21 de abril de 2011

Carta aberta a Silvana Mangano
Por Pasolini

Cara Silvana:
               
Há muito que te devo uma carta. Uma carta para não falar num “buquê de magníficas rosas”. Em vez de te escrever privadamente, faço-o publicamente. Isso põe limites à intimidade e ao afeto; mas confere à carta, talvez, um valor maior.

É uma carta plena de amargura. Uma amargura confusa e imprecisa; um mal-estar leve e imenso: que, porém, não tem quero comunicar. Trata-se, talvez, do processo contra Teorema [sobre problemas judiciários causados pelo filme Teorema], que as pessoas acreditam seja para mim algo normal, previsto e jogado como uma espécie de aposta com a vida: e que, ao contrário, é um evento dramático. Se não fosse assim, seria muito fácil para mim (a minha luta). Se não houvesse em mim – ineliminável, coagulado nos dias da infância – um conformismo que produz dramas, seria excessivamente fácil o meu anticonformismo. Não te parece?

Na amargura que sinto (e que me envolve inteiramente, da cabeça aos pés) ao te escrever esta carta, um papel importante é desempenhado pela sensação de que o teu trabalho comigo não te deu a satisfação que eu esperava. (Tu, infinitamente mais “amarga” e mais sábia que eu, não tinhas essas esperanças, eu sei.) Mas o impulso de te escrever esta carta me foi dado por uma viagem de dois dias a Paris (sempre por causa de Teorema): lá, no “Dragon”, estavam exibindo pela primeira vez, na França, O Édipo Rei. É um grande sucesso – como se diz triunfalmente, suspirando – de “público e de crítica”. Gostaria de te mandar os textos em que críticos parisienses falam de ti. A satisfação (que tu não queres ter) seria verdadeiramente grande.

Mas voltemos à nossa amargura (da qual a satisfação parisiense não é mais do que uma contraditória confirmação). Amargura enquanto estado difuso e não realizado de neurose. Neurose como conflito de conformismo e de anticonformismo. De medo e de coragem. De graça e de impotência. De modo muito diferente, profundamente diferente, ambos fomos suas vítimas. Talvez sobre essa amargura – que nos permite trabalhar com grande ânimo e com pouca esperança – eu diria: estoicamente – é que se baseie nossa colaboração tão magnificamente solidária. Somos igualmente pontuais e corretos como bons garotos na escola, não é mesmo? E temos um sentimento de nosso dever bastante enraizado: jamais faltaríamos à nossa palavra... Não me era difícil “contemplar” todos esses aspectos da tua natureza (pontualidade, sentimento do dever, lealdade) quando trabalhávamos juntos, em Marrocos, em Roma, em Milão. E é tudo isso tua amarga beleza: que se oferece, intensa, como uma teofania, um esplendor de pérola. Mas, na realidade, tu estás distante. Apareces onde a gente pensa que estás, onde se trabalha, onde há coisas a fazer: mas estás onde não se pensa, não se trabalha, não há nada a fazer. Chamada para cá por uma obrigação que (e quem sabe por quê?) se tem ao viver, conserva-se a realidade da tua distância, como uma parede de vidro entre ti e o mundo.  Sem que jamais tenhamos nos falado disso (por causa do selvagem pudor), minha alma estava freqüentemente contigo, por trás daquele vidro.

Quando Dionísio chegou a Tebas, sob as vestes de um belo rapaz mortal, com os cabelos de um belo rapaz mortal, com os cabelos compridos (tanto que, também naquele momento, Penteu teria querido cortá-los), tinha o ar pleno de graça, de alegria, de preguiça juvenil (quando se é jovem há tanto tempo pela frente que não se tem medo de desperdiça-lo). Pouco a pouco, aquela sua presença realmente feliz, forma de libertação (Tirésias dirá: “Certamente não será Dionísio a querer – as mulheres castas: mas virtude não nasce – a não ser da natureza. E tu reflita nisto – se mulher é casta, não se corromperá – nem mesmo na orgia báquica...”), revela-se como uma presença espantosa, forma de destruição. “Dionísio é deus – entre os numes o mais benigno e o mais tremendo”: é o que ele diz de si mesmo.

Ele veio a Tebas em forma humana para trazer amor (mas de modo algum o amor sentimental e abençoado das convenções!); e, ao contrário, traz a desordem e a carnificina. Ele é a irracionalidade que se transmuda, insensivelmente e na mais suprema indiferença, da doçura ao horror. Através dela não há solução de continuidade entre Deus e o Diabo, entre o bem e o mal (Dionísio se transforma, insensivelmente e na mais suprema indiferença, do jovem pleno de graça que era, quando do seu primeiro aparecimento, num jovem amoral e criminoso). Tanto como aparição “benigna” quanto como aparição “maldita”, a sociedade – fundada sobre a razão e sobre o bom senso (que são o contrário de Dionísio, isto é, da irracionalidade) – não o compreende. Mas é a própria incompreensão dessa irracionalidade que a leva irracionalmente à ruína (à mais horrenda carnificina jamais descrita numa obra de arte). São os M.I., para cita Elsa Morante, os Muitos Infelizes, ou seja, a maioria, ou a média, fundada sobre a racionalidade e o bom senso, que não compreendem a graça de Dionísio, a sua liberdade, e, por isso, terminam cruelmente na carnificina: uma carnificina, afinal, que tem a própria irracionalidade como força dominante. Quantos Penteus existem, cara Silvana, em nossa sociedade: que, primeiro, querem cortar os cabelos compridos do jovem Deus que lhes aparece e que eles não querem reconhecer; e, depois, terminam por ir olhar as Mênades, vestidas de mulher, e por serem estraçalhados por elas numa horrenda carnificina (Auschwitz, Dachau, Vietnã, Biafra). Os Penteus italianos são medíocres, mesquinhos imbecis; não são sequer dignos de ser dilacerados pelas Mênades. (De resto, sobre eles, basta reler os versos de Elsa Morante que te citei: basta, em suma, para a infelicidade deles; pertencer à categoria dos “Muitos Infelizes”!).

Para voltar a nós ambos, reconhecemos Dionísio: mas com medo, um medo nascido no mundo dos Muitos Infelizes. E isso nos dá aquela amargura, que corrige e torna ambígua a felicidade que compreendemos: renúncia ou compromisso são drogas com as quais buscamos encher o vazio deixado por aquela metade da felicidade que não estamos em condições de desfrutar. Daí a tua neurótica indiferença pelas coisas; daí a minha angústia por eventos como o meu processo etc. Mas, em suma, com a ajuda de Dionísio, vamos ter a esperança de ainda trabalharmos juntos. E de termos, juntos, as satisfações de que não temos esperança, e que passam de modo fulminante, puras e simples “oposições”, reveladoras, à nossa amargura.

16 de novembro de 1968

PASOLINI, P. P. Caos – crônicas políticas. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Ed. Brasiliense: São Paulo, 1982. p. 73-76.

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