30 de outubro de 2011

fitando, bibliotecas e cinemas

E se numa releitura d'O Anjo Exterminador uma galera ficasse presa em uma biblioteca?
Desde sábado, fim de tarde, ambientada numa chuva, a questão me ronda.
Os acontecimentos acontecem no insistente, mas nem sempre atingido silêncio da biblioteca.
Um dia saiu o roteiro dos sapatos que socializados no RU papeiam indiferentes aos seus donos.
Dessa vez está saindo o roteiro d'O Exterminado Anjo Catalogado! Amanhã sai mais.
Adoro bibliotecas para viajar nos universos que elas constroem; cada livro um universo, cada leitor uma curva, cada estante uma rua, cada mesa um boteco, cada cadeira um gole solitário povoado de aberturas.

Carol Gomes

14 de outubro de 2011

Recortes divagantes de uma congada

Diferente dos anos anteriores, em 2011, me autopermiti às divagações no passar sonoramente colorido de cada terno do congado rumo à Igreja do Rosário.

Sim! Divagações especulativas, sobretudo num caráter livre de recortes e costuras, escavando reminiscências de momentos presenciados na tradicional festa em tempos outros, sem desconsiderar o diálogo dessas reminiscências com a presença da festa corrente.

Desacreditada da pretensa neutralidade do observador não familiarizado com a tradição, vislumbrei vivenciar, de modo desordenado, descompromissado, desorientado e desconhecido, os tantos movimentos singulares no desfile dos ternos. Por que o excesso do prefixo ‘des’, no tom de negação-separação? Distante de alimentar obscurantismos teóricos e/ou em cadernetas registrar ‘pesquisa de campo’, em fato, havia sim um desejo pulsante a se mostrar num pretenso-proposto deslocamento de imersão filosófica. Assumo uma indefinida ingenuidade em tentar, minimamente, divagar distante dos rigores acadêmicos inserida na sucessão de acontecimentos do congado; embora não alheia à contextualização formal da academia.

 Foto: Carol Gomes (09/10/11 - Igreja do Rosário - Udi/MG)

Na cadeira do olhante-apreciador, vivenciei algumas tantas festas. Quando muito nova por morar nas proximidades da igreja; noutros anos motivada pelo discurso que imprime à festa um caráter de cultura popular. Presenciei anos de processo eleitoral, cujos candidatos se esforçam para mostrar apadrinhamento dos ternos por mera visibilidade eleitoreira. Noutros anos, decidida a participar como ‘festeira-beberrona’ em paralelismo ao desfile, como se tal tratasse mais de um carnaval temporão. Noutros a observar as roupas, o batuque, a simbologia, a religiosidade, sobretudo o aspecto histórico da igreja católica na recepção do Brasil-África... enfim, noutros noutros anos de outrora.

No ano de 2009, um fato particular me prendeu a atenção. Não sei se houvesse ocorrido o tal em outros anos, tanto porque não me atentava para a celebração da missa após a procissão. A missa celebrada do lado de fora da igreja por um padre negro. Não suficiente, o padre conduziu a celebração sempre a destacar trechos da Bíblia em alusão ao racismo entre povos. Durante alguns meses o episódio esteve tal como uma imagem nos meus pensamentos, numa alusão de retomada, momentânea e tímida, do caráter revolucionário da igreja católica em tempos de Roma. Corriqueiro e tradicional esse acontecimento no congado? Pois conjecturo que sim, sobretudo para os conhecedores da história contada do congado, mas como acontecimento em tonalidade micro, se não invisível, a missa do lado de fora celebrada por um padre negro, atualizou em termos temporais a possibilidade de um outro mundo não muito familiar à minha época. Ora, se para um congadeiro ou um historiador trata-se de um ritual, em presença do fato, a mim mostrou-se um deslocamento temporal com atualização na cronologia do séc. XXI. Questão seríssima de fundo filosófico que retoma em efetividade, especulações divagantes da elasticidade do tempo, bem como de categorias como real, atual, existente, virtual. Puxa! Estava eu presenciando a praticidade viva, para não assumir o termo ‘personagem’, de conceitos.

