26 de março de 2015

O prato do dia não era casadinho, mas a salada era mineira

Mais uma manhã de biblioteca cuja labuta são as imagens que insistem em não continuar o movimento diferenciante, sendo que ao meio dia e pouco resolvi procurar um almoço ao estilo leve para não retardar a retomada da pesquisa tarde adentro.

Logo na esquina entrei faminta no tal Bistrô Público; a pista de frios era interessante, embora a pista quente, nada convidativa ao vegetarianismo. Hum?! Encarei mesmo assim e servido o prato, segui a empreitada por uma mesa livre, porém todas ocupadas; então pensei por uns segundos em pé com o prato na mão no meio do salão: “Hora de exercitar a experiência de frequentadora de RU e pedir a beira de alguma mesa; vai que rola uma amizade?!”.

Avistei um homem sentado quase que findando a refeição: “Bem, é com ele que vou almoçar, porque se algo der errado ele já está no fim”.
Eu: Posso sentar com o senhor?
Ele: Sim, claro, por favor!
Eu: Obrigada!

Sentei e comecei a refeição pela salada, pensando: Puxo conversa ou faço jus ao estilo curitibano de se manter reservado excessivamente?
Tempos depois o moço dirigiu a mim a pergunta: Você é estudante de quê?
Em fração de segundos entrei no processo surtado do diálogo interno: É tão visível assim que sou estudante? E então respondi para ele: Uai, estudo filosofia e fico tentando estudar artes”.

O moço do cabelo bem ralinho e louro continuou: Que ótimo, muito bom almoçar com uma filósofa.
Droga! Três equívocos de um almoço numa só fala: i) achar que todo estudante de filosofia é filósofo; ii) achar que filósofo sabe tudo da existência e é irmão do terapeuta; iii) se ele ver comida nos meus dentes o problema não é meu, ele quem está embarcando numa conversa enquanto mastigo.
Continuou o moço: Me diz uma coisa, o que os filósofos dizem do amor?
“Não, não, não! Me recuso a conversar com ele”. Pensei urgentemente já acelerando os batimentos cardíacos. “Puxa, moço, por esses dias não!, só ando podendo pensar sobre imagens, imagens, tempo...

Olhei para ele cravando nos olhos uma máxima não filosófica: Uai, o Sr. sabe que não sei?! Estou começando a estudar filosofia agora, entrei no curso faz pouco tempo.
Ele: Ah sim, você parece mesmo bem novinha!
Pensei: Maravilha, saí dessa e ainda recebi um elogio! E perguntei: Mas por que o Sr. quer saber sobre o amor?
Ele: Porque meu casamento acabou hoje cedo.
Respirei pensativa: Vixe, vou acelerar esse almoço e correr daqui porque a bomba vai explodir, e se essa explosão não for aquela interna do tal impulso vital bergsoniano, será aquela emotiva que leva junto tudo e todos que estão perto.
Murmurei: Hã, entendi.
Vim almoçar aqui porque vou mudar a rotina de lugares e hábitos para esquecer logo. Disse o recém descasado naquele semblante de monólogo.

Do outro lado da mesa pensava eu: Para que fui ler Proust um dia na vida?! Para que fui nascer num momento de casa dupla em leão?! Para que a gente ama?!
E assim íamos com o almoço, ele soltando umas brechas no seu monólogo e eu reagindo em duas direções: respondendo com 'hã', 'hum', 'entendo', e, com a cabeça borbulhando ao retomar lembranças psicológicas de experiências amorosas.
Pensa na cena, uma cenografia completa livre para o jogo de iluminação conforme a intensidade do roteiro: uma mesa; dois pratos; dois humanos de frente um para o outro, uma mineira e o outro, talvez, paranaense; um vasinho de flor artificial acompanhado do suporte de palito, guardanapos e sachês de sal; jogo americano de papel em tom laranja... se o plano fosse close, qualquer um acreditaria que eu seria a ex casada do monólogo daquele Sr.; vxe!

O moço acabou o almoço e pediu sobremesa. Depois terminei o meu e pedi café. Ele no monólogo e eu no pensamento. Um almoço à la Bergman que nem de longe eu havia planejado para o dia.
Terminei o café e fui me despedindo. Até que ele fez uma pausa no monólogo e perguntou afirmando: Você não é daqui, né?!
Respondi com a boca salivando em cafeína: Sou mineira! Tchau, até mais!
Paguei o almoço e segui para a biblioteca atormentada com a situação, afinal, agi de modo curitibano, não falei uma oração com dois verbos, entretanto meu pensamento inundava em lágrimas verbais espelhadas no monólogo do moço.

Sim, eu também tinha dor de amor para falar, mas naquele almoço não rolava comê-la novamente com a salada, preferi tal qual uma estrangeira aparentar uma in-diferença fugitiva, nesse sentido, reforçar minha territorialidade mineira: comer caladinha a salada amorosa, porque se o sabor for um amargo dolorosamente comestível, as lágrimas poderão se revestirem em arte, num sentido decalcado de arte, o terapêutico.

(vale lembrar que o que se diz de jeito 'curitibano, paranaense', é apenas um ficção sem sentido pejorativo).

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