergunta sobre a passagem do tempo: por que passar o tempo nas cartas?

A manhã amanhecia bem mais cedo que as manhãs da cidade. O café no fogão à lenha, o pão de dias anteriores levados da padaria da cidade, enquanto que um bolo de fubá em minutos sairia quentinho. Assim se deu o aprendizado do café, associação que se seguiu anos, tanto quanto a clássica frase do velho: “Eita café doce, café de mulher apaixonada”.

Tempo corrido, múltiplos fluxos, inexplicáveis curvas, e aquela criança sente a ressonância dos dias de 1996 no choroso-alegre som da viola caipira. Como relato-recontado, imerso na magia descompromissada com qualquer verdade postulada de palavras, atravessa como que guiada pelo vento a lembrança do velho, do velho Cordeiro, vivificadas em trechos cantados na voz daquele que repinta as modas da viola caipira.

Conhecer as manhas
E as manhãs
O sabor das massas
E das maçãs
É preciso amor
Pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir
[Tocando em frente; Renato Teixiera e Almir Sater]


Pontuação segunda
O velho que outrora recebera a criança, fora, em tempos outros, recebido pela criança, já não tão criança, na cidade grande, na sua grande cidade. O velho que então marcara pelo uso de roupas surradas, botina sempre suja, mostrava-se na cidade com camisa e calça de tecidos que exigiam atentado trato do ferro doméstico para roupas.

Inevitavelmente a já não mais criança, olhava e titubeava, entre o velho de camisa engomada e o velho de camisa suja; algo em comum aos velhos, o chapéu. O chapéu que mais que um acessório, também se apresentava renovado, como a camisa. Na roça, o chapéu mostrava-se em palhas; na cidade, meio aveludado, num tom quase engomado como a camisa. Sim, o chapéu, a marca do velho que sempre em baixo tom falava calmamente das coisas e também das não-coisas.

As longas conversas pareciam também terem encontrado outros rumos. Já não era mais possível falar das melancias, dos abacaxis, das fruteiras, nem tampouco dos carteados, a criança de então demonstrava disposição para outros assuntos, entre os quais, a política nos tempos do velho. E então, a prosa fiada era adornada pela declaração de que Getúlio Vargas era sim um pai, um querido por quem o velho havia caminhado dias para vê-lo passar em desfile pela cidade mais próxima, animado para ver ao menos uma vez, o grande presidente.

Certamente que apenas após outros tantos anos, aquela criança já crescida, conseguiria compreender a adoração ao presidente, o universo que rondava o sertanejo que jamais entrara numa escola na figura de aprendente.

Na cidade, o velho olhava para a criança com ar de admiração. A criança dominava e se desenvolvia com maestria no meio de tanto concreto e barulho, tal qual ele se desenvolvia na roça, no mato, entre plantações e bichos. Num dos momentos de diálogo admirado, recíproco, bem certo, o velho soltou naturalmente uma fadiga para a criança; fadiga esta que se fez marco: ‘aqui não se pode ver a vaca mascando o capim’. Aquela criança que já ia com suas duas décadas, percebeu que novamente o tempo se colocava entre ela e o velho. Na roça a vaca mascava não apenas o capim, ainda, os pensamentos sertanejos, as modas de viola, enfim, a própria Vida, vivida, vista e pensada, sobretudo após as dezoito horas, quando a iluminação era apenas da Lua ou das lamparinas. Na cidade a vaca em seu universo sertanejo inexistia, mas para a criança, a vaca poderia ser retomada, noutra forma, trazida a ruminação, em termos de contemplação. E lá estava, o velho, mais uma vez ensinando.

O que se tem não é uma tensão polar entre campo e cidade, antes, é um entrelaçamento do tempo, um tempo que encontra e re-encontra intensidades, aparentemente, tão distantes. Vê-se, pois, a roça na criança da cidade, tanto quanto vê-se a cidade no velho do campo, entrelaçados, bem certo, por hábitos de família, e não somente, ainda por ressonâncias ruminantes dos que vivem dando-se à Vida, sem deixá-la escapar ao pensamento.

Sonoro proseio dos caipiras de cidade grande, Pena Branca & Xavantinho, que da interiorana Uberlândia, tonalizou fadigas sertanejas, vividas, vistas e pensadas nas cidades, nas estradas, nas roças, nos espaços...

Pra ser um palhaço
Um carlito, um caipira
No grande circo da vida
Tem que ser louco e não ser
E o povo todo sendo o Jeca com você
Era uma coisa muito linda de se ver
[Mazzaropi; Pena Branca e Xavantinho]


Pontuação terceira
Da cidade grande, a criança crescida, distanciou-se do velho rumando outra cidade, uma grande cidade. Antes, chorou-lhe em público a admiração que até então disfarçava; e seguiu, desbravante em intensidades do coração.

As notícias que chegavam, davam-se como pedidos do velho que surpreendido pela fragilidade orgânica, expressava em vestes brancas uniformizadas, o desejo de mais um encontro. Confundindo as cidades, as grandes, ele dizia em gênero, Norte... sabia o rumo que tomara a criança crescida, mas não sabia identificar no mapa.

Desavisada de tudo, a criança, por motivos tantos resolvera retornar para a cidade grande. No primeiro trecho de um retorno que se alongaria por 2 dias, telecomunicou. Se no primeiro encontro um breve e baixo 'Olá' fez-se marco, do telefonema a secura de mais um marco silenciava a voz e umedecia o olho da não mais criança, que em segundos, numa cidade não grande mas turisticamente religiosa, em terras de sertanejos de Padre Cícero, chorou, não como as lágrimas do primeiro dia que correra das vacas bravas de quem o velho a protegera; chorou pelo aparecimento de mais uma estrada sinistra que marcava o desencontro entre dois que em presença pareciam distantes, mas que em afetos mantinham-se grudados.

Dois dias caminhantes por uma nova estrada, nova sintonia, ainda que conhecida em forma. A criança que naquela altura já sentia calejos do tempo, sentiu uma fadiga, talvez aquela mesma fadiga do velho quando falou da vaca na cidade grande. Compreendeu então, que ali estava falando do tempo que vai nos passando e que nem sempre os observamos, não por mero olhar, muito antes, por compreensão aos recortes dos dias, da Vida. Por certo, o velho estava dando àquela criança, seu mais nobre ensinamento, o de que a Vida há de ser vivida, mas também há de ser pensada.

A criança que chegara dois dias depois, não mais encontrou o velho, tampouco seus lentos, baixos e discretos descolantes momentos de Vida... havia encerrado, embora tivesse deixado o elogio de ter visto na criancinha a ruminação faminta dos que sentem a força da terra.

O velho era um avô, e a criança, uma neta. A neta a quem o avô não viu nascer. O avô a quem a neta não viu morrer. Ambos, quiçá mantiveram lembranças vivas guardadas em nomes que vai-e-volta se reencontram...

