25 de setembro de 2011

Reflexões tropeçadas 

É bem possível que todos os dias tenho muita vontade de escrever sobre a vida, principalmente no início da madrugada. E digo que distante de uma tradição de coruja de minerva, a vontade pela escrita me surge como tradução de instantes singulares cozidos e recozidos, como se carecessem da escrita para ‘sentirem-se sentidos’.

Sim! Escrevo motivada por esparsos minutos que de tão singulares reluzem brilho diferente, e então ficam a martelar... martelar... na mente; mas só escrevendo é possível no instante das letras, sentir, efetivamente, o viver.

Por exemplo. Há uma semana, presenciei de um senhor técnico em modelos da odontologia, o vomitar atroz sobre um dente como se pronunciasse as mais belas palavras do seu acervo linguístico: ‘Ele caiu como um bezerro’. Puxa! Como pode um indivíduo dizer algo do gênero?! Na hora me senti eletrocutada numa voltagem assassina, tanto pelo dente quanto pelo bezerro. O bezerro espelhado em um dente e o dente expressando um bezerro. Enquanto modo de vida, a frase me soou mais assustadora porque toma o bezerro, tão e somente, como uma coisa desprovida de qualquer natureza, que como uma pedra, depois de arrancados seus suspiros, o bezerro cai, por vezes, como um dente.

E assim foi, uma semana a frase do tal técnico martelando assombrosamente minhas reflexões. Como pode um dente-bezerro e um bezerro-dente? Cadê o mínimo de pudor do dito cujo em propagandear a morte tão facilmente. Confesso que senti tanta repulsa do tal técnico, que por vezes tive que me segurar para não lhes dizer: ‘O dente cai tal qual um bezerro, e você tal qual uma barata nojenta produzida por uma época de muitos lixos’. Mas não, ponderei que era muito pequena em tamanho e força para abusar do sistema nervoso do moço.

Passados alguns dias, numa raridade quase histórica, ligo a TV de manhã e vejo o discurso da presidenta Dilma na tal reunião da ONU. Pois bem, ela em uma roupa estampada sem muita beleza falando tal qual uma generala cujos pensamentos são processados em dígitos codificados, sobretudo em números cifrados, quando não em gráficos, afinal, a moça autoridade dedicou-se ao feito profissional da ciência econômica. Ocorre que o discurso da generala mostrou-se interessante, até que me coloquei a titubear em reminiscências de alguns aspectos do último processo eleitoral, entre os quais, a educação no Brasil. Enquanto ela falava, descontroladamente, do lado externo da TV, eu pensava: e a greve dos funcionários dos Correios, que enfrentam sol escaldante e ganham menos de 800 pratinhas, correndo; a greve dos técnicos em educação nas instituições federais que têm auxílio alimentação de 304 pratinhas para comprar cesta básica do mês, correndo; a greve de trabalhadores da construção civil dos ultra-megas estádios da Copa que labutam sem assistência saúde (conforme divulgado pela imprensa), correndo; greve de professores estaduais de educação básica que se matam em aulas com piso de 712 pratinhas, correndo; enfim, algumas tantas coisinhas acontecendo, em terra colonizada e gorada com ‘aqui tudo que se planta dá’, e a presidenta com aquela roupa de estampa estranha parecendo uma proclamadora de vestidos: ‘minha avó-amélia é que foi mulher de verdade’.

Certamente minha ingenuidade não aponta para um desengano de que estar ou não na ONU fazendo discursos, expressa outra face da política institucional, que por certo, nos conchaves do poder nacionalizado seja fundamental; a reflexão tropeça em termos de formalismo do poder. Ora, ainda que desconhecedora dos palestinos, simpatizo sedutoramente com a causa do Estado deles, embora eu permaneça nos titubeios entre perguntas sobre o Estado, o poder no/do Estado; mas vai lá, confesso ter admirado a frase do presidente-caricatura da Venezuela, Chávez, que em carta à ONU onde citou o filósofo francês Gilles Deleuze, disse em pureza problemática: "no es un conflicto milenario sino contemporáneo; no es un conflicto que nació en el Medio Oriente sino en Europa.". Pois bem, longe de eu querer que a excelentíssima Dilma se meta em polêmicas na política externa, tal qual parece ser a especialidade do Chávez, mas é bem verdade que a frase do moço autoridade cabe também para questões fundamentais em terra de ‘brasilis’. 