Em 2011, prendeu-me a simbologia do político auxiliando os congadeiros no levantamento dos mastros. Ora, questão por demais polêmica e que não carece de pormenores, tanto mais pelo caráter político institucional permeado na relação histórica de forças entre brancos e negros, especialmente, na história brasileira. Outros fatos, aparentemente singelos, prenderam meu olhar da cômoda cadeira de observadora divagante. No início da calçada em frente à igreja, em um dos lados, montou-se um minipalco a serviço da segurança pública, de modo que durante a passagem dos ternos, haveria de ser muito bem dotado de técnica o fotógrafo que almejasse registros sem a presença da vestimenta de estampa militarizada preenchendo o fundo do desfile de roupas e adornos coloridos dos congadeiros.

Do último degrau de uma das arquibancadas, quase que cozida por um sol do meio dia, me meti a buscar personagens no meio daquele mar de indivíduos, mar este por vezes harmonicamente colorido. Experimentação viva do que se pode tomar por diversidade re(uni)da. A unidade estava posta no desfile dos ternos rumo à igreja para o levantamento dos mastros, e a diversidade, discretamente, quase que como um segredo, colocava-se na perspectiva dos indivíduos, na abertura destes-nós para a festa. Foi assim que durante algum tempo me foquei nos tantos fotógrafos e repórteres. Eram muitos, muitos. Os fotógrafos se dividiam entre câmeras profissionais cujo objetivo era também profissional (postulo pelas identificações funcionais); inúmeras câmeras digitais de uso pessoal e câmeras de celulares que bailavam nas mãos de observadores admirados (entre os quais, eu); câmeras que pela obstinação do proprietário me faziam acreditar que fotografavam até pensamento, dado tanto empenho do fotógrafo e formato do aparelho. Vi ainda fotógrafos artistas, ou artistas fotógrafos, aliás, muitos, que julgo ter conseguido identificar alguns pela vestimenta, acessórios (quase que como caricatura), certa peculiaridade (ouso dizer, romantizada) do indivíduo tendenciado às pulsões artísticas. Identifiquei conhecidos de outrora empenhados em pesquisas de campo, áreas diversas, inclusive fui perguntada num tom antropológico: ‘Você não se sente uma intrusa?’. Ora, dessa pergunta tantas divagações borbulharam que de certo modo surpreendi-me em titubeios quanto à minha presença configurar ou não uma pesquisa de campo. Logo saí dessas divagações vacilantes crendo não se tratar de pesquisa justamente pela ausência de foco, ainda que existisse tímido desejo de experimentação.


Foto: Carol Gomes (09/10/11 - Igreja do Rosário - Udi/MG)

Muitas personagens, entre os quais, vendedores ambulantes; políticos – representantes eleitos e dirigentes partidários; jovens e mais jovens alegremente se exibindo sem amarras quanto às roupas, acessórios, penteados do cabelo; estudantes universitários excitados em presença de uma festa popular; famílias dos congadeiros. Não me foi possível identificar uma personagem, ainda que eu tenha olhado para cima várias vezes em busca dela. Admito que não vi, qual seja, moradores dos prédios vizinhos da igreja, que com visão privilegiada haveriam de acompanhar o desfile como que de um camarote. Diversas vezes olhei para as janelas dos prédios e não localizei nenhum observador, embora isso não me tenha feito crer que se mostre tão e somente como preconceito, haveria de poder ter sido também desencontro do meu olhar com o aparecimento de muitos nas janelas, algo como: quando eu não me atentava para a observação das janelas, muitos lá estavam acompanhando o desfile.

Ao passo que os ternos desfilavam, conduzidos por seus capitães, como que figuras heroicas adornadas poeticamente, se mostrava a experimentação de conceitos. Distante de um objetivo querente de enquadrar a congada num sistema de pensamento, aliás, ao contrário, o desfile estava a mostrar em pureza o pulular dos conceitos, como que fonte. E desse modo, como observadora divagante, via no brilho colorido dos ternos, trechos como:

“o discurso daqueles que não têm a glória, ou daqueles que a perderam e se encontram agora, por uns tempos talvez, mas por muito tempo decerto, na obscuridade e no silêncio [...] Não temos, atrás de nós, continuidade; não temos, atrás de nós, a grande e gloriosa genealogia em que a lei e o poder se mostram em sua força e em seu brilho. Saímos da sombra, não tínhamos direitos e não tínhamos glória, e é precisamente por isso que tomamos a palavra e começamos a contar nossa história.”(Foucault em Em defesa da sociedade, p. 82)

Ora, conjecturo que não enxergava as palavras de Foucault num discurso histórico dos reprimidos, antes, estava costurando recortes em movimento dançante dos congadeiros com o movimento fixado de noções foucaultianas, sobretudo a vislumbrar quase que como um desenho, a narração não contínua dos que como individualidades, por vezes imperceptíveis, não tiveram glória. Sim! A glória romana sustentadora de uma soberania personalista.