Mais alguns tantos anos depois, o universo sertanejo-roceiro-interiorano é retomado, não apenas de modo ativo, talvez o universo tenha se deslocado ele por ele mesmo, até as vagas andanças pensantes daquela criança-neta que vivendo novas e antigas fadigas, tem vacilado nos tantos ritmos da Vida, ora acelerado, ora desacelerado, ora desritmado, ora sem ritmo, ora cansado, ora desconhecido, ora repetitivo... ora ora ora... e como se o caipira avô, Cordeiro, se mostrasse como uma atravessante lembrança em dias de necessários territórios sobreviventes; qual seja, uma urbanóide em nostalgia de sua origem interiorana.

Pra todo aquele que só fala que eu não sei viver:
Chega lá em casa pruma visitinha,
Que no verso ou no reverso da vida inteirinha,
Há de encontrar-me num cateretê
[Vide-Vida Marvada; Rolando Boldrin]



Carol Gomes

18 de dezembro de 2011

Sobre bibliotecas, ciclovias e praças com botequim:
para a salvação das flores secas ─
o que se chama de êxtase fotográfico

Acredito sim na revolução... com bibliotecas, ciclovias e praças com botequim. Bibliotecas para experimentarmos o tempo. Ciclovias para experimentarmos os fluxos materializados, e não apenas. Praças com botequim para experimentarmos o esquecimento das agendas e brindarmos a Vida! com música e sorrisos, muitos. As flores secas, tomadas como coloridos ofuscados por escolha.

Sabe aquelas falas-frases que pessoas jogam ao léu? Pois é, em uma leitura curiosa, porém sem pretensões, topei logo na primeira página com discreto cinismo-realista do Barthes. Lá vai: “a vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões”. Ora, eu quem tinha iniciado a leitura desordenadamente, caminhando seduzida pelos títulos dos pequenos capítulos, fui surpreendida, para não dizer que certa vertigem me abraçou.

Caí nos braços do Barthes brigada com outro filósofo. O motivo: fotografia. Certo que a briga será retomada em outro momento, cujo tempo esteja favorável, para retorcer tal filósofo e, certamente, cuspi-lo, como ritual de atravessamento, de ‘desbunde’ e adesão aos seus próprios ensinamentos, entre os quais, retomá-lo no simulacro mais infiel, contestando, rasgando, rebelando. O fato é que desejosa de encontros chegou-me em total acaso, a ‘A câmara clara’ do Barthes; texto escrito em 1979.

Quanto mais lia, mais as palavras se mostravam familiares: “Em relação à fotografia, eu era tomado de um desejo ‘ontológico’: eu queria saber a qualquer preço o que ela era ‘em si’, por que traço essencial ela se distinguia da comunidade das imagens”. Se quer eu me preocupava com os termos ‘essencial’ e ‘distinção’; em verdade percebi que naquela presença de leitura estava enfraquecida da crítica à representação e não me reprimiria. Sem titubeios, Barthes dialogava comigo, e me acalmou: “eu dava testemunho da única coisa segura que existia em mim (por mais ingênua que fosse): a resistência apaixonada a qualquer sistema redutor”.

Como um termômetro totalmente desregulado, a agitação na leitura atingia picos, do alto ao baixo, repentinamente. Leitura saborosa, embora, conflitante, entre o que lia e o que tomava como acervo de leitura.  

Escutei de um fotógrafo-técnico a noção de ‘hora mágica’. A hora singular da luz natural para a captura fotográfica. A tal ‘hora mágica’ me instigou por vislumbrar o entrelaçamento da arte com a natureza, uma criadora da outra em simultaneidade. A ‘hora mágica’ como reunião difusa da potência de luz da natureza, difundida nas próprias outras individuações naturantes: nuvens, plantas, correntezas de água, enfim, difusores e/ou refletores naturais. Assim, pareceu-me a fotografia como captura das dobras da imanência.

A magia fotográfica, que postulo ultrapassar a formalidade de fixar o movimento, sinaliza justamente o que parece não poder ser fixado. Na fotografia de um leão, o fixar modula o animal selvagem; por outro, o sinalizar se coloca atrás do olho do leão, ou no movimento da juba, ou no amarelo corrupto do pelo, enfim, a fotografia contorce a técnica, subvertendo-a e subvertendo a si mesma. A foto existida dentro da fotografia transborda na própria fotografia, algo como: toda foto tem uma fotografia, mas nem toda fotografia tem uma foto. Isso! A foto é o que se insinua no fixar do movimento; na captura da luz. Diz Barthes: “No fundo, a Fotografia é subversiva, não quando aterroriza, perturba ou mesmo estigmatiza, mas quando é pensativa.” Taí, sendo pensativa, ela é foto.

Entre tantas finuras do texto, a retomada da máscara do teatro antigo, transposta para a fotografia, me ajudou compreender o porque de inúmeras vezes apreciar uma fotografia e me perguntar pela repetição de outra. Explico: em 2008, tive a singular oportunidade de ir à exposição do Voltaire Fraga na Pinacoteca-SP (adendo: e em 2009 na do Pierre Verger na Galeria Olido-SP, e vi que de fato há um diálogo entre ambos, a despeito de toda polêmica que exista). Entre as tantas fotografias sobre a Bahia, tema do artista, que inclusive apontava como título “Abundante cidade: Dessemlhante Bahia”, fui seduzida ‘por uma’ (e não ‘pela’) foto gritante; uma negra baiana sentada na beira de um carrinho de madeira. Ora, essa foto permaneceu em mim muito tempo, até hoje a lembro com vivacidade. Vivacidade retomada pelo destaque da página 59 no livro do Barthes.


Voltaire Fraga. Exposição Pinacoteca 2008


Ora, o que se vê na foto não é um negro, é também. O que se vê como foto nessa fotografia, é, justamente, o atravessamento de algo que passa atrás dos olhos, entre o olhar movente. O mesmo que, indubitavelmente, atravessou o olhar da negra baiana fotografada por Fraga. O que atravessa em gritos de silêncio chama-se escravidão; marcas da escravidão atualizada, no atemporal. Em rabiscos o filósofo sobre a fotografia de R. Avedon.

 R. Avedon: William Casby, nascido escravo, 1963. [p. 59]

“Já que toda foto é contingente (e por isso mesmo fora de sentido), a Fotografia só pode significar (visar uma generalidade) assumindo uma máscara [...] a máscara é o sentido, na medida em que é absolutamente puro [...] A máscara é, no entanto, a região difícil da Fotografia. A sociedade, assim parece, desconfia do sentido puro: ela quer sentido”.

