30 de junho de 2014

certo dia escutei o desdém ao Zé Ramalho: "não gosto dele, tem um jeito e umas músicas de profeta. Não gosto de asceticismo!".

fiquei mascando a condenação durante uns anos... e até hoje masco, embora hoje sem muita ruminação. Uai, e não é que ele é uma figura 'outra'?! da voz à magreza desarmônica nos traços do rosto... e quiçá como numa das suas letras "momentâneo alienígena".

um profeta! talvez tenha sido por isso que na adolescência fudi minha cabeça ao escutar essa voz cavernosamente invasiva pareando mulher e serpente como seres do pecado que vão e voltam na bagunça de passado-futuro.

jardim das acácias é de fato uma letra profética, profecias confusas e alucinadas de asfalto, tipo aquelas visões estranhas que vemos sair dos 'olhos vermelhos, queimando e estourando as veias oculares dos que viram algo magnífico'! (e isso é o Deleuze possuído por Nietzsche)... das visões às profecias, o salto aparece por ele falar em seres, seres criadores, seres estranhamente não humanos. [Mas até aqui, para mim tranquilo, porque cada um tem seus seres criadores com a roupa que queira... tem gente que faz isso muito bem com filósofos... o santo-deus-filósofo X, que sabe tudo e responde a tudo].

lá vem o Zé, das ruas da João Pessoa, com os olhos vermelhos, alucinado, esgoelando sua homenagem animal, louca e despudorada sem vontade de sair da caverna, como "Judas em paz". Uma tal voz ora invasiva ora cansativa ora enjoativa e ora tudo junto, mas inegavelmente, singular.

para mim, o jardim das acácias, uma belíssima e amante-traiçoeira homenagem... no jogo louco das terras que nos parem, nos recebem, nos expulsam e nos estrangeiram!

(por sinal, a guitarra original dessa música é do pepeu gomes no final dos 70s)




24 de junho de 2014

o dia em que a mão encostou na nuvem

julinha de 5 anos:
- carol, o sol vai embora dormir aí a lua chega. A lua fica acordada a noite inteira com as estrelas.

carol pensa:
- o que será que a lua e as estrelas ficam fazendo acordadas a noite toda?! Ham...

julinha 5 anos e prima da carol diz:
- carol, sou doidinha para encostar a mão ali naquela nuvem.

carol infere:
- uai, julinha, só encostar.

julinha maquina o plano:
- um dia vou entrar no avião e quando chegar no céu, vou abrir a janela e colocar meu braço no meio da nuvem, aí vai derreter e aparecer um monte de passarinho.

carol pensa:
- caramba, por que não tive essa esperteza tão meiga, leve e terna?!

16 de junho de 2014

Dias, eu vos suplico

Mais um discreto episódio do cotidiano - fragmento 0,00001111 (porque entre o 0 e o 1 há infinitos, às vezes possíveis).

O objetivo era fechar a tarde após um longo processo de labuta, cuja bandeirada do finish seria o presente do amigo.

Pois bem, maratona realizada com imensa empolgação, num processo em que a mente rouba o indivíduo milhares de vezes e o presentifica diante da oferenda: “Será que esse ele vai gostar?!”, ou: “Será que essa vai servir?!”, ainda: “Ixe, mas essa é brega! Não, brega para mim, pode ser que ele goste”, e o imbróglio continua: “Meu deus, preciso ser mais atenta para presentear, como não lembrei antes?!”. E eis que os minutos vão passando.

Até que aquele presente resolve surgir dos caminhos mais profundos do estabelecimento, como uma magia inexplicável (e naquela altura da empreitada, você realmente já acredita em magia): “O presente perfeito! A cara dele! Tudo que eu precisava!”. Você agarra o presente, busca apressadamente o caixa para pagar, já pensando no pacote colorido, e segue, com cara de queniana em época de corrida de São Silvestre: “Achei! É esse! Fim! Valeu a disciplina insistente”.

Passado pelo pagamento e pelo conflito da mente entre eu mesma fazer o pacote colorido com cara de Carol, ou, me render à esteira do pacote padronizado, segui para o balcão do pacote.

Alegrinha, chego lá e topo com uma fila que inevitavelmente nos faz pensar: “Só por um amigo mesmo rola ficar nessa fila de pacote!”. O celular treme, a mente desconcentra e conecta na mídia móvel. Chega mensagem, envia mensagem. E a fila vai passando, até que você se dá conta de que ficou para trás e outras pessoas se adiantaram à sua vez.

