15 de agosto de 2011

Reflexo invertido

A memória já me foi um dragão altivo, atualmente mostra-se como fita k7 de várias gravações sobrepostas, com misturas e soluços. Pois bem, ainda no ‘foi’, escutei uma frase simples e irônica que abriu janelas: “Está com algum problema? Leia um bom livro, lá você terá o diagnóstico e a cura”.

Como pode uma frase nada prestativa como essa?! E eis que no trilhar dos dias a tal ‘frasesinha’ deu-se a me acompanhar; aliás, deu-se a combinar com tonalidades coloridas que já me acompanhavam. Fiquei de modo infernal a perguntar se não era algo como os livros de sabedoria, aqueles pequeninos que compõem os pertences de bolsas, cujo ritual é fechar os olhos, mentalizar tudo e nada em simultaneidade e pimba!, abre-se na página máxima do dia, tipo: “Seja feliz porque a felicidade te quer”.

Alternando aos livros de sabedoria, tem também as passagens bíblicas. Recupero nos soluços da memória, que um modo materno de me evangelizar foi justamente similar ao ritual dos livrinhos já citados. Fechar os olhos, conversar com o ‘papai do céu’ e abrir uma passagem na bíblia. De fato era algo emocionante e eu adorava, embora o evangelizar fosse dogmático e dada a linguagem ‘truncada’ da sagrada escritura, acabava por vezes recaindo em disfarçadas discussões porque minha mente ignorante queria compreender tanto enigma das passagens, e isso não era possível porque os relatos deveriam ser aceitos como ensinamentos e não como problematizações. Ok! O fato é que se abria uma página com palavras divinas para resolução ou aquietação de qualquer contratempo humano.

Os dias foram seguindo depois de escutada a frase indicativa para leitura de bons livros e a mesma continuava a bailar nas vagas andanças do pensamento. Eis que não tive a disposição de na vivência de contratempos, correr para algum livro e meter-me a fuçar nas páginas em busca de receitas para enfermidades. Ocorreu-me, provocada pela tal frase, um processo diverso.

Da vida que sou e imersa alegremente nas suas intensidades, continuei com leituras já em percurso e a frase impôs-se na sequência destas. De modo que na construção literária fosse possível perceber quadros de existências individualizadas, e não como ‘diagnóstico e cura’, um bom livro talvez provocasse a inquietação da pergunta pela repetição dos contratempos. Ora, algo como: “Será que o problema mantém-se o mesmo e repete-se num diversificar na vida dos indivíduos?”. Sim, quantos romances a tratar de amores vividos loucamente e de amores não vividos, embora existidos? Sim, quantos romances a explorar forças estranhas, angústias individuais em personagens que parecem sintetizar um universo de pessoas? Sim, a literatura que relata guerras que titubeiam entre o efetivo e o imaginário. Livros que se propõem relatos históricos e que transparecem descrever guerras repetidas, mesmas atitudes autoritárias, mesmas atrocidades, líderes idênticos, apesar de origens diferentes.

A especulação se distancia de padrões de comportamento, não é esse o pulular invertido da frase, nem tampouco arquétipos psíquicos, trata-se de um retorno que aceita um possível desfazer entre o duo real x ficção. A frase que indica uma obra literária como fonte de esclarecimento, quiçá estivesse a lançar disfarçadamente o questionamento da imitação, quem há de imitar quem? A vida imita a ficção, ou a ficção imita a vida? Ora, numa seleção astuta fugir desta questão é uma atitude heroica e afirmativa, sobretudo porque permite à vida abarcar tanto o real quanto o ficcional, de modo que se haja tensão, haja entre ambos e não da vida com a ficção. Se há imitação, que haja entre real e ficção ou no imitar inverso.

Provocada a falsa tensão entre vida e ficção e tomando como verdade uma não separação entre vida e ficção, antes, a ficção como parte integrante, efetivamente, da vida, retomo a frase inicial da leitura de bons livros. Se nos primeiros dias a frase impactou-me pela similaridade do ritual com os livros de sabedoria e leitura da bíblia, depois de divagada e aceita a noção da vida também como ficção, ler um bom livro deixou de ser meramente a leitura de um bom livro, assumindo, sobretudo, o caráter vivível da obra.

Assim, a frase tomou proporções que extrapolaram a literatura, então uma pintura não seria mais apenas um trabalho técnico em artes, passou a ser mais, passou a ser momentos de recortes dados à permanente experiência da vida. Tanto quanto a fotografia, a música, o cinema. Esse apontamento partiu da compreensão de que real e ficção estão para arte, assim como a arte está para a vida, de modo que se a vida abarca o real e a ficção, abarca, indissociavelmente, a arte, e com ela constroem obras e obras, artisticamente vividas e no vivível da vida expressadas como ficção.

Inúmeras vezes ousei, ainda que com escondido receio das reações especializadas no assunto, anunciar que com recorrência tomo filosofia como literatura, especialmente quando meus olhos constatam palavras filosóficas irmãs univitelinas da poesia. E tomando a filosofia desse modo, me foi possível compreender o encantamento por tantos conceitos versados em obras da história da filosofia. Esse encantamento deveras ressoar o tal ‘diagnóstico e cura’ presentes num bom livro, aliados, claro à não separação entre vida e ficção.

Essa perspectiva foi a maneira mais delicada que encontrei para responder algumas doces manifestações quanto ao meu jeito de utilizar diariamente conceitos da filosofia ou passagens da literatura, músicas, cenas de filmes, pinturas, para compreender cenas do ordinário, cenas do cotidiano.

Sim, sei que tenho tido o hábito de soltar por aí em diálogos despretensiosos, passagens da filosofia, e tal feito não o vai involuntariamente, nem tampouco voluntariamente, é meramente um jeito pessoal de não dissociar vida e arte, de não marcar uma tal divisória entre real e ficção, ou na pior das hipóteses, entre vida e pensamento. Ora, amante que sou das invisibilidades vividas e percebidas sem a necessária materialidade formal, não conseguiria passar por obras cuja problematização da existência estivesse presente, sem me deixar ser atravessada por elas, bem como, não seria nada vivível encantar-me por uma obra filosófica sem reconhecer a potência dos conceitos emaranhados nela, sobretudo porque por entre esses conceitos o que me aparece é a vida transbordando e gritando alegremente pelo brilho do existir, com todas as tensões incluídas.

Finalizo me desculpando aos dialogantes, desculpas não pela minha seleção, desculpa por não conseguir manter-me indiferente ao que escolhi altivamente para viver. Quando não há linha que separa cor de transparência, não há forma possível que contenha o encantamento. É isso!

Carol Gomes 

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