Pois bem; até aqui, escrevi um mísero parágrafo sobre bibliotecas, ciclovias e praças com botequim. Mais essa vez fracassei na vontade de iniciar, talvez, meu primeiro ensaio filosófico. Há uma foto sem reações químicas reveladoras da hora mágica captada com recursos óticos me rondando, insinuando-se quanto à filosofia das bibliotecas, ciclovias e praças com botequim. Em objetividade tentei mais essa vez rabiscar o tal ensaio, dei-me fracassada com vistas ao não objetivo da escrita, que novamente me ludibriou. Insinuou os traços do ensaio em palavras sobre fotografia. Não por acaso o livro do Barthes apanhei emprestado em uma biblioteca; várias páginas do livro as li sentada em uma praça (sem botequim, tudo bem) aguardando o horário de um filme; quanto às ciclovias, essas entram como parte de um contexto descontextualizado. As bibliotecas, as ciclovias e as praças (as três palavras femininas) me são fotografias que transbordam fotos. É isso... constroem o meu êxtase fotográfico.

Toda foto guarda em si, uma fuga. Não por acaso o lado direito inferior de uma fotografia, por vezes seja tomado como ‘ponto de fuga’ do tema fotografado. Ora, talvez seja esse atravessamento fugidio que mostrará o quão próximo da fotografia esteve aquele que apontou sua preferência pelo cinema à fotografia; tendo reencontrado em Barthes a provocativa: “Decretei que gostava da Foto contra o cinema”. Assim, vejo um potente encontro em dissonância tridimensional.

“Louca ou sensata? A Fotografia pode ser uma ou outra: sensata se seu realismo permanece relativo, temperado por hábitos estéticos ou empíricos (folhear uma revista no cabeleireiro, no dentista); louca, se esse realismo é absoluto e, se assim podemos dizer, original, fazendo voltar à consciência amorosa e assustada a própria letra do Tempo: movimento propriamente revulsivo, que inverte o curso da coisa e que eu chamarei, para encerrar, de êxtase fotográfico.”

Veja-se que as bibliotecas, as ciclovias e as praças fugiram atravessando a fotografia que ainda não fotografei como filosofia.

Fonte [embora haja um misto de GD, RB e CG viajando]: BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Tradução Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

Carol Gomes

11 de dezembro de 2011

Dos passeios pelas páginas usadas, rabiscadas e deixadas a outrem em quadrantes paulistanos

De certo que me habituei buscar pelo mais moço, Rimbaud. Tanto mais pelo fervor de uma escrita apaixonada e entregue sem culpa ao fogo expressivo do fluxo. Mas não, noutro dia me encantei pela maturidade do movimento potente das palavras do mais velho, Verlaine. Doce como falou, colocou-se nas águas de um rio; qualquer ao meu desconhecimento nada parisiense.

Senti no impulso, palavras de tantas mortes que jogamos gratuitamente aos fluxos, não apenas para que levem e se deem ao esquecimento, muito antes, para que o fluxo as misture, as ‘trans’ em outras tantas alheias também jogadas entre dispersões luzentes.

Mesmo dada ao ‘sem rumo’, triste me chegaram palavras do não possível, que na tremura vibrante do material, necessitei recompor-me do tropeço da solidão que já há alguns dias me desejava. Nessa, Verlaine me acompanhou em minutos, não terapêuticos, embora também assim, compondo-se em re-alumiações de um passeio.

O moço de traços charmosos deu-me seu colóquio de sentimentos, que dele me despedi, salivante, interrompida pelo amargo sentido prático dos contados contabilizados pelas páginas.

Cadenciada que não fracassei. Busquei um café. Um café a Verlaine; retribuição pela leveza da apresentação, iminentemente encontrada nos não sentidos lógicos de uma mente que aguardava... aguardava o tempo que claramente não passava porque em fonte, o desejo era mesmo de que não passasse.

Dias atravessados, provoco o encontro do cello de Raiff Dantas Barreto (suavidade discreta e singular, para não dizer inesquecível) com Verlaine, recobertos pelo choro alegre de Chopin e a marcação-marcante de Mignone... no mero e 'acasado' desinteresse.

Carol Gomes

Chopin: Sonata para cello e piano, III-largo




Mignone: Macunaíma "A valsa sem caráter"


10 de dezembro de 2011

Manifesto para dias menos escaldantes
sobre bibliotecas, ciclovias e transporte público

Somam-se alguns dias que reluto para não sair da imersão em assuntos sérios, muito mais sérios e vitais do que o incômodo de rabiscar sobre questões sociais que emergem da imbecilidade propositada de alguns humanos. Impõe-se um aborrecimento enorme por força da necessidade mental, inquietada com ocorrências numerosas, ao deixar momentaneamente, líricos escritos, intempestivos aforismos, relampares páginas metafísicas, para divagar sobre alguns desencontros que insistem em se mostrarem costumeiros.

Sustentando-me em três pilares, divago sobre questões menos importantes que a Arte-Filosofia e mais importante que infraestrutura/superestrutura (da produção à circulação, incluindo governos, partidos políticos, grupos econômicos, máfias diversas, programadores do meio ambiente  e tudo quanto é coletivo que acredita em um mundo melhor partindo tão e somente do seu quintal).

Desinteressada em anarquismos, comunismos, capitalismos, sustentalismos, cubanismos, bem-estar(ismos), obanismos, sarkozysmos, lulismos, dilmismos etc., abraço o felicismo!

Quero ser Feliz! Com bibliotecas, ciclovias e transporte público.

Com bibliotecas para experimentar a liberdade da Vida. As bibliotecas fazem-se prova dos existentes de que é possível trilhar labirintos no tempo, desprendidos de culpa. Topar com personagens que a certa altura não se mostram no fio da realidade, tampouco se preocupam, tanto mais porque a culpabilidade que possa haver, mostra-se para as páginas oscilantes entre o possível e o real.

Com bibliotecas cria-se mundos, cria-se cores e sons.

Carol Gomes

5 de dezembro de 2011

Relato infiel de momentos desprendidos do real

Uma cidade que transborda delírios. É dessa perspectiva que se dá o lançamento de um relato abdicado de fidelidade, sobretudo para com uma verdade, e àqueles, que como me ensinou um amigo, salivam com vontade de verdade, permitam-se por minutos à vontade de desejar. Assim, quem saberá?!, poder-se-á percorrer, desinteressadamente, trilhas rascunhadas numa mente alegre em colorido.

Sem definições formalísticas, sem localização geográfica, definições que pouco interessam em nomenclatura, ao contrário,  engessam a liberdade das letras, tecladas, lentamente...

Pouco antes das oito da manhã, um vento frio com chuvisco preguiçoso, imerso num amontoado de pessoas penduradas no ponteiro dos segundos, um atendente de padaria insistia em cantarolar ao receber cada pedido. “Uma promoção para viagem! Um pão de queijo com café! Pão na chapa com suco de laranja sem açúcar para viagem!” Tantos pedidos simultâneos e na agilidade de uma percepção automatizada, o atendente complementava os pedidos. “Manda um pão na chapa para viagem... capricha na chapa porque o gravata tem fome! Pão de queijo caprichado, quentinho e da hora para fazer seu dia alegre!”. Nada familiar a disposição de um moço atrás do balcão em plena manhã de sexta-feira servindo apressados rumo ao trabalho. Certo que do desprendimento desse momento, a mensagem estava posta: os delírios são construídos, por vezes, para evitar o massacre do relógio que adora rodar-rodar sem progredir nas horas. Talvez como olhar insistentemente para os ponteiros e vê-los sempre marcando a mesma posição, quando não se quer enxergá-los.