Não é passada a hora de nos divorciarmos do discurso de herança histórica da maldição da educação no Brasil? A pergunta é séria, sincera e não sarcástica.

Comecei a escrita falando de vida, dente e bezerro. Tudo bem! Não é redação de processo seletivo e nem dissertação, são tropeços.

Em quê a frase do Chávez, endereçada à ONU, relaciona-se com o dente, o bezerro, a Dilma, a educação brasileira e a minha vontade de escrever sentindo a vida? Outra pergunta séria, sincera e quase não sarcástica.

A segunda pergunta é mais fácil de postular uma resposta. Um ponto da frase do venezuelano reúne todo mundo de mãos dadas: dente-bezerro-Dilma-educação-vida. Pimba, qual ponto? A palavra ‘contemporâneo’.

O que um dente tem de contemporâneo? Hoje se desfaz de dentes por estética facial, ainda que isso implique dores.

O que um bezerro tem de contemporâneo? Há pessoas que o veem como animal possuidor de direitos, sobretudo fundamentados a partir do seu sistema nervoso; e há pessoas que o veem como um ‘bifão’, pessoas capazes de criar gado no quintal, dar-lhe nome de estimação e depois mandar para forca a fim de degustar um filé mal passado (esse tipo me lembra o técnico-barata já citado).

O que a Dilma tem de contemporâneo? A roupa no discurso da ONU passa longe de moda contemporânea, mas vai lá, talvez (veja bem, talvez) contemporâneo seja realmente o que ela destacou sobre o pioneirismo da sua pessoa feminina na abertura da tal reunião. Uma fala altamente, para os meus ouvidos, prolixa e cheia de diretrizes engessadas sob a égide da superestrutura econômica. Ouso, na imaturidade da leitura dos escritos de Marx, dizer que marxista verdadeiramente é a Dilma e não o Lula, sendo que este está mais para samba ‘zeca pagodinho... deixa a vida me levar’. Brincadeiras a parte, não tem erro de diagnóstico no discurso da presidenta, ela é em personificação os relatórios constituídos de gráficos (modelos ‘linha’, ‘dispersão’ e ‘radar’) e planilhas ‘xls’ monstruosas, daquelas bem coloridas e com números minúsculos em fonte 6 com fórmulas emendadas umas nas outras que qualquer assopro no teclado causa crise nas bolsas especulativas do país. Ufa! Presidenta competente que até para adjetivar dispende trabalho técnico.

