6 de maio de 2015


corriqueira carta com palavras transbordadas

Bebete, vou te contar umas coisas, falando bem baixinho. Como se falando baixo o tempo não escutasse, as paredes nem percebessem e o mais importante é que algumas coisas dentro da gente, talvez uns ‘eus’ da gente, não soubessem.


Um dia recebi uma mensagem simples e cordial me pedindo umas indicações de livros sobre existencialismo. A princípio um fato corriqueiro do dia-a-dia, sem grande mistério. 

Um dia recebi um convite para assistir a um filme com temática ambiental. A princípio um fato corriqueiro do dia-a-dia, sem grande mistério.

Um dia percebi uma existência e pressenti que tinha algo misterioso nessa existência. A princípio um fato corriqueiro do dia-a-dia, sem grande eventualidade.

Um dia vi uma foto e lá um olhar que vibrou diretamente em mim do outro lado da tela. A princípio um fato diferente, pouco inquietante, algo como ‘ser não-sendo’.

E o que é um fato corriqueiro do dia-a-dia sem grande mistério?

Um dia peguei um raminho de flor numa praça pública. Fato corriqueiro sem grande relevância, mas nesse dia percebi que as flores cultivadas nas praças traziam um universo particular, elas traziam uma leveza do descompromisso de se mostrarem belas diante da indiferença dos que passam. Desde então, pressenti que presentear com raminhos de rosas ou flores de jardins públicos é uma demonstração corriqueira, pequena em brilhantina, embora, grande em afeto porque rompe silenciosamente com a indiferença.

Um dia aprendi a fazer flor com papel laminado do maço de cigarros. A feitura da flor é rápida, discreta e geralmente acontece na mesa de um boteco. Num momento em que alguém se lança numa introspecção e escutando os colegas, vai cortando pedacinhos e pedacinhos até emparelhar as pétalas e enlaçá-las dando o formato de flor, sim, como uma ‘borboleta que o vento tirou para dançar’. Fazer uma flor na mesa do bar e presentear quem te afeta, é como dizer que não se tem ‘paraíso para oferecer’, mas que tendo uma vida plebeia, presentear com flor do maço de cigarros que você nunca fumou, é reinventar o universo para por alguns segundos entrar no olhar daquele que se deseja. Dar uma flor assim é um gesto que aparece como corriqueiro, mas na simplicidade da flor, revela uma grandeza de afeto.

Um dia escutei gestos sem emissão de som, escutei os gestos com o meu olho. Esses gestos se lançavam, aparentemente, num misto de ansiedade e de não seriedade. Sim, esses gestos eram corriqueiros e foram se somando e me emaranhando numa história nada oficial, aliás, distante de qualquer oficialidade. Uma história de puro simulacro, ou nos termos da internet, uma história fake.

Momentos intensos sem serem momentos, porque ninguém sabia; aliás, nem os corpos pareciam saber da grandeza experimentada. Namoro sem ser namoro, sem pedido expresso. Casamento sem casório, sem rituais, embora transbordado de convivência e companheirismo. Términos sucessivos de uma relação que não existiu, embora acontecida durante longos meses. Amor vivido e raríssimas vezes declarado com frase clichê de casal. Sexo perfeito com prazerosas imitações. Convivência familiar com sogros, cunhados e avós, sem jamais se conhecerem. Uma rede dignamente simulacra.

E o que é um fato corriqueiro do dia-a-dia sem grande mistério?

O corriqueiro sem grande mistério foi tudo o que se permitiu aparecer. O simulacro-fake foi a via encontrada de abertura e mergulho, ‘vivendo um dia após o outro’ para que assim o tempo que desgasta não nos aprisionasse. Todos os dias os mesmos corpos surgiam como corpos novos, por isso a atração não acabava, nem com os mais múltiplos prazeres, insaciável, desejo sem fim, justamente porque era tudo sem ser nada, acontecia sem existir, por isso fake.

O corriqueiro tinha roupa, mas o grande mistério era nu, silencioso e pulsante. Por ser grande transbordou e nós que sabíamos falar a linguagem do corriqueiro, não conseguimos falar a língua do grande mistério, aí, doemos. Não queríamos jamais doer, e sem querer doemos mais ainda. Doemos porque apenas olhando decidimos não falar do grande mistério, optamos por experimentá-lo sempre mais e mais; então nos negamos a falar, sabiamente, nos negamos a falar do grande como sendo algo corriqueiro que se tem em qualquer esquina.

Um dia, acordei com esse grande mistério transbordando no peito, transbordou muito que doeu, e essa grandeza irradiando por todo o corpo me explodiu.

Um dia eu senti o amor como excesso, não como falta. Esse amor se fez lindo porque longe das grandes teorias e modelos, ele aconteceu sem existir, porque ele foi grande em mistério e belo em cores que só dois olhares experimentaram.

Um amor que não existiu, mas aconteceu. Um amor que não tem provas, mas tem sinais. Um amor que não tem matéria, mas tem marcas em todos os lugares. Um amor que não tem começo porque sem existência ele nunca haveria de ter começado, mas um amor que por ter acontecido insiste em simular seu fim, que foi sem ter sido. Por certo, os tantos fins embora anunciados não haverão de findar, porque como fake, esses fins não existem.

Um amor sem existir, mas acontecido. Um amor sem começo e por isso sem fim.

Passado tanto tempo, talvez entendamos aquele pedido por livros sobre existencialismo, porque mais do que livro, hoje temos momentos acontecidos numa existência particular, grande, misteriosa e singular; por isso, sem fórmulas, sem compreensões, sem clichês.

[para você, Bebete, minha carta de amor]

carol gomes