Sim! O atendente da padaria por certo que não seja a abertura principal de um episódio em três capítulos, embora tão certo ele seja, indiscutivelmente, o portal de estranhezas experimentadas noutros espaços, diferentes apenas na tonalidade cinzenta.

Foi numa tal Casa das Rosas, na garoa fria, que a colagem dos poucos cacos apanhados começou a ser realizada. Tudo cinza. A casa cinza, as cadeiras cinzas, o piso cinza, o guarda-sol num cinza para preto, tão cinza que a chuva mostrava-se à beira do que chamam: grafite. O que haveria de tão especial na tal casa? Nada! Após a passagem pelo portal, o cinzento das horas matutinas não apresentou uma lírica se quer. Nada saiu, tampouco nada entrou em rosas ou de rosas na casa.

Carol Gomes

22 de novembro de 2011

Dos sonhos

No rol dos sonhos preferentes, aquele de olhar para os lados e não sentir o brilho colorido da Vida sobreposto por um medo estranho do fora, vilmente, mascarado por nada. Sim! Querente a conseguir certa pretensa indiferença. Conflitante por ao contrário não gozar sucesso, disto, transbordos lacrimejados.

“O Mundo é feito por imbecis. A grande maioria se arrogando, na sua mais vã ignorância, de ser Douta... Os doutorzinhos que apregoam seus saberes excludentes dos demais... Os que riem do não sabido pelo medo de conhecimento... Os arrogantes que parecem defecar pela boca... Mas, o que me incomoda mais, é quando eles se portam como rebanho, todos no instinto de rebanho... Mas se quer sabem o que isso significa, nunca leram Nietzsche para entendê-lo, a sua não leitura e desconhecimento só servem para os Doutos se manterem na sua eterna fraqueza e ressentimento... Na inaplicabilidade de seus discursos... Porque eles não leem mais Machado de Assis, um bando de Medalhões.”
[Georgia Amitrano]

“É isso! Pobres imbecis! Não sabem fazer o caos dentro de si, porque a covardia é tamanha, pequenos não somente em estatura, insignificantes esses cordeiros do rebanho que os levam ao matadouro, jogados no fosso da indigência intelectual, quando pensavam ganhar o céu dos supostos doutos. Sem caos, nada de céu, nada de estrelas. Mas nós, querida Georgia! Carregamos o caos e vemos estrelas, ouso dizer com o poeta, ouvimos estrelas, não os imbecis.”
[Humberto Guido]

14 de novembro de 2011

O palhaço que chora sem lágrimas

'Taí' o filme tão falado do Selton Mello. Dois apontamentos:

 
i) Nossos hermanos argentinos operam com maestria a sétima arte quando o tema é a linha do equilibrista que vive a se perguntar 'o que sou?' ou 'o que estou?'.

ii) Sequestro a filmagem e a visto num tom estritamente pessoal para me valer da ida ao shopping lotado em véspera de feriado e não alimentar a sombra do aborrecimento com as produções nacionais.

Não! Não achei um bom filme. Achei-o sim, um filme 'sopa sessão da tarde', ainda que tenha rejeitado efeitos hollywoodianos e selecionado recortes-juntados num tom cinema sem 'peruagem' tecnológica.

Ainda que aprecie a atuação do Sr. Selton Mello, bem como a do Sr. Paulo José e as nobres aparições dos já quase mitológicos Moacyr Franco e Tonico Pereira, admito que continuo a aplaudir salivante as produções argentinas.. Ah se temos muito a aprender, se temos.

Pois bem, de todo não quero desmerecer a produção, não muito pelo tema da admirada atmosfera circense, antes, pela familiaridade com alguns elementos do roteiro.

Não bastasse as passagens pelas Minas Gerais, certamente me rancara um discreto sorriso quando escuto dos senhores palhaços Puro-Sangue e Panguaré, seus nomes de rabisco registrados em cartório: Valdermar e Benjamin, cujo sobrenome, Gomes. Isso... Valdemar Gomes e Benjamin Gomes. Para o meu deleite pessoal, roubei o filme por mera e dispensável identificação com o sobrenome.

Sim! Outros elementos, ainda que recortados e pinçados, se me mostraram com destaque. A maquiagem, belíssima... dos palhaços! A fotografia também, sobretudo explorando serras e serras das Minas, num verde de mata atlântica.

Um filme que não muito estoura, não mais que lança à referências outras...

Duas passagens interessantes das personagens.

Uma do Benjamin, palhaço Pangaré, refletindo como ventilador perdido em Montes Claros à frente de um bar; dando-se ao diálogo depressivo com a prostituta.

"Eu que sou palhaço faço todo mundo rir. E quem é que me faz sorrir?"

Outra do falecido empresário de tecidos, interpretado por Jackson Antunes, que se meteu com plantação de arroz e perdeu tudo, enquanto proseava com o Sr. Valdemar, palhaço Sangue-Puro.

"O gato bebe leite. O rato come queijo. E eu trabalho. Cada um faz o que sabe."

Ora, imediatamente fui jogada à composição do Nelson Cavaquinho, tantas vezes interpretadas, seja por Luiz Melodia, pela brilhante Dona Inah, Clara Nunes, Baden Powell e Leci Brandão, apenas alguns dos que lembro já ter ouvido.

enxugas as lágrimas
e me dê um abraço
e não te esqueças
que és um palhaço
faça a platéia gargalhar
um palhaço não deve chorar
[O Palhaço de Nelvon Cavaquinho]


Sobre o filme, quase nada a dizer... apenas remissões. Um filme que me chama pelos tantos fuscas que passam de uma cena a outra, quanto pela terra mineira... e ainda, pela maquiagem do palhaço que todos somos, que apesar de pintura em epiderme, adentra recônditos espaços, aparentemente incomunicáveis.

Como palhaços que somos, por vezes choramos sem lágrimas, sem saber que a continuidade nem sempre se dá por nós, mas em nós... nas seleções, nas esperas, nas passagens.

Carol Gomes

7 de novembro de 2011

Um sonho inverossímil

Chegou-se de um lugar desatualizado.
Unidades abertas distantes em espaço
embora
ponteadas em acontecimentos.

Esperou-se?
Não! Sem espera.
Na caminhada aprende-se que não há pontos de parada
há sim, múltiplas passadas, tensas, invasivamente fortes.

Também não se esperei.
Inúmeros soluços de tédio
entre um vacilo desmedido e outros
tendo por lados, abismos em grito desordenado pela vida.

As repetições já não mais seriam
como inferno a letra iniciava na mesma Lua
e o paraíso insistia em se abrir apenas nas Cheias
nas nem sempre boas aventuras...

Do cansaço nada esgotado
o ato não mais de bater nas portas
o cantar silencioso reaprendeu a sorrir
e o úmido passante revestia-se em bela aparência rabiscada.