O que a educação tem de contemporâneo? Uma crise faminta; é isso que ela tem. Uma crise faminta para sair dela mesma. A crise na educação, aparentemente, não se quer, mas insiste-se em alimentá-la forçadamente. Como se alimenta essa crise forçadamente? Fazendo como nossa presidenta, em discurso eleitoral, tal qual prática tradicional da política institucional, esbravejou prioridades educacionais, numa retórica empolgante conquistou professores, pesquisadores, estudantes, e passados meses de execução, olhe-se as áreas prioritárias de investimento. Mesmo nas pesquisas, a página do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, vulgo, CNPQ, publicita que em 2010 a área que mais recebeu pesquisa foi Agronomia, batendo seus 6,63% de participação nos investimentos de pesquisa, seguido da Química, Física e Engenharia Elétrica. Obviamente não acredito que seja preciso investir mais em pesquisas na área da Educação, já tem muita pesquisa redundante, desinteressante e desinteressada, perdida de objeto de estudo; embora, por outro aspecto, confesso que me mantenho no esforço para crer que tal investimento em Agronomia seja prioridade de área em sintonia com o combate à pobreza, na fórmula em ‘xls’: mais alimentos, menos pessoas famintas; distante de priorizar a fórmula: mais transgênicos, mais alimentos, mais exportação. Ora, ainda no discurso da ONU, a moça institucional falou em não buscar responsáveis pelas crises e sim soluções, falou ainda em resolver as causas. Recorto a fala e numa colagem, seria proveitoso para o contemporâneo da educação brasileira, que ela pensasse de modo semelhante na educação. Cientista opera com causas? Pois bem, ela é cientista aplicada à economia, num deslocamento não muito difícil consegue-se observar a educação a partir das causas sob o prisma dos que se postulam cientistas da educação valendo-se da pergunta: Quais as causas da crise na educação brasileira? Pergunta que vale um prêmio ‘joínha do século brasileiro’ para a cabeça pensante que responder. Desconfiança número 1 na linguagem de cientistas: o modelo vigente é na parceria dedução-indução sem oscilações catastróficas de aplicabilidade? Olhemos para o estado Geral das Minas, professores em greve há mais de 100 dias, tendo como problemática de pauta a demanda excessiva de aulas, na relação fórmula ‘xls’ quantidade-qualidade x aluno-professor.

O que a vida tem de contemporâneo? Ela não tem nada de contemporâneo, ela é contemporânea ‘in natura’ e em forma, ainda que por vezes se tente enrijecê-la de outra coisa. E não cabe para tal adjetivação, polemizar o que seja contemporâneo. É isso mesmo, a atualidade, o que se mostra, o que está posto, o que pulula na desordem ordinária dos dias, na marcação dos ponteiros do século XXI. A vida é contemporânea na reunião da ONU; a vida é contemporânea no terrorismo; a vida é contemporânea na inversão de focos, donde um dente passa-se a um bezerro e o bezerro passa-se a um dente; a vida é contemporânea no se faz e no que ela se mostra.

Há ainda a primeira pergunta a ser ‘tentada’ para resposta. Em pescaria com os contemporâneos acima, com a fala da Dilma e com a frase do Chávez, atrevo-me, não pelo prêmio ‘joínha do século brasileiro’, antes, por inquietação tropeçante.

Retomo: Não é passada a hora de nos divorciarmos do discurso de herança histórica da maldição da educação no Brasil?

Pois bem Dilma, a educação tomada desde os gregos mostrou-se nas faces da antiguidade, da medievalidade, modernidade, e não diferente se coloca na contemporaneidade. Deste modo, não é oportuno, postular, esforços e pensá-la no nosso tempo? Tendo aprendido contigo a discursar, não é científico pensar a origem/causa da crise na educação brasileira a partir do modelo que impera?

Temos sim herança de uma independência desconcertada, heróica ao ‘simultanear’, independência em formalidade e colonização em prática. Temos a herança de mudanças bruscas subjugadas à revelia de vontades políticas pontuais? Talvez tenhamos. Mas, temos necessidade de pensar a questão como contemporânea, como realidade em exato acerto com a marcação do nosso tempo. Qual é o modelo posto? Desta segue-se: O que se ‘deseja’ com a educação? E daí as normativas da razão: O que ela pode e até onde ela pode? Disto, claro, perguntando-nos em movimento: O que seja a educação?

