29 de junho de 2015

Uberlândia, 29 de junho de 2015.

Excelentíssima Presidente, Dilma Rousseff,

Em 15 de outubro de 2003, nos idos dos meus 20 anos, tomei essa mesma liberdade e escrevi para o presidente Lula. Na derradeira carta, fiz várias perguntas, dentre as quais: “É justo que os pobres continuem pagando a mordomia da elite brasileira?”; “Sr. Presidente, quem sou para lhe explicar a importância da educação na vida de um país?”. Muito bem, a carta foi despachada via Correios com certeza indubitável de que o presidente a teria em mãos. A certeza se justificava nos sonhos de uma jovem militante de esquerda na potência sonhadora dos 20 anos, sobretudo estudante bem conhecedora da política segregadora de grupos políticos da direita brasileira em Minas Gerais. Passados alguns meses, em 26 de janeiro de 2004, recebi uma correspondência do Gabinete Pessoal do Presidente da República, assinada por um diretor de Documentação Histórica com os seguintes dizeres: “Cara Ana Carolina, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva encarregou-nos de registrar o recebimento de sua carta e de agradecer os seus comentários”.

Com essa correspondência em mãos, pensei: documentação histórica?! Vira documentação histórica depois que o presidente lê?! Ora, eis a inocência que passados quase 12 anos já não mais gozo tanto. Sim, a carta havia virado arquivo para futuros estudantes, pesquisadores da historiografia brasileira, e por certo o presidente jamais tenha tido noção de que recebera uma carta de duas páginas de uma jovem estudante da cidade de Uberlândia. Entretanto, o que nos vale é o exercício da autonomia e a liberdade de assumir a tarefa de conversar com os pares, próximos e distantes.

Hoje, aos 31 anos volto a escrever, trata-se de um mesmo ato, a repetição de escrever à presidência do país, entretanto, eu e meu país acumulamos 12 anos de aprendizado desde aquela carta de 2003. Se antes a carta pedia atenção à educação, com desdobramentos reflexivos entristecidos com a realidade social, que insistia em partilhar com o presidente o que chamei de “angústia assassina”, hoje, quero fazer um pedido objetivo:

A implantação de um espaço cultural dedicado às artes no município de Uberlândia-MG com iniciativa orçamentária do governo federal. Espaço que possibilite, sobretudo, o desenvolvimento de projetos dedicados ao audiovisual e cinema. Sim, um espaço para exibição de filmes não comerciais amplamente disponíveis em outros ambientes, espaço para exibição da produção nacional, regional e local, bem como para exposição de trabalhos das artes visuais.

Ora, mas no que se justifica um pedido como esse?!
Excelentíssima presidente, certamente é do seu conhecimento que Uberlândia registra no IBGE quase 700 mil habitantes, bem como se apresenta enquanto um centro urbano de referência para outros municípios da região do Triângulo Mineiro. Entretanto, quais ‘equipamentos’ da política federal de cultura a cidade abriga? Infelizmente, nenhum. Não há Centros Culturais com projetos permanentes que possuam recursos para manutenção e continuidade, por exemplo aos moldes dos Centros Culturais da Caixa Econômica, Banco do Brasil, Correios. Não há um Museu de Imagem, Som, Arte Contemporânea, Arte Moderna. Sim, há política cultural desenvolvida pelo município, que destacadamente cresceu consideravelmente nos últimos anos, sobretudo no fortalecimento das tantas ações culturais que buscam fortalecer as tradições e a produção artística local. Estou certa de que o Ministério da Cultura e suas autarquias somam ações diretas e indiretas no município a partir de múltiplos programas, incluindo os pontos de cultura e convênios com Universidades, Instituto Federal, Associações, Grupos Culturais, Artísticos etc., entretanto demandamos mais, e é esse o objetivo da carta, o pedido por um Centro Cultural.

Pergunta-se: Por que um Centro Cultural? O Centro Cultural não é um dispositivo de concreto que reforça segregação social ao possibilitar falsa inclusão ao eleger um ambiente como oficialidade de artes e culturas?

O questionamento faz sentindo, quando, a posteriori, um centro urbano usufrui de espaços diversos dedicados, exclusivamente, às artes e culturas, entretanto, um Centro Cultural com recurso permanente representa em uma cidade do interior, concretização simbólica de que desenvolvimento não se funda e não se encerra em desenvolvimento econômico. Historicamente Uberlândia publiciza sucesso econômico, por outro lado, escamoteia a ausência de política cultural enquanto projeto de diversidade artística e cultural. Não por acaso muito se escuta nas ruas da cidade: “Uberlândia não tem cultura, tem mudado, mas ainda falta muito”. Compreendamos que nessa fala há um expresso desejo afirmativo por fluxos múltiplos culturais para que as tradições continuem e se mantenham presentes, bem como a inserção de outros movimentos artísticos e culturais que circulam na agenda cultural nacional. Em outros termos, um Centro Cultural para que a população tenha acesso a produções artísticas que marcam as dobras e redobras das histórias oficial e não oficial das artes, marcações que por motivos diversos são produzidos e recebidos por pessoas de países distintos, exemplifico: mostras de cinema, exposições da história da arte, apresentações cênicas e musicais. O que é uma cidade que tem carência de movimentação artística e cultural?