Do castanho vidente ao castanho divagante
via-se noutro o que se sabia de outrora
de páginas soltas, voadas como borboletas e pardais, tantos!

Em sequenciais desenhos fugidios
o instante fez momento, onírico, bem certo...
embora em presença do caos, virtualizado
nada mais vital que um esvaecido sentimento maturado.

A recorrência do ponto chegou perguntativa:
E aquele presente quadrado seco & molhado?
que como buarquiando em miúdos
você levou, nem sempre ouvindo e não devolveu...

Como encontro, respirantes
virou-se as costas em retribuição às reminiscências
dos regressos virtuais, atualizou-se o possível
e na abertura dos olhos aquietou-se nas batidas do sino apolíneo.

Carol Gomes

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30 de outubro de 2011

fitando, bibliotecas e cinemas

E se numa releitura d'O Anjo Exterminador uma galera ficasse presa em uma biblioteca?
Desde sábado, fim de tarde, ambientada numa chuva, a questão me ronda.
Os acontecimentos acontecem no insistente, mas nem sempre atingido silêncio da biblioteca.
Um dia saiu o roteiro dos sapatos que socializados no RU papeiam indiferentes aos seus donos.
Dessa vez está saindo o roteiro d'O Exterminado Anjo Catalogado! Amanhã sai mais.
Adoro bibliotecas para viajar nos universos que elas constroem; cada livro um universo, cada leitor uma curva, cada estante uma rua, cada mesa um boteco, cada cadeira um gole solitário povoado de aberturas.

Carol Gomes

14 de outubro de 2011

Recortes divagantes de uma congada

Diferente dos anos anteriores, em 2011, me autopermiti às divagações no passar sonoramente colorido de cada terno do congado rumo à Igreja do Rosário.

Sim! Divagações especulativas, sobretudo num caráter livre de recortes e costuras, escavando reminiscências de momentos presenciados na tradicional festa em tempos outros, sem desconsiderar o diálogo dessas reminiscências com a presença da festa corrente.

Desacreditada da pretensa neutralidade do observador não familiarizado com a tradição, vislumbrei vivenciar, de modo desordenado, descompromissado, desorientado e desconhecido, os tantos movimentos singulares no desfile dos ternos. Por que o excesso do prefixo ‘des’, no tom de negação-separação? Distante de alimentar obscurantismos teóricos e/ou em cadernetas registrar ‘pesquisa de campo’, em fato, havia sim um desejo pulsante a se mostrar num pretenso-proposto deslocamento de imersão filosófica. Assumo uma indefinida ingenuidade em tentar, minimamente, divagar distante dos rigores acadêmicos inserida na sucessão de acontecimentos do congado; embora não alheia à contextualização formal da academia.

 Foto: Carol Gomes (09/10/11 - Igreja do Rosário - Udi/MG)

Na cadeira do olhante-apreciador, vivenciei algumas tantas festas. Quando muito nova por morar nas proximidades da igreja; noutros anos motivada pelo discurso que imprime à festa um caráter de cultura popular. Presenciei anos de processo eleitoral, cujos candidatos se esforçam para mostrar apadrinhamento dos ternos por mera visibilidade eleitoreira. Noutros anos, decidida a participar como ‘festeira-beberrona’ em paralelismo ao desfile, como se tal tratasse mais de um carnaval temporão. Noutros a observar as roupas, o batuque, a simbologia, a religiosidade, sobretudo o aspecto histórico da igreja católica na recepção do Brasil-África... enfim, noutros noutros anos de outrora.

No ano de 2009, um fato particular me prendeu a atenção. Não sei se houvesse ocorrido o tal em outros anos, tanto porque não me atentava para a celebração da missa após a procissão. A missa celebrada do lado de fora da igreja por um padre negro. Não suficiente, o padre conduziu a celebração sempre a destacar trechos da Bíblia em alusão ao racismo entre povos. Durante alguns meses o episódio esteve tal como uma imagem nos meus pensamentos, numa alusão de retomada, momentânea e tímida, do caráter revolucionário da igreja católica em tempos de Roma. Corriqueiro e tradicional esse acontecimento no congado? Pois conjecturo que sim, sobretudo para os conhecedores da história contada do congado, mas como acontecimento em tonalidade micro, se não invisível, a missa do lado de fora celebrada por um padre negro, atualizou em termos temporais a possibilidade de um outro mundo não muito familiar à minha época. Ora, se para um congadeiro ou um historiador trata-se de um ritual, em presença do fato, a mim mostrou-se um deslocamento temporal com atualização na cronologia do séc. XXI. Questão seríssima de fundo filosófico que retoma em efetividade, especulações divagantes da elasticidade do tempo, bem como de categorias como real, atual, existente, virtual. Puxa! Estava eu presenciando a praticidade viva, para não assumir o termo ‘personagem’, de conceitos.

Em 2011, prendeu-me a simbologia do político auxiliando os congadeiros no levantamento dos mastros. Ora, questão por demais polêmica e que não carece de pormenores, tanto mais pelo caráter político institucional permeado na relação histórica de forças entre brancos e negros, especialmente, na história brasileira. Outros fatos, aparentemente singelos, prenderam meu olhar da cômoda cadeira de observadora divagante. No início da calçada em frente à igreja, em um dos lados, montou-se um minipalco a serviço da segurança pública, de modo que durante a passagem dos ternos, haveria de ser muito bem dotado de técnica o fotógrafo que almejasse registros sem a presença da vestimenta de estampa militarizada preenchendo o fundo do desfile de roupas e adornos coloridos dos congadeiros.

Do último degrau de uma das arquibancadas, quase que cozida por um sol do meio dia, me meti a buscar personagens no meio daquele mar de indivíduos, mar este por vezes harmonicamente colorido. Experimentação viva do que se pode tomar por diversidade re(uni)da. A unidade estava posta no desfile dos ternos rumo à igreja para o levantamento dos mastros, e a diversidade, discretamente, quase que como um segredo, colocava-se na perspectiva dos indivíduos, na abertura destes-nós para a festa. Foi assim que durante algum tempo me foquei nos tantos fotógrafos e repórteres. Eram muitos, muitos. Os fotógrafos se dividiam entre câmeras profissionais cujo objetivo era também profissional (postulo pelas identificações funcionais); inúmeras câmeras digitais de uso pessoal e câmeras de celulares que bailavam nas mãos de observadores admirados (entre os quais, eu); câmeras que pela obstinação do proprietário me faziam acreditar que fotografavam até pensamento, dado tanto empenho do fotógrafo e formato do aparelho. Vi ainda fotógrafos artistas, ou artistas fotógrafos, aliás, muitos, que julgo ter conseguido identificar alguns pela vestimenta, acessórios (quase que como caricatura), certa peculiaridade (ouso dizer, romantizada) do indivíduo tendenciado às pulsões artísticas. Identifiquei conhecidos de outrora empenhados em pesquisas de campo, áreas diversas, inclusive fui perguntada num tom antropológico: ‘Você não se sente uma intrusa?’. Ora, dessa pergunta tantas divagações borbulharam que de certo modo surpreendi-me em titubeios quanto à minha presença configurar ou não uma pesquisa de campo. Logo saí dessas divagações vacilantes crendo não se tratar de pesquisa justamente pela ausência de foco, ainda que existisse tímido desejo de experimentação.


