22 de março de 2014

das passagens anônimas

E a história foi cruelmente assim...

Estávamos na rodoviária de Uberlândia, em Minas Gerais, aguardando o ônibus rodoviário para a capital Belo Horizonte. Eu em pé alongando o corpo para a demorada viagem e uma senhora caminhando de maneira simpática próximo à plataforma.

Na plataforma ao lado estacionou um ônibus chegado de Irecê, Bahia, com destino à capital São Paulo. A senhora simpática encostou-se à grade e ficou calmamente olhando o ônibus. Alguns minutos depois ajudou uma das passageiras de Irecê a localizar o banheiro. Fiquei observando aquele movimento alheio e achei interessante a disposição do brasileiro para ajudar um outro desconhecido.
O ônibus de Irecê seguiu sua viagem e a senhora simpática encostou novamente na grade próximo a mim e fixou o olhar no ônibus que ia saindo da rodoviária.

Falei para ela: É, esse pessoal do ônibus ainda tem uma longa viagem pela frente.

Ela surpresa virou o olhar na minha direção e calmamente disse: Cheguei nesse ônibus sábado passado na mesma hora.

Aí perguntei: E hoje a senhora vai para BH? (pois como eu, ela estava há minutos na plataforma que indicava ônibus para capital mineira).

Disse-me: Não, não. Estou aqui na rodoviária desde 8 horas da noite de ontem. Trouxe minha filha que voltou para Irecê de manhã e volto para o Prata-MG hoje ainda às 13h.

Continuamos a conversa falando da Bahia, sobre a quantidade de ônibus, sobre as tantas gentes, afinal ela estava ali desde 8h da noite anterior.

Lá pelas tantas da conversa que durou uns 10 minutos, a vida tirou de mim uma dor alheia sem precedentes, me levando descontroladamente ao choro. A senhora simpática disse então que no outro sábado voltaria para Irecê naquele ônibus, pois só tinha viajado para Minas para resolver umas coisas, e como não tinha conseguido resolver até aquele momento, precisou permanecer e embarcou a filha de volta que deveria retomar as aulas.

Não perguntei o que foi resolver, porque apesar de ser uma observadora encantada, não nutro curiosidades por questões íntimas dos outros.

Perguntei: Você já conhecia o Prata, está na casa de parentes?

Ela: Não, estou na casa dos baianos amigos do meu filho. Me tratam muito bem.

E ela continuou: Vim para o Prata buscar o corpo do meu filho, mas como o juiz só vai liberar sábado que vem, aí tive que ficar mais dias.

Suspirei, travei e fiquei silenciada.

Perguntei tentando manter a calma: E como será o transporte do corpo, a Prefeitura vai pagar o transporte?

A mãe-senhora simpática respondeu: Não, eles vão me dar os ossos numa caixa de isopor e vou levar no ônibus comigo.

Nessa hora o mundo se transmutou em derradeiro juízo final, meu coração perdido se lançou num labirinto que só encontrava caminho de saída no chora.

Segurei as lágrimas e perguntei: E a senhora tem tido dinheiro para os gastos?

Não, não, os amigos que estão ajudando.

Chamei-a num canto pois meu ônibus buzinava o fechamento do embarque e a partida. Dei-lhe o dinheiro que tinha, partilhei um abraço forte com o aperto mais sincero em energia confortante que consegui e lancei as últimas palavras da nossa conversa: Hoje é assim que consigo ajudar e desejo muita força para senhora seguir a vida.

Saí correndo para o ônibus e chorei de um modo que não controlava.

Olhei pelo vidro do ônibus e ela em mímica dizia: Boa viagem minha filha.

A despeito das reflexões que sigo fazendo, entendi uma coisa.

Quando entrei no ônibus, aquela senhora se despediu de mim num gesto para o seu filho.

Quantos "boas viagens" ela havia desejado desde a noite anterior ali naquela rodoviária. Um infinito repetir de “boa viagem” que não voltaria mais a dizer para o filho.

Esse "boa viagem" não era meu e nem de ninguém, eram "boas viagens" dela para o filho que há 2 anos e meio não via.

Essa mesma mulher estava na rodoviária sozinha, sentindo dor e solidão, mas não dor e solidão de ausência e sim de vida. Dor do excesso de presença cruel da vida.

Doidamente vi um excesso, um suspiro de tempo, uma dobra de existir.

Carol Gomes

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