Falava-nos disso Leminski nos idos de 1986 sobre a indispensável e fundante referência cultural de um território:
Faz muita falta [...] o húmus popular, o substrato de formas demóticas, por baixo, fertilizando, estimulando, provocando. Não há manifestações artísticas populares autônomas, de base. Sem essa raiz popular, a cidade - capitaneada pela sua classe-média - parece não se encontrar apta a gerar uma cultura própria que se coloque à altura de outros grandes centros brasileiros. À classe média, falta verticalidade. Profundidade no tempo. Raízes. Sem raízes e sem carência, que fazer? (Leminski no livro 'Anseios crípticos' nos ensaios "Sem sexo, neca de criação" e "Culturitiba" publicados no livro em 1986)
Presidenta, é bem certo que o renomado escritor se referia à capital Curitiba, sendo que desdobrando suas palavras somos levados a um reconhecimento, pois embora sejamos herdeiros da imponente cultura mineira, bem como das vizinhanças das culturas goiana e paulista, e que indiscutivelmente possuímos raízes populares na cultura africana, indígena, caipira, interioranamente mineira, talvez ainda não nos afirmamos enquanto possuidores de húmus cultural num município com seus 126 anos. Enquanto Leminiski falava em húmus popular em 1986, falamos em 2015 em húmus cultural, sendo que um não exclui o outro, muito além, um amplia o outro em relação constituinte de diversidade, nesse sentido, nosso município quer mais, no desejo de fortalecimento das tradições e também no contato com os marcos das artes de Museus, das artes de rua dos grandes centros, das artes tecnológicas, das artes industriais.

Sabe presidente Dilma, aqui vou partilhar contigo uma tristeza lamentosa. Uberlândia não tem nenhuma sala de cinema cuja programação não tenha predomínio de produção comercial dos estúdios americanos. Ora, não há problema na programação, há problema na exclusividade para uma cidade com quase 700 mil habitantes. Há projetos cineclubistas, sim, projetos importantíssimos, mas a produção nacional que tem sido produzida com excelência, uberlandenses não veem, por motivos diversos, mas sobretudo, por falta de espaço para tal. Nosso último cinema de rua foi recentemente fechado, o Cine It que figurava politicamente como espaço do cinema de rua, de pornografia, esse mesmo cinema que tanto deve às nossas pornochanchadas brasileiras. O Cine Bristol foi assassinado e virou loja de vendas. Não temos para onde ir se não para os filmes no computador. Esse ano o Brasil recebe uma Mostra de Cinema Brasileiro na França, onde li nos blogs que figuram na programação vários filmes recentes produzidos por cineastas jovens, mas ora, minha cidade não conhece, conhecem sim os uberlandenses que podem e caem nas estradas em busca da cena cultural de outros centros urbanos. Acredite, por aqui não vimos “O som ao redor” no cinema, não vimos “A casa grande”, não vimos “O lobo atrás da porta”, não vimos “A história da eternidade”, não vimos nem mesmo o “O sal da terra” dedicado ao fotógrafo Sebastião Salgado, que por sinal, é mineiro.

Pergunto à senhora, perguntando a mim mesma: É justo que sejamos cerceados de aplaudir nossas jovens e históricas produções nacionais? O quanto se muda uma realidade social sem arte e cultura?

Esses dias estive por Viçosa, outra cidade do interior de Minas e por lá tive a grande oportunidade de compreender que há uma pergunta que todo amante da sociedade deve fazer, sobretudo nós que um dia militamos por amar a vida e cada um ao seu modo deseja mudar, nas micros e nas macros revoluções: “É possível revolução sem arte?”.

Excelentíssima presidente, em 2003 eu pedia ao presidente Lula mais recursos para educação enquanto estratégia única para acabar com a injustiça social; mudamos, acredito honestamente, para melhor, eu e o país, por isso, hoje peço arte e cultura para minha cidade.

Disse-nos o presidente Lula: “quem tem fome tem urgência”. Todo trabalhador reconhece na pele essa máxima. Passada a urgência da fome que dá vitalidade, ampliamos e passamos a pensar sobre o que comer, como comer, porque comer e com quem comer, eis então que pedimos o que aquele grupo musical cantou: “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”.

Os anos em que as condições de pensar sobre a comida chegaram, de 2003 para 2015, muitas mudanças, novos movimentos, e hoje, para mim e minha cidade, te peço arte como estratégia de alicerçar o tão desejado desenvolvimento, este que não se encerra na economia, mas que antes, se funda na autonomia e reconhecimento humanos.

Em respeito e reconhecimento, agradeço.

Ana Carolina

Nenhum comentário:

Postar um comentário