Aos tropeços acredito que cheguei a mais um tropeço, afinal, não tem fim a estrada ‘reflexão’, tem-se instantes. Escrevo para sentir a vida e escrevendo senti que nos tropeços cheguei na desilusão com o discurso da minha presidenta, embora desconfiasse desde o início da candidatura ao cargo sobre a área da educação. A desilusão aparece ressoada de um discurso expressivo em termos de representações e culto às fórmulas, não apenas numéricas. Estreiteza em manter a perspectiva de que a questão da educação no Brasil passa, tão somente por números, seja quantidades mensuráveis em relatórios, seja em abertura da caderneta bancária do governo. Tratar a educação imersa na pulsão da contemporaneidade, é rever modelos, é rever práticas mecanizadas, automatizadas por botões fantasmagoricamente ideologizados. Não tem segredo. Se o desejo é uma educação X, então abra a ‘torneira’ do X. Se quero um país de leitores, abra bibliotecas e despeje livros do céu. Não importa no rigor do pedantismo intelectual o que vai ser lido, é preciso que se leia, leia-se pornografia, leia-se fofocas, leia-se quadrinhos, leia-se jornal mentiroso-tendencioso, leia-se Camões em guarani, leia-se Machado de Assis em francês, leia-se Paulo Coelho em inglês, dê aos brasileiros a oportunidade efetiva de conhecer as ramificações da educação, e ele decidirá, ao ter acervo para tal, que literatura o presenteará com gozos. Para iniciar a revisão do modelo, é emergencial abrir mundos, ler o visível e o invisível, e esta tarefa só é possível de um modo duplo, na ingenuidade de quem acredita saltitante na vida, leitura-escrita.

Distante, muito distantes das planilhas do Excel, minha presidenta, são muitos compatriotas jovens alfabetizados em números e em assinatura do próprio nome, ainda que analfabetos ao não saberem que o feminino de presidente é presidenta, e não me vale a justificativa de historiadores e cientistas sociais de que seja apenas cultura machista, é também, desconhecimento da própria língua, uma língua tão saborosamente leve de ser falada, híbrida nos sotaques e dinâmica em necessidade, que esta, ao ser desconhecida por um brasileiro, ressoa como profunda tristeza. Maravilha singular que o modelo educacional tem roubado dos brasileiros, o gozo de brincar, torcer, cantar, saborear a própria língua em suas entranhas e fissuras. Como se tem roubado? Não revendo modelos, abstendo-se de tomar as causas com seriedade, e indiretamente permitindo que modelos imersos em representações obscuras, golpes silenciosos, continuem a julgar a vida, cristalizando receitas vazias e castradoras de prazer, sobretudo o prazer de sentir a vida, em instante puro, numa leitura e/ou numa escrita. 

Enquanto isso, enquanto permanecermos no auto-engano de nação, teremos dentistas matando dente em semelhança ao assassinato de bezerros, bem como o despudor de pregar a morte como acervo linguístico mais elevado de uma mente pensante.

E nos tropeços, fecho esse rabisco que apesar dos pesares, insiste em afirmar a Vida, sobretudo nas suas pulsões contemporâneas e nos seus traços artísticos. Escrevinhando o sentir como instante vivente.

Carol Gomes

Um comentário:

  1. Leio:
    No português existem os particípios ativos como derivativos verbais. Por exemplo: o particípio ativo do verbo atacar é atacante, de pedir é pedinte, o de cantar é cantante, o de existir é existente, o de mendicar é mendicante... Qual é o particípio ativo do verbo ser? O particípio ativo do verbo ser é ente. Aquele que é: o ente. Aquele que tem entidade.
    Assim, quando queremos designar alguém com capacidade para exercer a ação que expressa um verbo, há que se adicionar à raiz verbal os sufixos ante, ente ou inte.
    Portanto, à pessoa que preside é PRESIDENTE, e não "presidenta", independentemente do sexo que tenha. Se diz capela ardente, e não capela "ardenta"; se diz estudante, e não "estudanta"; se diz adolescente, e não "adolescenta"; se diz paciente, e não "pacienta".
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    Bem, um texto aparentemente vai por terra quando se toma a escrita na perspectiva de dois pólos apenas... ser (ou) não ser. Como sou dada ao ser (mais) não ser, vislumbro que reforço meu amor à língua portuguesa... suas estranhezas e veredas!!! Mais uma entre tantas para continuarmos a ler... ler...

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