Nesse contexto me perguntava: quem são esses tantos que por aparentes obstinações mítico-religiosas se mostram existentes em afirmação colorida? Esses que em genealogia não narrada da história oficial, vinculam-se a Zumbi, homenageado com um monumento em frente à igreja. Esses também que por genealogia vinculam-se ao feiticeiro do mar ‘que tem por monumento as pedras pisadas do cais’, imortalizado esteticamente e conhecido de alguns na letra de Aldir Blanc e João Bosco cantada por Elis. Enfim, quem são esses que como personagens anônimas desfilam como numa noite de galas rumo à igreja?

Claro que a pergunta já apontava para o alumiar de uma resposta em cores. Tal como nas palavras do filósofo, eu não me satisfaria com uma resposta em delimitações históricas da escravidão; em desejo, queria vislumbrar-sentindo na batida dos ternos, uma narração criada nas pulsões do instante.

Observar o anonimato dos que em conjunto firmavam os traços da congada, me ocorria como que assistir um filme não filmado. Surpeendi-me com fotografias não fechadas, ora, e se como Proust dissera da fotografia ‘como aquilo que não foi e aquilo que não é’, vivia eu uma exposição em pureza fotográfica do ‘estar’, um ‘estar’ estético afirmativo da existência.

A pergunta autoprovocativa de quem seriam aqueles, teve por resposta a própria noção transbordada do chacoalhar dos moçambiques como a afirmação de indivíduos tomando em realidade a existência como obra de arte. Desse modo, eu já não me prendia às simbologias religiosas, políticas, nem tampouco históricas do congado, dava-me então às divagações estéticas imprimidas no desfile dos ternos.

A música, o colorido, os indivíduos que apesar de não mascarados, pelos adornos se me apresentavam como tal, expressando um retorno ao não identificado da natureza, e como um fenômenos estético davam-se aos olhantes, como corpos tragicamente embriagados de lirismo.

Viagem minha? Não, estou certa que não! Como não lembrar dessa trágica embriaguez se a cada movimento reluziam intensidades transfiguradoras da existência? Certa estava de que mulheres-homens-crianças-idosos-congadeiros, naquele dia (e possivelmente durante toda a festa) viviam instantes sucessivos como obra de arte, noutros termos, tomavam todos os adornos materiais e não materiais da tradição congadeira para afirmar alegremente a existência. Daí julgo divagante, a excitação possuidora dos moçambiques, dos tambores.

Nesse texto não haveria pretensão de ignorar certo seqüestro particularizado da congada; por outro aspecto não haveria de ter o engano de experimentar-experenciando a festa da congada tal qual pertencente à tradição congadeira. Caso tal fosse minha disposição, por certo mais preconceituosa seria em relação aos tantos que moradores do município que se quer prestam-se à festa enquanto manifestação cultural. O preconceito configuraria na medida em que querendo representar um postulado papel de familiaridade à congada, estaria fixando em termos estrangeiros, uma origem que também é a minha, tanto nos aspectos étnicos, quanto na mesma condição imanente de humana, tendo por fonte as dores e as contradições do existir.

Ao passo que o desfile se deu, os mastros foram levantados, e à noite o retorno para a procissão, fui me dando à compreensão de que também tivera vivido uma congada, por certo não como na tradição, contudo, na condição de vivente que sentira nas cores, nos sons, nas pulsões, a transfiguração da tragédia do existir em beleza de viver.

Se os congadeiros ofereciam em esforços e festejos, um hibridismo religioso como modo de viver, ao meu modo, me abria ao instante-desconhecido imersa no diverso como uma afirmação deslocada, donde efetivamente experimentei a não culpabilidade de me dar à filosofia enganada por representações fantasmagóricas de conceitos. Estava num grandioso laboratório de experimentos filosóficos, certamente, o laboratório sonoramente colorido da vida; desenhado em formas moventes da própria existência.

Carol Gomes