29 de março de 2014

Vão se dezenas de sábados em 7 na lista das artes, que olho para o coreto que nos tempos de criança muito agitada tinha por única utilidade: fazer xixi; isso, o coreto só servia no meu universo para fazer xixi, e com muita diversão porque achava espetacular a privada ser um buraco no chão com porcelanato branco nas bordas.

Ironias à revelia, nos hoje insisto em colocar no lugar dos banheiros do coreto interditados há anos, estantes de uma livraria.

O coreto, em atualidade, não sabe o que é vida, a Prefeitura o rogou estátua faz tempo. Fica lá, coitado, na praça, isolado, silenciado, congelado e com a mesma roupa amarela pálida.

A gente passa, senta, olha, pensa, fala e continua a vida com aquele concreto estendido no meio dos dias e das noites. Uma vez e outra, nos sábados de cine clube, me pergunto pela maestria intelectualmente nada virtuosa dos homens públicos em matar a vida, seja como ela for, em carne ou em concreto.

foto: carol gomes - uberlândia mg - praça clarimundo carneiro
texto de mar 2014, foto de janeiro 2016

22 de março de 2014

das passagens anônimas

E a história foi cruelmente assim...

Estávamos na rodoviária de Uberlândia, em Minas Gerais, aguardando o ônibus rodoviário para a capital Belo Horizonte. Eu em pé alongando o corpo para a demorada viagem e uma senhora caminhando de maneira simpática próximo à plataforma.

Na plataforma ao lado estacionou um ônibus chegado de Irecê, Bahia, com destino à capital São Paulo. A senhora simpática encostou-se à grade e ficou calmamente olhando o ônibus. Alguns minutos depois ajudou uma das passageiras de Irecê a localizar o banheiro. Fiquei observando aquele movimento alheio e achei interessante a disposição do brasileiro para ajudar um outro desconhecido.
O ônibus de Irecê seguiu sua viagem e a senhora simpática encostou novamente na grade próximo a mim e fixou o olhar no ônibus que ia saindo da rodoviária.

Falei para ela: É, esse pessoal do ônibus ainda tem uma longa viagem pela frente.

Ela surpresa virou o olhar na minha direção e calmamente disse: Cheguei nesse ônibus sábado passado na mesma hora.

Aí perguntei: E hoje a senhora vai para BH? (pois como eu, ela estava há minutos na plataforma que indicava ônibus para capital mineira).

Disse-me: Não, não. Estou aqui na rodoviária desde 8 horas da noite de ontem. Trouxe minha filha que voltou para Irecê de manhã e volto para o Prata-MG hoje ainda às 13h.

Continuamos a conversa falando da Bahia, sobre a quantidade de ônibus, sobre as tantas gentes, afinal ela estava ali desde 8h da noite anterior.

Lá pelas tantas da conversa que durou uns 10 minutos, a vida tirou de mim uma dor alheia sem precedentes, me levando descontroladamente ao choro. A senhora simpática disse então que no outro sábado voltaria para Irecê naquele ônibus, pois só tinha viajado para Minas para resolver umas coisas, e como não tinha conseguido resolver até aquele momento, precisou permanecer e embarcou a filha de volta que deveria retomar as aulas.

Não perguntei o que foi resolver, porque apesar de ser uma observadora encantada, não nutro curiosidades por questões íntimas dos outros.

Perguntei: Você já conhecia o Prata, está na casa de parentes?

Ela: Não, estou na casa dos baianos amigos do meu filho. Me tratam muito bem.

E ela continuou: Vim para o Prata buscar o corpo do meu filho, mas como o juiz só vai liberar sábado que vem, aí tive que ficar mais dias.

Suspirei, travei e fiquei silenciada.

Perguntei tentando manter a calma: E como será o transporte do corpo, a Prefeitura vai pagar o transporte?

A mãe-senhora simpática respondeu: Não, eles vão me dar os ossos numa caixa de isopor e vou levar no ônibus comigo.

Nessa hora o mundo se transmutou em derradeiro juízo final, meu coração perdido se lançou num labirinto que só encontrava caminho de saída no chora.