Foto: Carol Gomes (09/10/11 - Igreja do Rosário - Udi/MG)

Muitas personagens, entre os quais, vendedores ambulantes; políticos – representantes eleitos e dirigentes partidários; jovens e mais jovens alegremente se exibindo sem amarras quanto às roupas, acessórios, penteados do cabelo; estudantes universitários excitados em presença de uma festa popular; famílias dos congadeiros. Não me foi possível identificar uma personagem, ainda que eu tenha olhado para cima várias vezes em busca dela. Admito que não vi, qual seja, moradores dos prédios vizinhos da igreja, que com visão privilegiada haveriam de acompanhar o desfile como que de um camarote. Diversas vezes olhei para as janelas dos prédios e não localizei nenhum observador, embora isso não me tenha feito crer que se mostre tão e somente como preconceito, haveria de poder ter sido também desencontro do meu olhar com o aparecimento de muitos nas janelas, algo como: quando eu não me atentava para a observação das janelas, muitos lá estavam acompanhando o desfile.

Ao passo que os ternos desfilavam, conduzidos por seus capitães, como que figuras heroicas adornadas poeticamente, se mostrava a experimentação de conceitos. Distante de um objetivo querente de enquadrar a congada num sistema de pensamento, aliás, ao contrário, o desfile estava a mostrar em pureza o pulular dos conceitos, como que fonte. E desse modo, como observadora divagante, via no brilho colorido dos ternos, trechos como:

“o discurso daqueles que não têm a glória, ou daqueles que a perderam e se encontram agora, por uns tempos talvez, mas por muito tempo decerto, na obscuridade e no silêncio [...] Não temos, atrás de nós, continuidade; não temos, atrás de nós, a grande e gloriosa genealogia em que a lei e o poder se mostram em sua força e em seu brilho. Saímos da sombra, não tínhamos direitos e não tínhamos glória, e é precisamente por isso que tomamos a palavra e começamos a contar nossa história.”(Foucault em Em defesa da sociedade, p. 82)

Ora, conjecturo que não enxergava as palavras de Foucault num discurso histórico dos reprimidos, antes, estava costurando recortes em movimento dançante dos congadeiros com o movimento fixado de noções foucaultianas, sobretudo a vislumbrar quase que como um desenho, a narração não contínua dos que como individualidades, por vezes imperceptíveis, não tiveram glória. Sim! A glória romana sustentadora de uma soberania personalista.

Nesse contexto me perguntava: quem são esses tantos que por aparentes obstinações mítico-religiosas se mostram existentes em afirmação colorida? Esses que em genealogia não narrada da história oficial, vinculam-se a Zumbi, homenageado com um monumento em frente à igreja. Esses também que por genealogia vinculam-se ao feiticeiro do mar ‘que tem por monumento as pedras pisadas do cais’, imortalizado esteticamente e conhecido de alguns na letra de Aldir Blanc e João Bosco cantada por Elis. Enfim, quem são esses que como personagens anônimas desfilam como numa noite de galas rumo à igreja?

Claro que a pergunta já apontava para o alumiar de uma resposta em cores. Tal como nas palavras do filósofo, eu não me satisfaria com uma resposta em delimitações históricas da escravidão; em desejo, queria vislumbrar-sentindo na batida dos ternos, uma narração criada nas pulsões do instante.

Observar o anonimato dos que em conjunto firmavam os traços da congada, me ocorria como que assistir um filme não filmado. Surpeendi-me com fotografias não fechadas, ora, e se como Proust dissera da fotografia ‘como aquilo que não foi e aquilo que não é’, vivia eu uma exposição em pureza fotográfica do ‘estar’, um ‘estar’ estético afirmativo da existência.

A pergunta autoprovocativa de quem seriam aqueles, teve por resposta a própria noção transbordada do chacoalhar dos moçambiques como a afirmação de indivíduos tomando em realidade a existência como obra de arte. Desse modo, eu já não me prendia às simbologias religiosas, políticas, nem tampouco históricas do congado, dava-me então às divagações estéticas imprimidas no desfile dos ternos.

A música, o colorido, os indivíduos que apesar de não mascarados, pelos adornos se me apresentavam como tal, expressando um retorno ao não identificado da natureza, e como um fenômenos estético davam-se aos olhantes, como corpos tragicamente embriagados de lirismo.

Viagem minha? Não, estou certa que não! Como não lembrar dessa trágica embriaguez se a cada movimento reluziam intensidades transfiguradoras da existência? Certa estava de que mulheres-homens-crianças-idosos-congadeiros, naquele dia (e possivelmente durante toda a festa) viviam instantes sucessivos como obra de arte, noutros termos, tomavam todos os adornos materiais e não materiais da tradição congadeira para afirmar alegremente a existência. Daí julgo divagante, a excitação possuidora dos moçambiques, dos tambores.

Nesse texto não haveria pretensão de ignorar certo seqüestro particularizado da congada; por outro aspecto não haveria de ter o engano de experimentar-experenciando a festa da congada tal qual pertencente à tradição congadeira. Caso tal fosse minha disposição, por certo mais preconceituosa seria em relação aos tantos que moradores do município que se quer prestam-se à festa enquanto manifestação cultural. O preconceito configuraria na medida em que querendo representar um postulado papel de familiaridade à congada, estaria fixando em termos estrangeiros, uma origem que também é a minha, tanto nos aspectos étnicos, quanto na mesma condição imanente de humana, tendo por fonte as dores e as contradições do existir.

Ao passo que o desfile se deu, os mastros foram levantados, e à noite o retorno para a procissão, fui me dando à compreensão de que também tivera vivido uma congada, por certo não como na tradição, contudo, na condição de vivente que sentira nas cores, nos sons, nas pulsões, a transfiguração da tragédia do existir em beleza de viver.

Se os congadeiros ofereciam em esforços e festejos, um hibridismo religioso como modo de viver, ao meu modo, me abria ao instante-desconhecido imersa no diverso como uma afirmação deslocada, donde efetivamente experimentei a não culpabilidade de me dar à filosofia enganada por representações fantasmagóricas de conceitos. Estava num grandioso laboratório de experimentos filosóficos, certamente, o laboratório sonoramente colorido da vida; desenhado em formas moventes da própria existência.

Carol Gomes

25 de setembro de 2011

Reflexões tropeçadas 

É bem possível que todos os dias tenho muita vontade de escrever sobre a vida, principalmente no início da madrugada. E digo que distante de uma tradição de coruja de minerva, a vontade pela escrita me surge como tradução de instantes singulares cozidos e recozidos, como se carecessem da escrita para ‘sentirem-se sentidos’.

