6 de setembro de 2011

Saga de um espírito pequeno em tempos desanimadores

Segue-se um relato fiel aos fatos de uma primeira segunda-feira de setembro do 2011. Ora, reais no liame que abre o dissolver necessário entre o fatídico e o mais que fatídico. 

Como um anzol de escrita, abro com uma falsa modesta questão: 

Como viver em tempos que enganar é a máxima? 

Engana-se crendo que se engana outrem. Será que remonta aí uma tal estranha felicidade no hoje e que por qualquer desventura não me atentei ao aprendizado de tal?! 

Depois de meses numa luta vergonhosamente enlouquecedora com certa tal operadora que propagandeia o clarear, embora se erga num obscurantismo moral das telecomunicações, resolvi visitar um espaço cuja promessa abarca a salvação dos míseros legitimadores do engano, ávidos a devorar serviços e produtos, vulgo: consumidores. Como tudo se deu?! Relato. 

Tantos telefonemas desconsertantes à clareadora de dados na rede das comunicações; telefonemas estes que me custaram, para além dos gastos em cifras, reflexões num alto grau de aborrecimento, sobretudo após escutar gravações robóticas programadas para desestimular o desejo pela vida, e não apenas, vozes robóticas que empenhadas no objetivo de finalizar a ligação, reproduzem de modo bestializante o que autores gigantes da literatura faziam com inquestionável maestria: jogar os leitores para fora das páginas, como uma seleção dura e sedutora; algo do gênero: ‘meu escrito está para todos, mas não todos estão para o meu escrito”; quiçá fosse isso que passasse em mentes tão diversas das vozes robóticas, já que estas últimas, distante de selecionarem, forçam o menos escrupuloso do ligante, provocam o modo mais vil de diálogo, o sarcasmo pedante e vazio. 

Pois bem, o que se segue aos telefones são reflexões que envergonham o ‘ligante’, já que a chateação é tamanha que impera entre uma argumentação e outra, questionamentos nostálgicos: ‘Como pude me permitir a falar isso? O que estou fazendo?’. Ora, é um real descaramento de sensatas palavras: ‘Senhora, o procedimento foi realizado e sua reclamação registrada. Pedimos que aguarde 3 dias e o problema será solucionado”. Neste exato momento um ancestral nascido no instante final da fala robótica manda tudo para um caldeirão de nervos paridos das mais baixas excomungações. Eis que retorna imediatamente a sopa preparada do caldeirão e então a nostalgia se veste num desencanto. 

Primeiro engano da segunda-feira. Alimentar uma falsa esperança de que após vários telefonemas, na manhã de segunda-feira, um bom samaritano me ajudaria.

Segundo engano da segunda-feira. Acreditar que reflexões resolveriam a situação, distante de tal, apenas ampliaram tão incômodo contratempo. 

Ainda não desistido dos telefones continuei com a voz robótica, metodicamente treinada, aprendida e repetida... como isso me dói, dor de desentendimento. Como é isso? Como pode tanto assim? Por que fizemos isso? Lá pelas tantas, novamente na nostalgia, me peguei empenhadamente na tentativa de explicar à voz robótica que na minha cabeça, qualidade e quantidade são aspectos que se relacionam, embora distintos, e mais, a qualidade tomada como fonte da quantidade. Sim, em esparsas horas de lucidez involuntária, você percebe que o jogo foi invertido, e a desavergonhada mediocridade alheia, passa a ser sua, pois lá estava eu me condenando por alterar o tom de voz, justamente com a voz robótica. Eis que finalizo a última ligação, depois de tantas em tantos meses, dizendo: ‘Muito obrigada pela atenção e desculpa pelo modo agressivo que me expressei!’. 

Terminou a ligação, eu à beira de uma depressão filosófica, me perguntando sobre o mundo, sobre a vida, sobre quem sou, sobre como vivo, sobre a relação indivíduo-coletivo, enfim, metida em bobas reflexões de quem se perde com os enganos da felicidade estranha do meu tempo, esse mesmo, que vivo e que dele sou fruto. Larguei o telefone, olhei para minha progenitora e minha mais nova sobrinha de quatro patas que morde chinelos com empenho invejoso, e perguntei-me: ‘Por que é assim? Preciso aprender a viver!’. A cachorrinha veio pular no meu pé, afinal ela adora a cor azul do chinelo, e minha mãe, já cansada do episódio, sussurrou: ‘Minha filha, você precisa entender que o mundo é assim’. 

