31 de maio de 2011

[...]
Compreender com Gilles Deleuze significa desentender-se.
Pelo corpo que ele traça,
o desenho de seu pensamento escapa à vala comum dos sistemas,
transpassa com sua visão de inseto sensível
todas as ficções, todas facções,
simultaneamente.
Vasta rede no interior da qual circula a eletricidade dos sentidos.
Homem-mosca ou aranha sagrada,
semelhante sem semelhante.
A cena barroquizante de sua escrita contrátil, tátil transmuta todos os ares
para vir devorar o sonho da crisálida
e ser assim por rapto o olho-idéia móbile que se movimenta em contraponto
em diferentes linhas de fuga e de ataque,
instantaneamente.
Deleuze,
filósofo-criador,
criador e filósofo,
fez do cinema um meio de investir o sentido da superfície
contrariando a profundidade clássica da filosofia.
Cineasta radical, ele é o homem dos olhos de raio-x
do cinema dos circuitos conexões disjunções agenciamentos
em curto-circuitos cerebrais.
[...]
BRESSANCE, Julio. Cinema Deleuze. In: Gilles Deleuze: uma vida filosófica. Org. Éric Alliez. Coordenação da tradução de Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Ed. 34, 2000. p. 545-548.

22 de maio de 2011

As releituras... como são gigantes quando diabólicas, sequestradoras.

Sequestro 1
Parido: Ol’ Man River (Oscar Hammerstein II e Jerome Kern)
Cuspido: Sábio Rio (Carlos Rennó e Jaques Marelenbaum)

Na interpretação do João Bosco e não menos na interpretação do Simoninha... ficou mais que tupi essa canção, selvagem, visceralmente selvagem, sem perder a leveza tão necessária para dor do existir...

Incrível como o maestro conseguiu nas tocadas reconstruir o movimento do rio, o vai-indo-vindo. Para o ouvido não civilizado à erudição da música, a canção é ‘transvista’ como que um quadro, uma linda pintura... o músculo de pele negra, suada na beira do rio.

Ora, essa canção discute sim questões políticas, mas para mim, discute muito antes a gigante nietzschiana metafísica artística. Agruras da vida...

Se belo é o encontro da letra com as notas sonoras, mais bela se fez a expressão do trecho que imensamente custa à existência:

‘Já estou cheio
Sofrer me frustra
Viver me cansa
Morrer me assusta
Mas sábio rio
Vai só rolando ao léu’


Sequestro 2
Parido: Over The Raibow (E. Y. Harburg e Harold Arlen)
Cuspido: Mais Além do Arco-Íris (Carlos Rennó e Jaques Marelenbaum)

Essa na interpretação da Zélia Duncan, embora para mim, interpretação que haveria de ser (inegavelmente) da Mônica Salmaso ou da Izzy Gordon, é uma das maneiras mais sutis que já topei que questiona os limites do existir, embora simultaneamente afirme com doçura a vida, presenteando-a com o não limite azulado-colorido do céu, como na passagem: ‘no teu sonho mais louco se realizará’.

‘Há uma estrela eu pedirei
e no alto céu acordarei
Um dia...
problema vira picolé
por sobre antena, chaminé
e a nuvem fria

Mas além do arco-íris
no alto céu
voam pássaros raros
Por que não posso eu?
Se pássaros avoam no alto céu
Então por que não posso eu?’


Sequestro 3
Parido: Bewitched, Bothered and Bewildered (Lorenz Hart e Richard Rodgers)
Cuspido: Inquieta, tonta e encantada (Carlos Rennó e Jaques Marelenbaum)

Vai lá... a Maria Rita novamente. Tudo bem que sempre digo a mesma coisa e aqui repito. Minha geração não teve a Elis com sua rasgação que fazia mortais flutuarem, mas vai lá, temos o seu escarro, Maria Rita... enfim, essa canção na voz da Elis arrancaria todo o líquido do corpo em lágrimas, e claro, muitos drinks, fortes... fortes...

Quantas mediocridades não encantam, não enlouquecem prazerosamente e marcam segundos de um longo existir? Atenção: um longo existir... que aparece, some e tende a retornar estando... ‘mas hoje eu já adolesci demais’... Ah! Quantos pudores e inocências para viver esse ‘um longo existir tão breve’.

‘Ao falar ele sente travação, timidez
Mas horizontalmente, falando ele é dez
Perplexa e fim, conexo enfim
Com graças a deus muito sexo enfim
Inquieta, tonta e encantada estou

Tive um surto dispéptico
Mas viver já não dói
Tenho peito antisséptico
Desde que você se foi

Romance, finis
Sem chance, finis
Calor a invadir o meu colã, finis
Inquieta, tonta e encantada não mais’

Carol Gomes

3 de maio de 2011

A tragédia está sentada em meio a esse transbordamento de vida, sofrimento e prazer; em êxtase sublime, ela escuta um cantar distante e melancólico – é um cantar que fala das Mães do Ser, cujos nomes: Ilusão, Vontade, Dor. [Nietzsche, 1992, p.123] 

sobrevém ao espectador trágico justamente aquele seguro pressentimento de um prazer supremo, ao qual conduz o caminho que passa pela derruição e negação, de tal forma que julga ouvir como se o abismo mais íntimo das coisas lhe falasse perceptivelmente. [Nietzsche, 1992, p.125]

a existência e o mundo aparecem justificados somente como fenômeno estético: nesse sentido precisamente o mito trágico nos deve convencer de que mesmo o feio e o desarmônico são um jogo artístico que a vontade, na perene plenitude de seu prazer, joga consigo própria. [Nietzsche, 1992, p.141] 

Referência:
NIETZSCHE, F. W. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. J. Guinsburg. SP: Cia. das Letras, 1992. 

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Incrível como vacilamos durante alguns bons dias, até que numa tarde não tão despretensiosa encontra-se em páginas esgarçadas pelo mestre, apontamentos que fazem valer os minutos nada nada compreendidos.

A seriedade do existir desvelada pelo pensador...