24 de novembro de 2014

lembranças de uma memória anterior ao memoriável
(aos passados dos ante-passados... dos antes do que passou)

Poderia seguir o diálogo identificando as personagens e como uma exímia memorialista descrever conexão por conexão dos fatos de uma história pessoal que conheci hoje; mas não, driblando o sono com uma vontade infinda de reconectar o acontecido, pontuo algumas esparsas conexões que o corpo mentaliza sem ordenação lógica, deliberadamente por uma outra temporalidade que não compreendi bem.

Mas por que isso? Porque você me pergunta obstinadamente não pelas origens e sim pelos desdobramentos.

Por que sou quem sou e trago no âmago o universo?
Porque você esteve na festa negra dos batuques, dos tambores e dos gritos de viva! Aparentemente, mas só aparentemente, sem se perguntar pelo amanhã, dançava ecoada no som das batidas, cuja pele indiferente à pigmentação, transpirava suspiros do existir.

Sim, minha cara... você esteve nessa festa acontecimental do 13/05/1888 e que adentrou outros mais dois dias; e não esteve só, suada e pulsando esteve desmembrada num não-ser humano maior, esteve no fluxo minoritário do não homem branco. Essa é a pulsão que te conecta com uma vitalidade sem memória enquanto faculdade inquisidora, se não, memória unicamente corporal.

Ouça bem. A negra fitava-te nos olhos, mas não tinham olhos. A negra curvada gemia por pesos de uma velhice milenar, mas não tinha cajado. A negra falava enrolado e baixo, mas não tinha som as palavras que pronunciava. A negra te fazia feliz, mas não tinha presença imediata. A negra dava a ver conexões do universo, mas não tinha bordas o que estava dado para ser visto. A negra se conectava contigo quando sem plasmar formas te nutria de força e amor. A negra nesses momentos era a presença mais real sem possibilidade de acontecer nos limites de Cronos.

Esse olhar me levou direto para as únicas fotografias da índia-negra que me fala sempre, que vai e volta falante. Fala tudo e nada numa língua que o vento compreende e que apenas sinto, sobretudo nas manhãs de domingo (porque as manhãs de domingo são amantes do vento, eles sempre estão juntos!). Sinto essa negra-índia quando ouço a batucada. Sinto quando numa multidão o fluxo psicológico irradia uma energia física que se faz gritos. Sinto como linhagem das indignações frente aos massacres, oficiais e os não oficiais. Sinto na fervura dos olhos quando a violência silenciosa mostra que tem cara. Sinto no diálogo com as árvores e nas prosas com a lua. Sinto na relação viva e por isso tensa com o sol.

Avó das avós... a avó não atualizada nessa temporalidade resistente ao contínuo e à ordenação.

Por hoje de um dia não realizado, encontrei minha avó! Na reprodução da fotografia... vó e bisavó. Nelas as avós daquela festa. As avós milenares que vem vindo...

 


[carol gomes]

10 de novembro de 2014

¬¬ desenhos livres com a luz vibrante de uma amizade ¬¬

A cidade era pequenina, interiorana, embora não menos polêmica que um grande centro. A praça badalada, point central da urbanidade da Vila, a Boa de Goyzes. As personagens, mineiras, saídas do Triângulo. As árvores, variadas, cujo destaque era do cajazeiro.

Eis aí os elementos fundantes de um diálogo que só é possível entre amigos. Sim, amizade que no vai e volta dos dias vai rolando de loucura em loucura, cujas bordas latejam cuidado recíproco e admiração.

Éramos duas, duas Anas... a alta e a baixa. Entre um e outro copo de cerveja, sentadas na mesa disposta na rua de pedras históricas, olhamos estranhamente para as árvores do outro lado da rua que marcavam a parte baixa da Praça do Coreto. O majestoso cajazeiro rodeado de árvores menores adentraram no nosso diálogo.

Pergunto hoje: que amiga louca é essa que mergulhou numa viagem tão familiar a mim e tão estranha a muitos? Que sem pudores imagéticos meditou comigo a sexologia daquelas árvores expressa nos traços dos troncos, nos pigmentos colores das folhas, nos retorcimentos dos galhos... e mais, muito mais, no movimento nada visível que gritava pelos ares os quereres daquelas três árvores. A racionalidade se ampliava e as vibrações marcavam um encontro acontecimental.

Sim... uma amizade que encontrada, naquele instante, e só naquele instante, aconteceu de encontrar outras vibrações e experimentar uma outra dinâmica vital cujo fluxo temporal é diverso do nosso... o fluxo das árvores.

Naquele dia, compreendemos os "quem" daquelas três existências que correntemente habitam a Praça que sempre frequentávamos. Mas só naquele dia, só naquele momento, só com aquele diálogo (díade de duas Anas), conseguimos adentrar noutra vibração... Por que?

Porque... porque tem coisas/momentos que a gente só vive, efetivamente, a quatro mãos, a quatro olhos, a quatro ouvidos, a dois cérebros, a duas bocas... ou seja, só se experimenta na interlocução... que necessariamente não exige verbalizações, exige, quiçá, muito antes, 'ligare', ligação de diferenças que na leveza encontram-se em encontros alheios, soltos no tempo, sem moralidades, sem agendas, sem pretensões...

Taí, aquele nosso diálogo na Praça do Coreto... aquelas árvores que nunca esqueci... naquele momento eu senti que embora sejamos tão diferentes, tão nós, conseguimos nos comunicar... e assim, comunicamos nessa amizade!

Esse é meus parabéns! Para escorpiana mais louca e autêntica que conheço! Indubitavelmente a mais autêntica!

Para minha amiga, Ana... os meus mais nobres desenhos: esse com a luz (a fotografia), esse com as sílabas (a narrativa), e esse dos dias (a amizade)!

Carol Gomes