4 de dezembro de 2018


Dispositivos Coreográficos:
(des)posando efeitos de (des)controles

Por Carol Gomes
Doutoranda em Filosofia/UFPR
Profa. Filosofia IFTM


Palavras sobre um espetáculo para quem não o viu e para os que viram com outras lentes
Talvez um dos mais imponentes desafios do estarmos contemporâneos é não se fechar no modelo longínquo clássico do par causa-efeito. A causa como fonte primeira, fundante e por certo inquestionável como verdade. Isso não quer dizer que não haja causa e que tudo é efeito, e que portanto o contemporâneo é um decalque caótico e não emancipado do saber moderno. Não, a provocação é simples e despretensiosa. É apenas começar a aceitar o óbvio como óbvio. Decompor as existências com base no que temos delas, partindo disso que delas chamamos de efeitos. Como é que tenho acesso à fala de uma pessoa, se não pelas palavras ou expressões que ela emite? Não tenho acesso à causa, ao porquê imediato daquela fala. Parte-se dos efeitos das palavras, dos gestos, das temperaturas e dos cheiros para daí compormos a causa do que se passa entre essa quem me fala e essa pessoa quem ouço. É isso. Os efeitos como o que de fato tenho acesso e através dos quais tenho as existências, incluindo eu mesma. Nada novo o que digo, lá nos anos de 1600 um pensamento tal já nos ensinava isso, como ensinou a Nietzsche, Foucault, Deleuze, por exemplo[1].
Pois bem, a mim o espetáculo Dispositivos Coreográficos, na apresentação de estreia e abertura do Festival Paralela 2018[2], trouxe justamente a previsibilidade de viver como modo de existência óbvia. Ora, não há segredos, pulos do gato, magias impenetráveis do pensamento e das criações artísticas. Há corpos e não por acaso são esses os corpos do Provisório Corpo – Grupo de Dança, sob direção e concepção de Ricardo Alvarenga. A magnitude do espetáculo se deu lentamente, ou seja, foi crescendo do início ao fim, um construto de efeitos cuja causa se completa ao término de cada bloco de repetição. Causa como resultado, como produção, efeitos tomados de corpo em corpo, como corpo a corpo ao longo do espetáculo enquanto criação mecânica e maquínica.
Vi corpos se fazendo dança de moléculas e em plasticidades, portanto biológicos. Vi corpos em movimento como deslocamento contínuo de repetições espacializadas, portanto físicos. Vi corpos como elementos distintos se implodindo juntos, portanto químicos. Vi corpos grafitando o espaço infinito entre 1 e 1,0001... dos palcos, internos e externos, portanto matemáticos. Vi corpos fêmeos, machos, trans, negros, brancos, portanto políticos. Senti com os olhos os movimentos, os repousos (embora tenham sido poucos), vibrações térmicas e auditivas, portanto sensações.
Um espetáculo com 16 dançantes, entre dançarinas e dançarinos, começou com alguns poucos no palco e os demais chegaram vindos dos corredores entre a plateia. Cada corpo nesse instante já era mais que um corpo em forma estática, àquela altura era movimento ritmando e desritimando moléculas, linhas e retas abstratas da matemática, ondas de luz, matérias de som, relação entre movimento e repouso continuamente, por isso corpo-dança. Os corpos-dança se colocavam todos numa mesma série, melhor, num mesmo bloco de movimento repetitivo. Mas veja bem, como toda repetição, poderíamos ter o repetitivo apenas como infernal, o mesmo infinitamente sem parar. O corpo mecânico de articulação em articulação reproduzindo o mesmo gesto: erguem as pernas, erguem os braços, coluna ereta, sentido para frente, para traz, para cima, para baixo, e assim uma reprodução marcada por sinalizações de tempo dadas num espaço indicado mentalmente pelos próprios ensaios da produção coreográfica. Mas não, o que parecia menor da dança, justamente essa repetição, implodiu cada corpo individual afirmando uma menoridade específica de dançante por dançante conectados uns aos outros. Em outros termos: o corpo individual que de maneira mecânica reproduzia os movimentos, se conecta exatamente através da repetição com os outros distintos corpos também individuados. É essa conexão, essa relação entre corpos individuados e distintos que maquinicamente produzem um corpo agora sim maiorizado numa noção comum estabelecida entre os corpos enquanto se davam as repetições. No espetáculo, portanto, não é possível ver um grupo maior dançando sem ver cada corpo na sua menoridade individuada, nem tampouco, é possível ver individual sem o todo. A repetição dos movimentos mecânicos, avolumados na luz, ritmados em matérias musicadas, revestidos de tecidos recortados e recosturados para cada corpo impôs um maquinismo desposado dos controles de poder. O que havia de comum produzido maquinicamente a partir de uma repetição mecânica, trata justamente de uma causa produzida pelos próprios corpos. Veja, ‘causa produzida’ pelos corpos, qual seja, o controle político de existências. Portanto, nada mais contemporâneo e preciso em pleno 2018, um espetáculo cujos corpos desvestem os dispositivos, ordinariamente invisibilizados como produções de controle. O que Ricardo Alvarenga, os 16 corpos dançantes e toda a equipe de produção nos deu, foi um desposamento do segredo das vigilâncias de controle a partir dos seus efeitos nos corpos individuados sempre conectados nas sociabilidades.

