24 de maio de 2009

Essa porque é domingo... lua nova... para começar a semana útil no grau!!! Aos compatriotas a partilha do bom e amante 'fazer nada'...

Monólogos de um Ocioso

Quatro e pouca da tarde de uma terça-feira escaldante, horário impróprio para já estar meio alto. Sentia-se quase culpado. Não pelo desvio da sobriedade em si, mas simplesmente pelo excesso de pressa em se encontrar com o objetivo final do dia.

Ao que pareceria para muitos uma vida de excessos pra Carlinhos não passava de uma resposta ao absoluto tédio. Estava até habituado a beber tão cedo no começo da semana, mas não podia deixar de sentir uma pontada incômoda toda vez que o fazia. “Culpa da criação cristã” diria a si mesmo, como quem sente alguma necessidade de se justificar.

Mas o caso era que independente das culpas ocultas que trazia da infância, não pretendia sair daquele boteco nem que a paz mundial dependesse disso. Tinha acabado de ser dispensado do recém iniciado emprego em um escritório no centro, não sabia bem de que era o escritório pra dizer a verdade, e essa poderia até ser a razão da sua demissão, se não considerasse os problemas com a bebida. Não os seus problemas, como dizia, mas os problemas deles com a malvada. “Gente hipócrita, moralista! quem nunca tomou um pouquinho além da conta?”. Repetia a pergunta sério entre goles cada vez mais largos de conhaque com mel.

A verdade é que se sentia mais aborrecido pelo tédio do que pela dispensa no trabalho. Essa oscilação entre estar e não estar empregado também lhe era comum. E em todo caso havia sempre uma boa justificativa pra quem lhe perguntasse, além do conforto de saber que receberia o apoio incondicional da mãe e algum dinheiro do pai, que mesmo contrariado se via obrigado por dona Piedade a atender alguns dos freqüentes mimos que o filho estava acostumado a ter.
O calor parecia aumentar o tédio, observava a movimentação das ruas e tudo lhe parecia lento e feio. Simplesmente indigno de alguma admiração ou de algum comentário mais distinto. Conhecia bem aquele tédio absoluto, normalmente seria seguido de algumas noites de inquietante bebedeira e dias de penosas dores de cabeça e gastrite até que encontrasse algo que lhe ocupasse a mente.

Ao ver chegando o garçom com a nova dose que havia pedido teve dois pensamentos. Que inferno seria ter que trabalhar com blusão de maga comprida e gravatinha borboleta naquele calor obsceno, e que não tinha dúvidas que o André Gide era um babaca. Inconscientemente materializou os pensamentos após a última e derradeira golada: – Ócio criativo de cú é rola! – bradou batendo forte na mesa.

O pequeno acesso inconsciente acabou atraindo a atenção e o olhar surpreso da meia dúzia de pessoas que se atreviam a comer alguma coisa do balcão. Além do garçom, que hesitou bruscamente frente à mesa. Segurando o copinho americano carregado até a metade com aquele mel falso e mal cheiroso, ficou olhando fixo para a cena junto com outros clientes, como que esperando a próxima reação. Carlinhos, que por pouco não fora ator, não quis decepcionar a recém conquistada platéia e acabou fazendo em alto e bom som uma inevitável piada sobre a gravatinha do rapaz que o observava de perto com uma calma implacável que lhe irritava as vistas.

Após esse último gracejo do cliente, o garçom reagiu com o mesmo carinho habitual que se tratam os bêbados da tarde. Expulsou-lhe da mesa a tapas e xingamentos carregados em um forte sotaque nortista.

Carlinhos ria uma risada desconcertante, a cena não lhe era estranha. Já tinha sido posto pra fora de bares antes, mas dessa vez bebia numa mesa posta na calçada do bar. E não conseguia se conter com a novidade de estar sendo expulso de fora de um bar.