Pois bem, iniciei o terceiro engano da segunda-feira: Procurar um tal de defensor dos indefesos consumidores. 

Iniciei o ritual dos consumidores. Procura contrato, reúne faturas pagas, vasculha protocolos de atendimento, escarafuncha a memória para lembrar de palavras em ligações de meses e meses passados. Arruma uma mala de indícios, toma um banho de pura adrenalina, prepara a faca na mente e pimba! cai no mundo em busca de justiça! Ah, antes você deixa seus livros e divagações em casa, pega o endereço na lista telefônica, toma água para sobreviver à baixa umidade e vai embora. 

Intuindo que algo estranho continuaria a chegar, resolvi passar num sebo e comprar algo para leitura. Não dá para sobreviver com tanta pressão sem ao menos um delirante! Ótima pensada, tomei um chá de cadeira de 4 horas; mas vai lá, sobrevivi. 

Olha a rua, olha o número, confere o papel, tira os óculos, enxerga melhor, respira e entra. Eis a cena fatal! Faltaria ainda o espanto ao deparar com uma atendente caricatural ao telefone explicando que é preciso fazer ‘xérox’ (tenho pânico do tal ‘xérox’ com acento agudo para uma pronúncia aberta, não entendo porque não pode ser ‘xêrox’, pronúncia fechada) e vários corpos encostados nas cadeiras num sol escaldante aguardando o painel tocar com o número de senha.

A cena dos corpos aguardando a senha me remeteu a filmes que já vi sem lembrar se atualizadamente os vi. Bancos de madeira, pessoas encaloradas com semblantes de cozimento do cérebro, dificuldade na respiração, pensamentos loucos entre planejamentos, neuroses, ousadias e vai lá, ‘mais uma que chegou para a fila’. Na cena só não consegui reproduzir a miragem do calor no chão e a mosca satirizando os humanos, enganados e enganantes. 

Focalizei um lugar livre, ao lado de um senhor que suava mais que panela de pressão, enfim, mais uma ação afirmativa da minha parte, somos todos farinha do mesmo saco, então, sentei. O senhor era puro cheiro de suor guardado, reguardado, mas tudo bem, somos todos humanos. Então me lancei às reflexões, sobretudo depois de olhar para minha senha num papel amarelinho em sintonia com o painel. No papel meu número era 65 e no painel do coletivo, o número era 30. Conclusão: 35 chamadas até mim. Não me desesperei por vários motivos, entre os quais: i) sou treinada em esperas, escrevo e leio em pontos de ônibus; ii) escrevo e leio em filas de banco; iii) contemplo o passar do tempo com frequência; enfim, espera nem sempre é um problema, tanto mais porque tinha comprado um usado de páginas amareladas, além de me acalmar lembrando que gozava eu de férias... um ótimo momento talvez fosse aquele para experimentar os serviços propagandeados do governo. 

Reflexão na cadeira ao lado do homem suado: Por que esse tanto de pessoas aqui? Pergunta ridícula, e lá estava eu novamente me condenando: ‘Pelo mesmo motivo que eu’. 

Olhei para cima, a televisão ligada no programa favorito do meu povo, jogo da seleção brasileira. Ainda animada para viver a aventura, me meti a olhar o jogo e observar a movimentação alheia. Um jogador com cabelo de pica-pau, apelidado não por mim, mas por um outro senhor que se divertia falando de futebol... enquanto isso a senha corria. Uma senhora no ponto de explodir, tamanha ansiedade, olhava para os lados, para frente, para trás, para o relógio, celular, papel, estava eu para ver o momento em que ela num pulo grudaria na lâmpada do teto, tamanha ansiedade. Engraçado que ela tinha uma cara de ‘F-algum-número’ do CID-10. Aí comecei a viagem: já pensou se essa ‘F-algum-número’ gruda no pescoço de um atendente?! E disfarçadamente permiti um sorriso, já em tempo, porque o café oferecido no canto da sala estava frio e doce. 