Sim! Escrevo motivada por esparsos minutos que de tão singulares reluzem brilho diferente, e então ficam a martelar... martelar... na mente; mas só escrevendo é possível no instante das letras, sentir, efetivamente, o viver.

Por exemplo. Há uma semana, presenciei de um senhor técnico em modelos da odontologia, o vomitar atroz sobre um dente como se pronunciasse as mais belas palavras do seu acervo linguístico: ‘Ele caiu como um bezerro’. Puxa! Como pode um indivíduo dizer algo do gênero?! Na hora me senti eletrocutada numa voltagem assassina, tanto pelo dente quanto pelo bezerro. O bezerro espelhado em um dente e o dente expressando um bezerro. Enquanto modo de vida, a frase me soou mais assustadora porque toma o bezerro, tão e somente, como uma coisa desprovida de qualquer natureza, que como uma pedra, depois de arrancados seus suspiros, o bezerro cai, por vezes, como um dente.

E assim foi, uma semana a frase do tal técnico martelando assombrosamente minhas reflexões. Como pode um dente-bezerro e um bezerro-dente? Cadê o mínimo de pudor do dito cujo em propagandear a morte tão facilmente. Confesso que senti tanta repulsa do tal técnico, que por vezes tive que me segurar para não lhes dizer: ‘O dente cai tal qual um bezerro, e você tal qual uma barata nojenta produzida por uma época de muitos lixos’. Mas não, ponderei que era muito pequena em tamanho e força para abusar do sistema nervoso do moço.

Passados alguns dias, numa raridade quase histórica, ligo a TV de manhã e vejo o discurso da presidenta Dilma na tal reunião da ONU. Pois bem, ela em uma roupa estampada sem muita beleza falando tal qual uma generala cujos pensamentos são processados em dígitos codificados, sobretudo em números cifrados, quando não em gráficos, afinal, a moça autoridade dedicou-se ao feito profissional da ciência econômica. Ocorre que o discurso da generala mostrou-se interessante, até que me coloquei a titubear em reminiscências de alguns aspectos do último processo eleitoral, entre os quais, a educação no Brasil. Enquanto ela falava, descontroladamente, do lado externo da TV, eu pensava: e a greve dos funcionários dos Correios, que enfrentam sol escaldante e ganham menos de 800 pratinhas, correndo; a greve dos técnicos em educação nas instituições federais que têm auxílio alimentação de 304 pratinhas para comprar cesta básica do mês, correndo; a greve de trabalhadores da construção civil dos ultra-megas estádios da Copa que labutam sem assistência saúde (conforme divulgado pela imprensa), correndo; greve de professores estaduais de educação básica que se matam em aulas com piso de 712 pratinhas, correndo; enfim, algumas tantas coisinhas acontecendo, em terra colonizada e gorada com ‘aqui tudo que se planta dá’, e a presidenta com aquela roupa de estampa estranha parecendo uma proclamadora de vestidos: ‘minha avó-amélia é que foi mulher de verdade’.

Certamente minha ingenuidade não aponta para um desengano de que estar ou não na ONU fazendo discursos, expressa outra face da política institucional, que por certo, nos conchaves do poder nacionalizado seja fundamental; a reflexão tropeça em termos de formalismo do poder. Ora, ainda que desconhecedora dos palestinos, simpatizo sedutoramente com a causa do Estado deles, embora eu permaneça nos titubeios entre perguntas sobre o Estado, o poder no/do Estado; mas vai lá, confesso ter admirado a frase do presidente-caricatura da Venezuela, Chávez, que em carta à ONU onde citou o filósofo francês Gilles Deleuze, disse em pureza problemática: "no es un conflicto milenario sino contemporáneo; no es un conflicto que nació en el Medio Oriente sino en Europa.". Pois bem, longe de eu querer que a excelentíssima Dilma se meta em polêmicas na política externa, tal qual parece ser a especialidade do Chávez, mas é bem verdade que a frase do moço autoridade cabe também para questões fundamentais em terra de ‘brasilis’. 

Não é passada a hora de nos divorciarmos do discurso de herança histórica da maldição da educação no Brasil? A pergunta é séria, sincera e não sarcástica.

Comecei a escrita falando de vida, dente e bezerro. Tudo bem! Não é redação de processo seletivo e nem dissertação, são tropeços.

Em quê a frase do Chávez, endereçada à ONU, relaciona-se com o dente, o bezerro, a Dilma, a educação brasileira e a minha vontade de escrever sentindo a vida? Outra pergunta séria, sincera e quase não sarcástica.

A segunda pergunta é mais fácil de postular uma resposta. Um ponto da frase do venezuelano reúne todo mundo de mãos dadas: dente-bezerro-Dilma-educação-vida. Pimba, qual ponto? A palavra ‘contemporâneo’.

O que um dente tem de contemporâneo? Hoje se desfaz de dentes por estética facial, ainda que isso implique dores.

O que um bezerro tem de contemporâneo? Há pessoas que o veem como animal possuidor de direitos, sobretudo fundamentados a partir do seu sistema nervoso; e há pessoas que o veem como um ‘bifão’, pessoas capazes de criar gado no quintal, dar-lhe nome de estimação e depois mandar para forca a fim de degustar um filé mal passado (esse tipo me lembra o técnico-barata já citado).

O que a Dilma tem de contemporâneo? A roupa no discurso da ONU passa longe de moda contemporânea, mas vai lá, talvez (veja bem, talvez) contemporâneo seja realmente o que ela destacou sobre o pioneirismo da sua pessoa feminina na abertura da tal reunião. Uma fala altamente, para os meus ouvidos, prolixa e cheia de diretrizes engessadas sob a égide da superestrutura econômica. Ouso, na imaturidade da leitura dos escritos de Marx, dizer que marxista verdadeiramente é a Dilma e não o Lula, sendo que este está mais para samba ‘zeca pagodinho... deixa a vida me levar’. Brincadeiras a parte, não tem erro de diagnóstico no discurso da presidenta, ela é em personificação os relatórios constituídos de gráficos (modelos ‘linha’, ‘dispersão’ e ‘radar’) e planilhas ‘xls’ monstruosas, daquelas bem coloridas e com números minúsculos em fonte 6 com fórmulas emendadas umas nas outras que qualquer assopro no teclado causa crise nas bolsas especulativas do país. Ufa! Presidenta competente que até para adjetivar dispende trabalho técnico.