Segurei as lágrimas e perguntei: E a senhora tem tido dinheiro para os gastos?

Não, não, os amigos que estão ajudando.

Chamei-a num canto pois meu ônibus buzinava o fechamento do embarque e a partida. Dei-lhe o dinheiro que tinha, partilhei um abraço forte com o aperto mais sincero em energia confortante que consegui e lancei as últimas palavras da nossa conversa: Hoje é assim que consigo ajudar e desejo muita força para senhora seguir a vida.

Saí correndo para o ônibus e chorei de um modo que não controlava.

Olhei pelo vidro do ônibus e ela em mímica dizia: Boa viagem minha filha.

A despeito das reflexões que sigo fazendo, entendi uma coisa.

Quando entrei no ônibus, aquela senhora se despediu de mim num gesto para o seu filho.

Quantos "boas viagens" ela havia desejado desde a noite anterior ali naquela rodoviária. Um infinito repetir de “boa viagem” que não voltaria mais a dizer para o filho.

Esse "boa viagem" não era meu e nem de ninguém, eram "boas viagens" dela para o filho que há 2 anos e meio não via.

Essa mesma mulher estava na rodoviária sozinha, sentindo dor e solidão, mas não dor e solidão de ausência e sim de vida. Dor do excesso de presença cruel da vida.

Doidamente vi um excesso, um suspiro de tempo, uma dobra de existir.

Carol Gomes

19 de março de 2014

A historinha é mais ou menos assim

Estávamos na Nacional Expresso no trajeto de Goiânia (capital na região central de um cerrado genuíno), para Ituiutaba, (região pontal do Triângulo Mineiro). Eu na poltrona 13 e o Lucas com a mãe nas poltronas 19 e 20.

E então o Lucas começa:

Mãe, onde estamos?
A mãe responde: Saindo de Goiânia.

E o Lucas faz outra pergunta: Daqui o ônibus vai para onde?

A mãe: Vai para Morrinhos.

Lucas pergunta novamente: E depois de Morrinhos vai para onde?

Vai para Itumbiara. Respondeu a mãe começando a sinalizar impaciência.

Depois de Itumbiara?
Vai para Centralina.

E depois?
Canápolis. Disse a mãe já meio monossilábica na resposta.

O Lucas diz: A gente desce em Canápolis e aí o ônibus vai para onde?

Ituiutaba! Ituiutaba, Lucas!
Resposta atingindo um surto de impaciência com as perguntas.

O Lucas manda outra pergunta: E depois de Ituiutaba o ônibus vai para onde?

A mãe então em tom nervoso: Acaba, aí ele não vai para nenhum lugar, é o fim!

O menino ficou calado e soltou alguns segundos depois a pérola da noite:
Então Ituiutaba foi onde Judas perdeu as botas?!

A mãe não falou nada, ficou calada e só soltou um suspiro do tipo: 'é hoje!?'

E então fiquei pensando no quão próximo o fim do mundo pode estar. Veja só, para o Lucas passou a estar no bico das Minas Gerais.

Suspensa na poltrona 13 fiquei divagando na conversa alheia no serviço ou no des-serviço da mãe do menino ao lhe dar a possibilidade de imaginar onde estão as botas de Judas, e, ao mesmo tempo de anunciar onde encontrar o fim do mundo.

O Lucas deve ter uns 6 anos, a mãe uns 26, e eu na casa dos 30... fiquei viajando, literalmente, pelas etapas que a gente vai passando por essas BRs até topar com o fim do mundo, e que quando a gente topa, o mesmo fim do mundo dá mais uns passos para gente não o enxergá-lo.

Para o Lucas, Ituiutaba passou a ser o fim nesta noite, mas só até o dia em que ele sozinho sair de Canápolis e encontrar nas terras do Tijuco o começo de outros territórios por onde as botas de Judas andam.

Carol Gomes

16 de março de 2014


uma árvore, em potência
potencializando
troncos enrijecidos, em luta
silenciando
folhas verdes brilhosas, em úmido
desejando
frutos revolvendo sobre si mesmos, em sabor
saudando
aquilos guardados na ausência
de-plumas.

[carol gomes]