E entre uma divagação e outra o tempo foi correndo, o painel apitando e as senhas, vagarosamente, em sucessão. Eu que tinha chegado às 15h30 já ia lá pelas 17h, sentada, viajando, ora lendo, ora escrevendo, ora encaixando aqueles personagens em ‘contações’ à minha exigente vontade. Desse modo me distraí em partes com os telefonemas da manhã, distraí mesmo, tanto que voltei para as perguntas nostálgicas: ‘Não seria melhor eu ir embora, pagar multas e ser feliz sem estresses, papéis para assinar, telefones e mais artigos, caput’s e blá blá?!’. Pronto, estava lá a Carol formalizando uma tentativa de engano. Segundos depois retomei a empreitada: ‘Não, só saio daqui depois de resolvido’. Que depressão, meu corpo desviado para assinar papéis que julgam justiça. Depressão maior e mais grave que essa, só a dos ‘F-algum número’ do CID-10. 

18h10 bate a minha senha no painel, 65, mais um e era 66, o que certamente teria me rendido outras tantas divagações-reflexivas. Anúncio do dia: Senha 65 – Mesa 12. 

Continua o ritual. Abre a porta na expectativa do que haverá atrás dela (da porta). Um monte de mesa com pessoas de todos os lados falando simultaneamente. Olhei e lá estava o senhor de camisa listrada na mesa 12 num sorriso estranho; pensei: ‘Também sou estranha, se ele me morder, mordo ele’. Lá fui, sentei, falei meu ‘boa tarde’ atrasado. Fixei no papel em cima da mesa o nome do moço, logo fiz associação com Egberto Gismonti. Pronto, o suficiente para amenizar as estranhezas alheias. 

Relato vai, relato vem. Faz um cadastro aqui, uma informação ali e começa os sinais de que os dias têm sido engano mesmo. Primeira situação sinistra. O senhor da mesa 12 preencheu meu cadastro com o nome da minha mãe, ou seja, o ‘caba’ no automático-robótico se quer recorda o que seja leitura. Ok! Sem estresses, meu nome é muito parecido com o da minha mãe, tão parecido que ele elogiou por lembrá-lo do nome do avô, Otávio. E então decidi: ‘Quer saber, vou fazer festa é agora!’.

É para enganar?! Entrei no movimento. 

E fomos, entre perguntas e respostas, muitas. O relógio bateu às 19h30. Ele me olhava, com as informações da minha formação e similares. Do outro lado eu o olhava, naquela cadeira, pelo cargo sabia a profissão, pelas palavras conjecturei as fantasias de um engravatado amarrado e fui, vagante, entre fatos e fatos.

Seguimos enganando, todos. i) A clareadora que me ‘concedeu’, veja bem, ‘concedeu’ 10% de uma multa para finalizar um papel cuja qualidade é horrível, tanto quanto o sinal da comunicação. ii) O senhor da mesa 12 preencheu no relatório do dia mais um caso resolvido com acordo entre as partes. iii) Eu, talvez com medo do ‘F-algum-número’ do CID-10 fiquei feliz, afinal, permanecer ruminante, o resultado é sem dúvida um ‘F’. As outras pessoas que com o mesmo medo que eu ou não, assinaram papéis e respiraram aliviadas, afinal, algo foi feito. E assim tantos e tantos enganos.

É bem certo que me diverti com a segunda-feira, embora ainda que com esforço, não consegui enganar-me. O que menos me fica é o estresse, desse tenho conseguido me desviar de modos diversos. O que fica a martelar no pensamento, a ruminar sem trégua, é in-justamente o movimento que meu tempo alimenta, as dinâmicas que se reproduzem. Práticas que revezam na mesmice e que uns engolem insaciavelmente, apesar de sem fome, outros. Doutro lado, os outros engolidos, se vangloriam em iscas gratuitas.

Eu que gosto dos olhares, por vezes permito lágrimas, sim, lágrimas nostálgicas porque ainda que haja esforço, sou afetada por tanto desprezo pela vida. Esse desprezo julgo (‘julgo’) ter visto com recorrência na primeira segunda-feira de setembro. O que há de tão formidável neste engano de tempos atuais? Que estranheza sedutora é esta que alimentamos como falsa origem de felicidade?

Toda a segunda-feira me colocou a divagar sobre o ‘enganar’, sobre o enganar alheio e o auto-enganar. Tivesse eu conseguido aderir ao movimento, não estava a pensar e repensar todo um dia de automatismos robóticos. De certo que quero imensamente crer que nenhum em realidade esteja aderido ao movimento ‘enganar-se-enganando’. Não pois que seja esse o engano. Alimento sim o engano diário, nascido do esforço de um espírito pequeno que ainda (ainda), acredita no enganar do belo vestido da ilusão... vestido esse que não sufoca, sobretudo porque o engano não é pelo engano, é pelo não cumulativo, é antes pela insistência no tempo e pelo tempo.