Não bastassem o mecânico e o maquinismo conectados realizando efeitos que implodem como causa os controles políticos dos e nos corpos, Dispositivos Coreográficos avança e ao sair do quadrado do palco italiano lança todos os corpos, veja bem, todos os corpos para fora do teatro. Que operação maquínica é essa? Passados cerca de 30 minutos de espetáculo, entram no palco alguns corpos rígidos estranhos ao bloco das repetições. Esses corpos abrem as portas de metal do fundo do teatro, como que abrindo numa plasticidade metálica as cortinas do palco visto do lado contrário, de fora para dentro, embora estivéssemos todos do lado interno. Naquele instante o espetáculo nos colocou contraluz de nós mesmos. Se antes éramos dançarinos no palco com a plateia bem definida no seu lugar frontal do palco italiano, ao abrir as cortinas metálicas, éramos todos naquele instante corpos docilizados assistidos por uma tecnologia de captação de imagem: um drone. Sim, as cortinas se abriram e imediatamente subiu um drone que filmava a todos, dançarinos e plateia. Vigilância. Qual corpo se conectava repetidamente a quais outros corpos agora? Estávamos todos na repetição, mecânica e maquínica. Éramos todos partes de uma produção cujos dispositivos já não escondiam seus corpos. O drone se mostrou e nos captou como efeitos, não bastasse, nos lançou como sínteses em imagens na parede externa do próprio teatro. Enquanto dançarinos saiam do palco e nós, a plateia, saíamos para a parte externa, quem nos via na parede externa captados e imediatamente projetados como imagem? Quens corpos nos viagiavam?! Esses minutos ainda parecem condensados em energias dos controles de poder. Quem nos controla? Uma vez mais Dispositivos Coreográficos desnudou a partir dos efeitos as causas produzidas dos controles. A brandura dos nossos corpos conectados fabricando os controles como causas resultantes de nós mesmos ao que chamamos razão humana emancipadora. Para quais existências cultivamos tanto controle?
No piso externo do teatro, de frente para o projeto arquitetônico do Niemeyer e nele todos os corpos sendo projetados, visualizávamos marcações em amarelo no chão que grafavam uma centralidade para os dançarinos. Nas laterais a estrutura metálica com os refletores de iluminação circular, uma composição de luzes coloridas com rodinhas girando dentro de uma grande roda (quase um Tempos Modernos com Carlitos sendo engolido pelas traquinagens da fábrica), a música numa sintetização alucinante que colocava em matéria os pixels dos digitais, o binário controlador estava no cenário como música, como onda material alucinando os corpos nas séries de repetições. Acima dos corpos, o drone com seu som tecnológico de uma engrenagem que lembra muito um grande mosquito que vê tudo; mas veja lá, o mosquito vê, porém o drone, vê, conserva, acumula e projeta as imagens. Uma coisa é sermos vistos ininterruptamente por outras tantas existências (os outros seres vivos e inorgânicos nos veem), outra coisa é fazer uso simbólico e portanto político do que se vê. Estávamos todos vendo e todos nas suas individuações sendo vistos e projetados instantaneamente.
Me perguntava pela relação entre as séries de repetição dos dançarinos e a captação e projeção das imagens de todos nós. Há também uma relação de repetição entre as imagens quando do processo de captação, acumulação, sequenciamento e projeção dessas imagens. O drone repetia esse processo escancaradamente no espetáculo. Um desvelamento direto do controle. Há uma distância temporal que é preenchida por acumulação simbólica (imagens acumuladas, lembranças) entre os atos do dispositivo de captar, acumular, sequenciar e projetar. O que se coloca nos intervalos entre cada um desses 4 atos é o que produz os controles!? Um dentre tantos aspectos que o espetáculo desnudava evidenciou o dispositivo numa autonomia política ao estabelecer relações entre os corpos dançantes e os corpos espectadores. Se havia distinção até então, com a entrada do drone na cena, todos passamos a personagens, estrategicamente captados, acumulados, sequenciados e projetados, portanto, deliberadamente controlados.