Até aqui tudo bem, até que você decide retomar a concentração no presente e percebe que ficou para trás, segue passos adiante e pede o pacote para presente.

Eis que surge uma mulher enlouquecida, histérica, um ‘ser’ que só Freud nas profundezas das suas viagens tentaria compreender: “Não! Não! Ela passou na minha frente e você terá que me atender!”.
Eu, um ‘ser’ pequeno, indefeso, usando e abusando da cor laranja em plena segunda-feira, numa cara do tipo “de que caverna saiu esse descontrole emocional em formato de homo sapiens sapiens fêmeo?!”, percebi meu coração disparar e minha mente num estrangulamento de faculdades entrou em pane no impetuoso conflito: “Discuto com esse ‘ser’ descontrolado ou respiro fundo e alivio meu coração ‘sofredor de intensidades’?!

A razão não prevaleceu, nem tampouco o diagnóstico da histeria, mas me tomou conta nas veias um nojo e simultaneamente uma tristeza ao perceber a imbecilidade naquele escarro pranchado, individuado em apenas um corpo! Aliás, quem dera fosse apenas naquele corpo, porque a tristeza surge justamente por ser forçada a ponderar ‘negativamente’ de que esses escarros estão em milhares, e que aquela bestialização personificada é apenas uma versão de um falso problema, aliás, de um problema mal colocado... o velho e antigo problema do ressentimento.

Imediatamente olhei para as duas crianças que estavam com ela, lembrei de que uma infância pode ser uma desgraça por conta de uma discussão por fila, e de o contrário seria a graça de ignorar e seguir gentil nas faixas de pedestres, na cordialidade impessoal, na paciência e admiração por relógios desacertados que possam girar no sentido contrário e blá blá blá...

Finalizei os lapsos de vômito e reflexão em segundos dizendo: “Moço, pode atendê-la, ela tem escolhido um perfil de vida que quero passar muito longe!”.

Depois do meu pacote de presente finalizado, segui pensativa em busca de um açaí, porque em fato, tem encontros que te vampiram energia e te ‘esgotam’ momentaneamente, a doçura.

O presente chegou com imenso carinho e um doce abraço, porque junto foram as reflexões, os suspiros e o esforço para continuar querendo os dias, ainda que às vezes com vômitos alheios!

Carol Gomes

8 de junho de 2014

Seguindo os fatos, quase fiéis ao atualizado

A poltrona B11 cuja marcação parece código de vacina ou ônibus cheio no fim do dia, mostrava-se num forro vermelho. Na vizinha B10 sentou uma garotinha com o pai. Hum, interessante: os pais levando os jovens para o teatro.

Com o encarte da peça na mão - Nonada - a garota começou a leitura tecendo comentários do tipo:

- Olha só, Guimarães Rosa, tinha problemas com excesso de peso, sedentarismo e fumava. Ê pai, esse Guimarães Rosa vivia tudo errado!

Primmm, meu radar para mínimos-micros-silenciosos-anônimos eventos entrou em ação. Comecei numa ruminação noética sobre os encontros dentro de um tempo engraçado que não o oficial.

A peça que não começava, a garotinha que continuava fazendo seus links, e eu ruminando tirei a dose poética da bolsa e fui enfim tomar o gole que deveras ter sido da noite anterior:: "Ziguezagueando..." da dose, só o título desceu!

Voltei a concentração para a conversa da garotinha e no pós apresentação fechei a noite com a digestão assim:

- 'Viver é negócio muito perigoso' mesmo, e depois de já sem vida, esse perigo continua se dobrando e dançando... vai e volta ele surge, inclusive na zombaria de uma garotinha que sem saber dos sertões se colocou no tête-à-tête com o escritor e deu-lhe, ao seu modo, a lição do seu tempo: 'tá vendo? quem é sedentário vive menos'.

Ainda que vivendo prolongado nos perigos da sua obra, naquele instante, Guimarães passou a ser apenas mais um descuidador da sua saúde.

E a peça para mim, foi ao palco e sentou ao meu lado... um e outro: Guimarães e aquela garotinha tão anônima que nem faço ideia do nome, nem tampouco dos traços físicos, porque a mim, valeu mesmo foi sua voz construindo uma nova narrativa, longe de holofotes e cânones.

Dose poética... nem sempre na garrafa e nem sempre na hora certa!

Carol Gomes