16 de junho de 2014

Dias, eu vos suplico

Mais um discreto episódio do cotidiano - fragmento 0,00001111 (porque entre o 0 e o 1 há infinitos, às vezes possíveis).

O objetivo era fechar a tarde após um longo processo de labuta, cuja bandeirada do finish seria o presente do amigo.

Pois bem, maratona realizada com imensa empolgação, num processo em que a mente rouba o indivíduo milhares de vezes e o presentifica diante da oferenda: “Será que esse ele vai gostar?!”, ou: “Será que essa vai servir?!”, ainda: “Ixe, mas essa é brega! Não, brega para mim, pode ser que ele goste”, e o imbróglio continua: “Meu deus, preciso ser mais atenta para presentear, como não lembrei antes?!”. E eis que os minutos vão passando.

Até que aquele presente resolve surgir dos caminhos mais profundos do estabelecimento, como uma magia inexplicável (e naquela altura da empreitada, você realmente já acredita em magia): “O presente perfeito! A cara dele! Tudo que eu precisava!”. Você agarra o presente, busca apressadamente o caixa para pagar, já pensando no pacote colorido, e segue, com cara de queniana em época de corrida de São Silvestre: “Achei! É esse! Fim! Valeu a disciplina insistente”.

Passado pelo pagamento e pelo conflito da mente entre eu mesma fazer o pacote colorido com cara de Carol, ou, me render à esteira do pacote padronizado, segui para o balcão do pacote.

Alegrinha, chego lá e topo com uma fila que inevitavelmente nos faz pensar: “Só por um amigo mesmo rola ficar nessa fila de pacote!”. O celular treme, a mente desconcentra e conecta na mídia móvel. Chega mensagem, envia mensagem. E a fila vai passando, até que você se dá conta de que ficou para trás e outras pessoas se adiantaram à sua vez.

Até aqui tudo bem, até que você decide retomar a concentração no presente e percebe que ficou para trás, segue passos adiante e pede o pacote para presente.

Eis que surge uma mulher enlouquecida, histérica, um ‘ser’ que só Freud nas profundezas das suas viagens tentaria compreender: “Não! Não! Ela passou na minha frente e você terá que me atender!”.
Eu, um ‘ser’ pequeno, indefeso, usando e abusando da cor laranja em plena segunda-feira, numa cara do tipo “de que caverna saiu esse descontrole emocional em formato de homo sapiens sapiens fêmeo?!”, percebi meu coração disparar e minha mente num estrangulamento de faculdades entrou em pane no impetuoso conflito: “Discuto com esse ‘ser’ descontrolado ou respiro fundo e alivio meu coração ‘sofredor de intensidades’?!

A razão não prevaleceu, nem tampouco o diagnóstico da histeria, mas me tomou conta nas veias um nojo e simultaneamente uma tristeza ao perceber a imbecilidade naquele escarro pranchado, individuado em apenas um corpo! Aliás, quem dera fosse apenas naquele corpo, porque a tristeza surge justamente por ser forçada a ponderar ‘negativamente’ de que esses escarros estão em milhares, e que aquela bestialização personificada é apenas uma versão de um falso problema, aliás, de um problema mal colocado... o velho e antigo problema do ressentimento.

Imediatamente olhei para as duas crianças que estavam com ela, lembrei de que uma infância pode ser uma desgraça por conta de uma discussão por fila, e de o contrário seria a graça de ignorar e seguir gentil nas faixas de pedestres, na cordialidade impessoal, na paciência e admiração por relógios desacertados que possam girar no sentido contrário e blá blá blá...

Finalizei os lapsos de vômito e reflexão em segundos dizendo: “Moço, pode atendê-la, ela tem escolhido um perfil de vida que quero passar muito longe!”.

Depois do meu pacote de presente finalizado, segui pensativa em busca de um açaí, porque em fato, tem encontros que te vampiram energia e te ‘esgotam’ momentaneamente, a doçura.

O presente chegou com imenso carinho e um doce abraço, porque junto foram as reflexões, os suspiros e o esforço para continuar querendo os dias, ainda que às vezes com vômitos alheios!

Carol Gomes

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