Um drone repete séries de captação dos instantes temporais, mecanicamente há um movimento de sequenciamento de imagens, o famoso modelo do cinema de 24 fotogramas por segundo para nos dar uma imagem em movimento. Para além dessa técnica mecânica, há ainda um maquinismo da tecnologia que se faz ao conectar a função específica de cada parte do corpo-drone: as lentes ampliam, reduzem, aproximam, distanciam, fecham ou abrem a cena. O diafragma e a velocidade com que abre e fecha controla a quantidade de luz, portanto o realismo e o ficcionalismo na profundidade da imagem e isso implica na multiplicidade de planos dentro de uma mesma cena que remete à presença de infinidades dentro de uma única imagem. Aqui então retornamos à relação produtora dos efeitos para com a causa. Se inicialmente tomávamos os corpos-dança como os dispositivos de produção da causa de controle, num segundo momento quando da virada do espetáculo que se deu no ambiente externo, vimos um corpo-drone produzir essa causa controladora a partir dos efeitos em relação dada nos e entre os corpos humanos (dançarinos e público), bem como os corpos matéria de ondas de som, corpos energia de ondas luminosas e grafias em roupas e marcações espaciais no chão.
Foto: Carol Gomes
Desvelados os efeitos produtores de causas de controle, Dispositivos Coreográficos, traz com corpos-dança uma estética do comum construída do que se passa entre individuais na efetuação de um corpo-todo seriado em repetições. É por isso que dentro das séries repetitivas, em vários momentos escutamos gritos e inclusive visivelmente corpos se contorcendo como se estivessem numa pane (como os androides-humanizados de Blade Runner: o caçador de andróides). Isso sim são as fissuras dentro das repetições mecânicas e maquínicas de controle. Se concluímos que o controle é fabricação de corpos conectados, não excluímos que essa própria fabricação traz consigo o germe das panes, das fissuras, dos buracos sem fundo ou das atonalidades de territórios desconhecidos dentro das geografias mapeadas. No interior da repetição as diferenças atormentavam, dentro da dança o movimento claramente definido como harmonia corporal trazia brechas e vácuos para instantes quaisquer de quebras do controle. O corpo sozinho de um dançarino aqui, outro ali, outro acolá, se contorcendo dentro da própria série repetitiva era o suspiro do corpo dizendo que ele poderia muito mais, ao ponto de em si mesmo desconhecer as forças resistentes e potentes do agir.
Dispositivos Coreográficos colocou corpos dançando, ergueu corpos-dança, desposou dispositivos de controle como causas produzidas dentro dos efeitos de corpos, portanto realizados e alimentados pelos corpos-sujeitos assumidos por si mesmos como corpos-objetos controlados. Os quens foram postos nos palcos, dentro e fora, do teatro e de nós mesmos. Vimos e fomos vistos. Olhamos e fomos olhados. Movimentaram-nos na coreografia daquilo que criamos como símbolo da emancipação humana, justamente para nos confrontarmos frente a frente com os controles e a potência fissuradora do poder de um corpo. 



[1] Me refiro a Spinoza no livro Ética publicado em 1677, bem como aos capítulos Visão ética do mundo e As noções comuns de Deleuze no livro Espinosa e o problema da expressão de 1968.
[2] Apresentação única no Teatro Municipal de Uberlândia em 28 de novembro/2018.