O que a educação tem de contemporâneo? Uma crise faminta; é isso que ela tem. Uma crise faminta para sair dela mesma. A crise na educação, aparentemente, não se quer, mas insiste-se em alimentá-la forçadamente. Como se alimenta essa crise forçadamente? Fazendo como nossa presidenta, em discurso eleitoral, tal qual prática tradicional da política institucional, esbravejou prioridades educacionais, numa retórica empolgante conquistou professores, pesquisadores, estudantes, e passados meses de execução, olhe-se as áreas prioritárias de investimento. Mesmo nas pesquisas, a página do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, vulgo, CNPQ, publicita que em 2010 a área que mais recebeu pesquisa foi Agronomia, batendo seus 6,63% de participação nos investimentos de pesquisa, seguido da Química, Física e Engenharia Elétrica. Obviamente não acredito que seja preciso investir mais em pesquisas na área da Educação, já tem muita pesquisa redundante, desinteressante e desinteressada, perdida de objeto de estudo; embora, por outro aspecto, confesso que me mantenho no esforço para crer que tal investimento em Agronomia seja prioridade de área em sintonia com o combate à pobreza, na fórmula em ‘xls’: mais alimentos, menos pessoas famintas; distante de priorizar a fórmula: mais transgênicos, mais alimentos, mais exportação. Ora, ainda no discurso da ONU, a moça institucional falou em não buscar responsáveis pelas crises e sim soluções, falou ainda em resolver as causas. Recorto a fala e numa colagem, seria proveitoso para o contemporâneo da educação brasileira, que ela pensasse de modo semelhante na educação. Cientista opera com causas? Pois bem, ela é cientista aplicada à economia, num deslocamento não muito difícil consegue-se observar a educação a partir das causas sob o prisma dos que se postulam cientistas da educação valendo-se da pergunta: Quais as causas da crise na educação brasileira? Pergunta que vale um prêmio ‘joínha do século brasileiro’ para a cabeça pensante que responder. Desconfiança número 1 na linguagem de cientistas: o modelo vigente é na parceria dedução-indução sem oscilações catastróficas de aplicabilidade? Olhemos para o estado Geral das Minas, professores em greve há mais de 100 dias, tendo como problemática de pauta a demanda excessiva de aulas, na relação fórmula ‘xls’ quantidade-qualidade x aluno-professor.

O que a vida tem de contemporâneo? Ela não tem nada de contemporâneo, ela é contemporânea ‘in natura’ e em forma, ainda que por vezes se tente enrijecê-la de outra coisa. E não cabe para tal adjetivação, polemizar o que seja contemporâneo. É isso mesmo, a atualidade, o que se mostra, o que está posto, o que pulula na desordem ordinária dos dias, na marcação dos ponteiros do século XXI. A vida é contemporânea na reunião da ONU; a vida é contemporânea no terrorismo; a vida é contemporânea na inversão de focos, donde um dente passa-se a um bezerro e o bezerro passa-se a um dente; a vida é contemporânea no se faz e no que ela se mostra.

Há ainda a primeira pergunta a ser ‘tentada’ para resposta. Em pescaria com os contemporâneos acima, com a fala da Dilma e com a frase do Chávez, atrevo-me, não pelo prêmio ‘joínha do século brasileiro’, antes, por inquietação tropeçante.

Retomo: Não é passada a hora de nos divorciarmos do discurso de herança histórica da maldição da educação no Brasil?

Pois bem Dilma, a educação tomada desde os gregos mostrou-se nas faces da antiguidade, da medievalidade, modernidade, e não diferente se coloca na contemporaneidade. Deste modo, não é oportuno, postular, esforços e pensá-la no nosso tempo? Tendo aprendido contigo a discursar, não é científico pensar a origem/causa da crise na educação brasileira a partir do modelo que impera?

Temos sim herança de uma independência desconcertada, heróica ao ‘simultanear’, independência em formalidade e colonização em prática. Temos a herança de mudanças bruscas subjugadas à revelia de vontades políticas pontuais? Talvez tenhamos. Mas, temos necessidade de pensar a questão como contemporânea, como realidade em exato acerto com a marcação do nosso tempo. Qual é o modelo posto? Desta segue-se: O que se ‘deseja’ com a educação? E daí as normativas da razão: O que ela pode e até onde ela pode? Disto, claro, perguntando-nos em movimento: O que seja a educação?

Aos tropeços acredito que cheguei a mais um tropeço, afinal, não tem fim a estrada ‘reflexão’, tem-se instantes. Escrevo para sentir a vida e escrevendo senti que nos tropeços cheguei na desilusão com o discurso da minha presidenta, embora desconfiasse desde o início da candidatura ao cargo sobre a área da educação. A desilusão aparece ressoada de um discurso expressivo em termos de representações e culto às fórmulas, não apenas numéricas. Estreiteza em manter a perspectiva de que a questão da educação no Brasil passa, tão somente por números, seja quantidades mensuráveis em relatórios, seja em abertura da caderneta bancária do governo. Tratar a educação imersa na pulsão da contemporaneidade, é rever modelos, é rever práticas mecanizadas, automatizadas por botões fantasmagoricamente ideologizados. Não tem segredo. Se o desejo é uma educação X, então abra a ‘torneira’ do X. Se quero um país de leitores, abra bibliotecas e despeje livros do céu. Não importa no rigor do pedantismo intelectual o que vai ser lido, é preciso que se leia, leia-se pornografia, leia-se fofocas, leia-se quadrinhos, leia-se jornal mentiroso-tendencioso, leia-se Camões em guarani, leia-se Machado de Assis em francês, leia-se Paulo Coelho em inglês, dê aos brasileiros a oportunidade efetiva de conhecer as ramificações da educação, e ele decidirá, ao ter acervo para tal, que literatura o presenteará com gozos. Para iniciar a revisão do modelo, é emergencial abrir mundos, ler o visível e o invisível, e esta tarefa só é possível de um modo duplo, na ingenuidade de quem acredita saltitante na vida, leitura-escrita.

Distante, muito distantes das planilhas do Excel, minha presidenta, são muitos compatriotas jovens alfabetizados em números e em assinatura do próprio nome, ainda que analfabetos ao não saberem que o feminino de presidente é presidenta, e não me vale a justificativa de historiadores e cientistas sociais de que seja apenas cultura machista, é também, desconhecimento da própria língua, uma língua tão saborosamente leve de ser falada, híbrida nos sotaques e dinâmica em necessidade, que esta, ao ser desconhecida por um brasileiro, ressoa como profunda tristeza. Maravilha singular que o modelo educacional tem roubado dos brasileiros, o gozo de brincar, torcer, cantar, saborear a própria língua em suas entranhas e fissuras. Como se tem roubado? Não revendo modelos, abstendo-se de tomar as causas com seriedade, e indiretamente permitindo que modelos imersos em representações obscuras, golpes silenciosos, continuem a julgar a vida, cristalizando receitas vazias e castradoras de prazer, sobretudo o prazer de sentir a vida, em instante puro, numa leitura e/ou numa escrita. 

Enquanto isso, enquanto permanecermos no auto-engano de nação, teremos dentistas matando dente em semelhança ao assassinato de bezerros, bem como o despudor de pregar a morte como acervo linguístico mais elevado de uma mente pensante.

E nos tropeços, fecho esse rabisco que apesar dos pesares, insiste em afirmar a Vida, sobretudo nas suas pulsões contemporâneas e nos seus traços artísticos. Escrevinhando o sentir como instante vivente.

Carol Gomes