Após ser atirado pra longe da calçada do boteco tentava se recompor dos risos e das porradas recém recebidas, batendo pra longe as sujeiras na camisa . Depois de levantar, virou as costas para o bar e decidiu ir andando pra casa. A distância não era tanta mas o sol não parecia querer facilitar. Atravessou uma Presidente Vargas que se preparava pra congestionar e seguiu em direção pra Rua do Acre onde morava. No meio da Rio Branco mais um acesso de risos, lembrou que não pagou por nenhum dos conhaques. No fim tentou se conter ao observar a reação das pessoas que iam lhe olhando cada vez mais assustadas, e acabou que se deu por satisfeito com a situação, concluindo que os tapas até foram uma troca justa pela bebida de graça. A volta teria sido até um pouco animada não fosse um único pensamento triste que foi surgindo aos poucos. Lamentava não ter a quem contar sobre suas conclusões sobre Gide. Um desperdício, concluía. No mesmo passo de seus pensamentos ia subindo a escada da sua pequena masmorra na Rua do Acre, um minúsculo conjugado em um prédio nada familiar, não considerando os inúmeros pais de família que o freqüentavam diariamente em encontros apressados com algumas das moças com os preços mais modesto dos classificados de acompanhantes.

Ficou nervoso, aí estava mais um pensamento que valeria um bom debate. Ou pelo menos algumas considerações engraçadas. No entanto nem perto daquele prédio ou entre seus amigos havia alguém interessante pra se discutir todo aquele óbvio contra-senso. Abriu a trava da papaiz barulhenta que protegia seu apartamento do restante do mundo. O quarto tinha uma aparência suja, caótica. Nos cantos algumas pilhas de livros disputavam lugar com latas de cerveja e inúmeras garrafas de conhaque enfileiradas de uma forma quase industrial. Não havia televisão, somente um frigobar e uma espreguiçadeira antiga acolchoada, que mais pareceria um divã, não fosse a absoluta ausência de qualquer couro legítimo. Arrancou a camisa e acendeu um cigarro, se deitou na cadeira e foi se contraindo em uma posição quase fetal. Lembrou de um conhecido que uma vez lhe disse num bar que quando o sujeito vira o copo de cabeça pra baixo na mesa recusando bebida ou se contrai naquela posição admite a derrota. E de fato admitiria o sentimento de derrota que lhe assombrava naquele momento a quem lhe perguntasse, estava cansado mas insistia em repassar mentalmente alguns dos assuntos que lhe ocorreram durante o dia. Soltou o tema como em uma mesa redonda e refletia sobre as possíveis críticas que receberia aos seus argumentos, ensaiava respostas rápidas querendo se antecipar aos dois ou três interlocutores diferentes que representava mentalmente. Pensando no tédio (ausente de criatividade) em que se encontrava nos últimos tempos, ia querendo contrapor suas idéias com palavras do próprio Gide: “Não há problemas; apenas há soluções. O espírito de homem, depois, inventa o problema.”. Sugeriu assim involuntariamente, ao representar um opositor da conclusão retirada do conhaque minutos atrás, que se havia algum problema, era nele e não no escritor francês e suas considerações sobre a necessidade do ócio como estimulo criativo.

Sentiu-se seco de argumentos e interrompeu as argumentações mentais de forma abrupta, quis gritar de forma inflamatória pra acabar de vez com a discussão: “Gide era viado! Viado!”.


Se manteve em silêncio por algumas horas repassando tudo que foi pensando desde que chegara em casa. De repente foi sendo tomado de uma vergonha incontrolável. Não por reconhecer sua própria fragilidade mental, ou a fraqueza nos argumentos de um dos papéis que ia encenando mentalmente naquela discussão solitária e sem sentido, mas sim por argumentar “ad hominem” contra si mesmo. Achou ridículo, excessivamente patético até mesmo pra ele. Querendo imprimir algum desdém tentou rir. Não conseguiu, por fim se contentou em fechar os olhos tentando dormir.


Fonte: http://conselheiroacacio.wordpress.com/2008/01/13/monologos-de-um-ocioso/

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