Carol Gomes

6 comentários:

  1. NÃO: Não quero nada.
    Já disse que não quero nada.

    Não me venham com conclusões!
    A única conclusão é morrer.

    Não me tragam estéticas!
    Não me falem em moral!

    Tirem-me daqui a metafísica!
    Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
    Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
    Das ciências, das artes, da civilização moderna!

    Que mal fiz eu aos deuses todos?

    Se têm a verdade, guardem-na!

    Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
    Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
    Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

    Não me macem, por amor de Deus!

    Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
    Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
    Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
    Assim, como sou, tenham paciência!
    Vão para o diabo sem mim,
    Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
    Para que havemos de ir juntos?

    Não me peguem no braço!
    Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
    Já disse que sou sozinho!
    Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

    Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
    Eterna verdade vazia e perfeita!
    Ó macio Tejo ancestral e mudo,
    Pequena verdade onde o céu se reflete!
    Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
    Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

    Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
    E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
    ---
    Poema: Lisbon Revisited (1923) de Álvaro de Campos (Álvaro de Campos e não outro)

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  2. e eu que queria ter sido parida da barriga do rei, mas acabei rolando na lama da plebe... ainda julgo que posso me dar ao inferno luxuoso de ficar viajando nessas coisas...

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  3. Carolzinha, fabuloso este teu texto! Um relato vertiginoso do que são os serviços (públicos ou privados) nesta terra e em tantas outras terras deste "planeta"!! rs Herança maldita de uma colonia longínqua?!!

    Beijos... Carol

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  4. Epa!!! Favor corrigir o 'maldita' ao se referir aos meus colonizadores... eles me fazem muito bem, adoro-os!!!
    Para vc, Sra. Carol, um Oswaldo Montenegro que julgo desconhecer, se não, desmerecer...
    ---
    Mas não sê tão ingrata
    Não esquece quem te amou
    E em tua densa mata
    Se perdeu e se encontrou
    Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
    Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
    Sabe, no fundo eu sou um sentimental
    Todos nós herdamos do sangue lusitano uma boa dose de lirismo
    Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar,trucidar
    Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora...
    Meu coração tem um sereno jeito
    E as minhas mãos o golpe duro e presto
    De tal maneira que, depois de feito
    Desencontrado, eu mesmo me confesso
    Se trago as mãos distantes do meu peito
    É que há distância entre intenção e gesto
    E se o meu coração nas mãos estreito
    Me assombra a súbita impressão de incesto
    Quando me encontro no calor da luta
    Ostento a agida empunhadora à proa
    Mas meu peito se desabotoa
    E se a sentença se anuncia bruta
    Mais que depressa a mão cega executa
    Pois que senão o coração perdoa...
    ---
    Só colonizados de 'relatos vertiginosos' para compreender quando 'o coração fecha os olhos e sinceramente chora'... daí lágrimas por incompreender que estranha felicidade é essa de meu tempo...

    Abraços,
    Carol

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  5. Carolzinha,
    Adorei o teu relato (prolixa como sempre!! rss). De facto um relato vertiginoso do que são os serviços (públicos ou privados, não dá realmente para fazer distinção) nesta terra, como disse a "outra" Carol acima, que não eu!!! rss Permite-me aqui discordar com a "outra" Carol. Não acredito que seja uma herança maldita da colonia longínqua. Até porque, desde 1822 que o Brasil caminhou pelos próprios pés, como uma nação independente (ao contrário de outra ex-colonias, que só viram a sua independência dos "malditos" colonizadores, na década de 70 do seculo passado). Por isso, teve mais do que tempo para corrigir os "excessos" da colonia. E não.. conseguiu aprimorar ainda mais!!! rss
    De volta ao Brasil há cerca de 7 anos, já aprendi que por aqui são necessárias grandes doses de paciência e persistência, para se sobreviver diariamente nesta terra.
    Um beijo e continua a partilhar os teus relatos cotidianos com o mesmo entusiasmo, inteligência e bom humor de sempre,
    Carol (agora sim, colonizadora!! rsss) ;)

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  6. Ah... gostei da referência ao grande Mestre!! ;)

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