31 de dezembro de 2011

Um sabor Cordeiro para uma lembrança que chega atravessando...

Em pontos segue um relato pouco fidedigno aos fatos, embora real.

Pontuação primeira
Já final de tarde, inesperadamente foi chegando um bronzeado pelo Sol, barba branca, esguio, timidez sobressalente. Para a criança que apontava suas 13 unidades viventes em marcações de cronos, tratava-se de um fato; de há muito esperado. Em certo, um universo novo chegava junto da mochila de coro surrada, suja das andanças roceiras.

Duas gerações separadas por estradas sinistras da Vida. Um breve e baixo ‘Olá’ marcava o encontro. Claro que para ambas (gerações) estava posto, era aquilo e tudo o mais que haveria de vir, a admiração recíproca que anos depois se manteria em silêncio brilhante.

A convivência de dias breves contados na folhinha não filtrou como barragem o encontro, entre 1917 e 1983. Desde então, seguiu-se uma parceria, de longas conversas, histórias e estórias fiadas, tal qual mestres fiandeiros. Sim, a criança havia muito de aprender, caminhar pela roça e usar o famoso estilingue, compreender a utilidade da espingarda, o significado predador na caça ao veado, ao bandeira (isso, o tamanduá). Dos tantos aprendizados, como o caminhar da cidade para a roça, no Sol, carregando a moringa de água e a mochila de couro surrada, seguiu-se o inesquecível prazer do cultivo de melancias. Muito mais que um hábito de plantador, para a criança, tratou-se de magia. Adentrar a cerca que marcava o limite da terra e de imediato iniciar um dos tantos rituais do roceiro, aquele de dar-se à sua roça, ao plantio do sustento.

Como fotografia, certamente se teria a bela imagem em cores reveladas num verde na parte inferior da fotografia, uma luz intensa de três horas da tarde, dois ─ um velho e uma criança, agachados no meio da plantação.

Como foto, indiscutivelmente, haveria de passar o ensinamento dos que vivem, uma Vida vibrando tempos reencontrados.

Como cinema, talvez, páginas da literatura esvoaçantes. A criança como mágica invadida pelo aprendizado de receber da natureza o momento certo de colher a fruta; duas batidas na melancia, que soando oco, expressa: ‘Sim, posso ser colhida’.

Bem que do outro, do velho, quiçá havia o rodeio de conjecturas sobre a criança vinda da cidade. Hábitos diferentes, noções ausentes sobre a terra, sobre os animais, sobre a cantoria dos pássaros, sobre a dureza do sertanejo do ‘interior-do interior’ das Minas... das beiras de rio entre João Pinheiro e Pirapora; mas em certo, ele sabia que ali estava a origem daquela criança, estranhada com tanta novidade.

Do terreiro em frente à casinha de chão batido, o velho re-via, outras crianças correndo, brincando, fartando-se com a diversidade frutífera. Naqueles dias, ele via em outras cores, crianças das suas crianças de 60 e 70. Ele via, duas gerações, de certo teve dias de costuras temporais, como que vendo o tempo caminhando em matéria... e da criança que tivera sido na beira dos rios, íntimo à vida indígena, agora ensinava à continuidade tão diferente, o convívio com as galinhas de angola. Ensinava, entre muitas brincadeiras, a de jogar cartas para que o tempo passasse em partilha, em coletivo, afinal, na roça, não se joga cartas sozinho, há sempre um parceiro. E entre as gerações, ficaria a pergunta sobre a passagem do tempo: por que passar o tempo nas cartas?

A manhã amanhecia bem mais cedo que as manhãs da cidade. O café no fogão à lenha, o pão de dias anteriores levados da padaria da cidade, enquanto que um bolo de fubá em minutos sairia quentinho. Assim se deu o aprendizado do café, associação que se seguiu anos, tanto quanto a clássica frase do velho: “Eita café doce, café de mulher apaixonada”.

Tempo corrido, múltiplos fluxos, inexplicáveis curvas, e aquela criança sente a ressonância dos dias de 1996 no choroso-alegre som da viola caipira. Como relato-recontado, imerso na magia descompromissada com qualquer verdade postulada de palavras, atravessa como que guiada pelo vento a lembrança do velho, do velho Cordeiro, vivificadas em trechos cantados na voz daquele que repinta as modas da viola caipira.

Conhecer as manhas
E as manhãs
O sabor das massas
E das maçãs
É preciso amor
Pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir
[Tocando em frente; Renato Teixiera e Almir Sater]


Pontuação segunda
O velho que outrora recebera a criança, fora, em tempos outros, recebido pela criança, já não tão criança, na cidade grande, na sua grande cidade. O velho que então marcara pelo uso de roupas surradas, botina sempre suja, mostrava-se na cidade com camisa e calça de tecidos que exigiam atentado trato do ferro doméstico para roupas.

Inevitavelmente a já não mais criança, olhava e titubeava, entre o velho de camisa engomada e o velho de camisa suja; algo em comum aos velhos, o chapéu. O chapéu que mais que um acessório, também se apresentava renovado, como a camisa. Na roça, o chapéu mostrava-se em palhas; na cidade, meio aveludado, num tom quase engomado como a camisa. Sim, o chapéu, a marca do velho que sempre em baixo tom falava calmamente das coisas e também das não-coisas.

As longas conversas pareciam também terem encontrado outros rumos. Já não era mais possível falar das melancias, dos abacaxis, das fruteiras, nem tampouco dos carteados, a criança de então demonstrava disposição para outros assuntos, entre os quais, a política nos tempos do velho. E então, a prosa fiada era adornada pela declaração de que Getúlio Vargas era sim um pai, um querido por quem o velho havia caminhado dias para vê-lo passar em desfile pela cidade mais próxima, animado para ver ao menos uma vez, o grande presidente.

Certamente que apenas após outros tantos anos, aquela criança já crescida, conseguiria compreender a adoração ao presidente, o universo que rondava o sertanejo que jamais entrara numa escola na figura de aprendente.

Na cidade, o velho olhava para a criança com ar de admiração. A criança dominava e se desenvolvia com maestria no meio de tanto concreto e barulho, tal qual ele se desenvolvia na roça, no mato, entre plantações e bichos. Num dos momentos de diálogo admirado, recíproco, bem certo, o velho soltou naturalmente uma fadiga para a criança; fadiga esta que se fez marco: ‘aqui não se pode ver a vaca mascando o capim’. Aquela criança que já ia com suas duas décadas, percebeu que novamente o tempo se colocava entre ela e o velho. Na roça a vaca mascava não apenas o capim, ainda, os pensamentos sertanejos, as modas de viola, enfim, a própria Vida, vivida, vista e pensada, sobretudo após as dezoito horas, quando a iluminação era apenas da Lua ou das lamparinas. Na cidade a vaca em seu universo sertanejo inexistia, mas para a criança, a vaca poderia ser retomada, noutra forma, trazida a ruminação, em termos de contemplação. E lá estava, o velho, mais uma vez ensinando.

O que se tem não é uma tensão polar entre campo e cidade, antes, é um entrelaçamento do tempo, um tempo que encontra e re-encontra intensidades, aparentemente, tão distantes. Vê-se, pois, a roça na criança da cidade, tanto quanto vê-se a cidade no velho do campo, entrelaçados, bem certo, por hábitos de família, e não somente, ainda por ressonâncias ruminantes dos que vivem dando-se à Vida, sem deixá-la escapar ao pensamento.

Sonoro proseio dos caipiras de cidade grande, Pena Branca & Xavantinho, que da interiorana Uberlândia, tonalizou fadigas sertanejas, vividas, vistas e pensadas nas cidades, nas estradas, nas roças, nos espaços...

Pra ser um palhaço
Um carlito, um caipira
No grande circo da vida
Tem que ser louco e não ser
E o povo todo sendo o Jeca com você
Era uma coisa muito linda de se ver
[Mazzaropi; Pena Branca e Xavantinho]


Pontuação terceira
Da cidade grande, a criança crescida, distanciou-se do velho rumando outra cidade, uma grande cidade. Antes, chorou-lhe em público a admiração que até então disfarçava; e seguiu, desbravante em intensidades do coração.

As notícias que chegavam, davam-se como pedidos do velho que surpreendido pela fragilidade orgânica, expressava em vestes brancas uniformizadas, o desejo de mais um encontro. Confundindo as cidades, as grandes, ele dizia em gênero, Norte... sabia o rumo que tomara a criança crescida, mas não sabia identificar no mapa.

Desavisada de tudo, a criança, por motivos tantos resolvera retornar para a cidade grande. No primeiro trecho de um retorno que se alongaria por 2 dias, telecomunicou. Se no primeiro encontro um breve e baixo 'Olá' fez-se marco, do telefonema a secura de mais um marco silenciava a voz e umedecia o olho da não mais criança, que em segundos, numa cidade não grande mas turisticamente religiosa, em terras de sertanejos de Padre Cícero, chorou, não como as lágrimas do primeiro dia que correra das vacas bravas de quem o velho a protegera; chorou pelo aparecimento de mais uma estrada sinistra que marcava o desencontro entre dois que em presença pareciam distantes, mas que em afetos mantinham-se grudados.

Dois dias caminhantes por uma nova estrada, nova sintonia, ainda que conhecida em forma. A criança que naquela altura já sentia calejos do tempo, sentiu uma fadiga, talvez aquela mesma fadiga do velho quando falou da vaca na cidade grande. Compreendeu então, que ali estava falando do tempo que vai nos passando e que nem sempre os observamos, não por mero olhar, muito antes, por compreensão aos recortes dos dias, da Vida. Por certo, o velho estava dando àquela criança, seu mais nobre ensinamento, o de que a Vida há de ser vivida, mas também há de ser pensada.

A criança que chegara dois dias depois, não mais encontrou o velho, tampouco seus lentos, baixos e discretos descolantes momentos de Vida... havia encerrado, embora tivesse deixado o elogio de ter visto na criancinha a ruminação faminta dos que sentem a força da terra.

O velho era um avô, e a criança, uma neta. A neta a quem o avô não viu nascer. O avô a quem a neta não viu morrer. Ambos, quiçá mantiveram lembranças vivas guardadas em nomes que vai-e-volta se reencontram...

Mais alguns tantos anos depois, o universo sertanejo-roceiro-interiorano é retomado, não apenas de modo ativo, talvez o universo tenha se deslocado ele por ele mesmo, até as vagas andanças pensantes daquela criança-neta que vivendo novas e antigas fadigas, tem vacilado nos tantos ritmos da Vida, ora acelerado, ora desacelerado, ora desritmado, ora sem ritmo, ora cansado, ora desconhecido, ora repetitivo... ora ora ora... e como se o caipira avô, Cordeiro, se mostrasse como uma atravessante lembrança em dias de necessários territórios sobreviventes; qual seja, uma urbanóide em nostalgia de sua origem interiorana.

Pra todo aquele que só fala que eu não sei viver:
Chega lá em casa pruma visitinha,
Que no verso ou no reverso da vida inteirinha,
Há de encontrar-me num cateretê
[Vide-Vida Marvada; Rolando Boldrin]



Carol Gomes

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